2 - NELLY
Em um único dia discuti com minha mãe, enfrentei meu maior medo de falar em público e apresentei meu trabalho de conclusão de curso, recebendo nota máxima. Uhull! Finalmente jornalista. Nada poderia amargar minha felicidade, exceto, claro, ceder ao jogo de persuasão da minha progenitora e me internar em uma clínica de emagrecimento, conhecido como spa.
Patético, eu sei. Como uma mulher de vinte e quatro anos pode ceder aos caprichos da mãe e jogar anos de amor próprio?
Insegurança.
Repito constantemente o quanto sou maravilhosa para meu reflexo no espelho, mas todos os minutos gastos alimentando minha autoestima caem ao chão quando encontro Kaciana, a mulher que me trouxe ao mundo. Ela consegue com um olhar derrubar todos os muros de confiança que levei anos para construir, cada maldita vez que me sinto bem, ela vem e acaba com todas as minhas fantasias.
— Queremos tudo o que temos direito, Rô. — Kaciana pisca para o massagista, em uma intimidade tão exagerada que me deixa desconfiada.
— Pode deixar, bela. — O homem pisca de volta, virando para pegar um óleo aromatizante na mesinha perto da maca. O estudo agora com curiosidade, não deixando passar a maneira despreocupada com que se move.
Ele me olha dos pés a cabeça quando vira de volta, como se tivesse notado minha presença apenas agora e tenho que apertar o roupão ao meu corpo sobre seu escrutínio nenhum pouco profissional. Ele sorrir de lado, um sorriso que não me agrada em nada.
Meu celular vibra da bolsa e o pego, deixando de lado minha mãe e o massagista. Sorrio ao ler a mensagem da minha melhor amiga, única, na verdade.
Alice está fora do país tem dois meses, foi disputar uma competição de esgrima, me enchendo de orgulho por correr atrás dos seus sonhos e não se importar com todas as dificuldades que o esporte, ainda pouco falado, enfrenta diariamente. Ela não ligou quando foi a única mulher nas aulas, peitou todos os cara e os venceu um a um, embora ela venha de uma família rica, seus pais são antiquados e preferiam vê-la casada e com filhos.
"SEM CHANCE!"
Ela me responde e um sorriso brota em meus lábios, a contei que estou em um SPA com mamãe para emagrecer alguns quilos. Alice sempre detestou como Kaciana me trata, muitos vezes elas entraram em discussões fervorosas por minha causa, minha amiga sempre intervindo quando mamãe fazia algum comentário maldoso sobre meu peso, para Alice meu corpo é lindo, e desde que eu esteja me alimentando bem e saudável o resto não importa. Sempre intervim, no entanto. Apesar de tudo, Kaciana é minha mãe.
" Não é tão ruim, aqui tem sauna e massagem. "
Envio pra ela.
— Guarde o celular, Nelly. Aposto que está falando com aquela garota insuportável. — Kaciana reclama, torcendo o nariz em desdém e se deita na maca.
Outra massagista entra no cômodo e indica para que eu deite na maca desocupada, meus olhos brilham para a mulher e sorrio de forma verdadeira, agradecida por não ser o Don Juan de araque o responsável por minha massagem e me deito. Ao contrário de mamãe, que não veste nada além do que a parte inferior do biquíni por baixo do robe, uso um maiô preto, com um decote generoso na parte da frente, mas que abraça e resguarda meu corpo de olhares curiosos e julgadores, não deixando nada muito descoberto.
— Preciso ficar bem relaxada, Rô. Tenho um encontro essa noite e preciso estar em meu melhor estado. — Minha progenitora comenta, usando um tom de voz meloso e pedante.
Crispo o cenho para suas palavras, apesar de já está acostumada com seus namorados relâmpagos, acreditei que ela ficaria comigo no SPA pela semana inteira, já que a ideia foi sua.
— Não vai ficar a semana inteira? — Deixo escapar, trazendo a atenção da mulher pra mim.
— Ah não, querida. Essa semana será sobre você, já programei toda a sua rotina e ficará tão ocupada que nem vai perceber minha ausência. Além do quê, tenho os meus próprios planos.
Mesmo após tantos anos do mesmo tratamento, meu coração ainda se ressente ao ouvir suas palavras indiferentes. Saber que a mulher que me deu à vida prefere a companhia de um homem qualquer à minha, machuca. No entanto, assumo a culpa. Sou tola por acreditar que de repente minha progenitora vai se tornar uma mulher sentimental e me priorizar.
Bufo para mim mesma.
Idiota.
Tola.
Burra.
Viro minha cabeça para o outro lado, fitando a parede branca ao invés do rosto de kaciana, ficando na mesma posição até o fim da massagem, ignorando a conversa fiada e íntima que minha progenitora travou com o tal Rô pelos longos minutos que fiquei deitada sobre a maçã, ao menos, a massagem foi boa e conseguiu me distrair em alguns momentos.
— Obrigado, Ângela. — Digo, ao ler o nome da massagista em seu uniforme e ela assente, me sorrindo de volta.
Deixo a sala sem esperar por mamãe, seguindo direto para o meu quarto ao invés da sauna como tínhamos programado. Eu posso até está agindo como uma criança mimada agora, mas estou chateada por ter concordado em ficar aqui, trancafiada como uma prisioneira por uma semana enquanto a maioria das pessoas está fazendo o que gosta, indo para lugares que apreciam.
Ok, eu sou adulta e posso ir embora se quiser. — Falo pra mim mesma, me lembrando que já não sou obrigada a ceder aos caprichos de Kaciana.
Mas...
Droga!
Conhecendo a mãe que tenho ela vai me infernizar até eu voltar, mas não por uma semana e sim um mês inteiro.
— Nelly, você não está me ouvindo chamar? — Kaciana resmunga ao me alcançar, atirando—me um olhar irritado.
Suspiro, fazendo minha melhor expressão de paisagem e paro, olhando direto para seus olhos claros como os meus.
— Não, mamãe. Eu não ouvi, a senhora deveria ter gritado.
Ela me olha incrédula, olhando para os lados para checar se alguém me ouviu.
— Damas não gritam, Nelly. — Pontua, usando sua melhor expressão de dondoca rica, rondando se não há nenhuma das suas amigas socialites por perto.
Não questiono, apesar de achar um completo absurdo sem sentido.
Acontece que, meu pai nos deixou muito bem de vida e com mamãe sempre gostou de esbanjar, leva uma vida luxuosa e sem muitas limitações, isto, com a educação conservadora que teve é cheia de regras para manter a boa aparência perante a sociedade. Regras preconceituosas. É sempre:
Pode isso.
Não pode aquilo.
Claro, que meu peso e aparência são um problema para ela e a imagem que tanto tenta preservar. Ter uma filha acima do peso é como indício de sua falha como mãe.
— Você não vai para a sauna? — Volta a falar, mudando de assunto.
— Não, preciso enviar um email para o escritório. — Digo e ela revira os olhos, me fazendo voltar a andar com o gesto.
— Espere. — Diz, segurando meu braço após eu ter dado um passo de distância dela.
— Eu realmente preciso ir, mamãe. — Minto, formando uma expressão séria em meu rosto.
Na verdade, não tenho e—mail algum para enviar. Meu supervisor me deu alguns dias de folga, devido ao acúmulo de trabalhos acadêmicos que preciso organizar nessa reta final do curso, mas ela não precisa saber disso.
— Você sabe que por mim, largaria esse empreguinho. —Pausa, franzindo o cenho. — Até mesmo essa faculdade. — Acrescenta com desdém.
Respiro, tomando longas lufadas de ar.
— Não é um empreguinho, consegui o estágio na (Dalton) pelo meu esforço, ela é a maior revista do país e aborda assuntos sérios, tenho sorte em trabalhar em uma de suas filiais. — Kaciana bufa, demonstrando não concordar comigo.
— Que seja. — Diz contrariada, apertando os lábios finos um contra o outro. — Você não quer saber com quem vou me encontrar hoje? — Pergunta, deixando um sorriso repuxar seus lábios para cima, formando uma expressão quase...feliz.
Franzo o cenho, não entendendo sua pergunta. Ela nunca me fala com quem vai sair ou pede qualquer opinião.
— Com quem? — Pergunto intrigada.
Deve ser alguém importante levando em consideração sua empolgação.
— David Bragança. — Diz, lambendo os lábios ao citar o nome do homem. Sorrindo maliciosa.
Meu coração erra uma batida, minhas pernas vacilam na menção do meu ex professor de história, o homem que amei secretamente por três anos.
— Ele voltou? — Forço uma voz tranquila, disfarçando a perturbação que sua revelação me trouxe.
Ela me olha, estudando minha expressão de forma minuciosa e sorrir, pegando uma das minhas mãos em uma demonstração afetiva forçada, acariciando o dorso.
— Sei que nutria sentimentos bobos por ele, querida. Não conseguia disfarçar quando falava ou ouvia algo sobre o homem. Espero que tenha deixado essa paixonite de lado.
Limpo a garganta, afastando minha mão das suas e desviando o olhar para o pequeno grupo de mulheres fazendo pilates perto da piscina.
— David Bragança foi meu professor, devo muito a ele como educador, mas é só isso. — Digo seca, voltando a olhar fundo nas íris conhecidas.
Ela sorrir, colocando uma das mechas do meu cabelo para trás.
— Que bom, querida. David é um homem sofisticado, apesar da profissão simplória que escolheu. Vem de uma família requintada e resolveu assumir seu lugar como único herdeiro da Bragança perfumaria, precisará de ajuda.
— E você vai ajudar? — Pergunto irônica, incapaz de esconder meus sentimentos.
— Sim, eu o ajudarei. — Diz, ignorando a acidez das minhas palavras. — Tenho que ir, encontro você daqui a uma semana. Por favor, não me decepcione. — Fala e sai, sem nenhum outro gesto mais íntimo ou carinhoso.
Não me decepcione.
Ela está falando sobre David ou meus quilos extras? Bufo, não querendo achar a resposta sobre isso. Volto a caminhar, indo direto para os pequenos chalés que algumas clientes tomam como seus quartos e entro no 501. Varro meus olhos como uma águia pelo cômodo, buscando pelo meu notebook ou celular, qualquer um que possa me oferecer uma pesquisa rápida sobre meu ex professor.
Ele está de volta.
Ele voltou para cidade após dois anos fora, após o terrível acidente que tirou a vida do seu filho e esposa.