Capítulo 3
Final do expediente bancário. Hugo despediu-se de alguns colegas que ainda estavam na agência. Logo na saída tratou imediatamente de retirar o crachá preso ao bolso e jogou-o dentro de sua pasta de executivo. O jovem bancário, tranquilamente, deixava o trabalho, quando foi interceptado por um senhor que o chamou pelo nome. Tratava-se de um amigo, cliente do banco, que passava por ali naquele instante. Conversaram por alguns segundos e se despedirem em um tom cordial.
Um grupo de bandidos dentro de um veículo preto observou impacientemente o desenrolar daquela cena. Cinco homens armados, dentro do carro, prontos para a ação. Um leve sinal com os olhos e a cabeça, feito pelos bandidos, confirmara tratar-se de fato da pessoa que estariam prestes a atacar.
Os bandidos aguardaram em silêncio o momento de agir. Dentro do carro, com vidros revestidos por uma película escura, ouviam a batida intrigante de um rap nacional.
— Ligeiro garoto. Não temos todo o tempo do mundo, filho da puta! — Exclamou um dos ocupantes.
— Calma, ele já está indo pro carro. — Disse outro.
Hugo atravessou até o outro lado da rua, caminhando e massageando um dos braços. Muito próximos, os bandidos observavam seus movimentos.
— Parece um veadinho. Olha o jeito dele andar! — Disse um dos ocupantes.
— Ouvi dizer que corta dos dois lados! — Disse outro. — Calem a boca vocês! — Indignou-se o líder do bando, dando partida no carro assim que percebeu Hugo aproximar-se de seu veículo, estacionado à poucos metros de onde estavam.
— Ele está saindo. É agora.
A perseguição foi iniciada, mantendo certa distância, mas sem perder a vítima de vista. O trânsito naquele horário estava congestionado e lento. Vários minutos de lentidão nas tumultuadas e estreitas ruas do centro de Goiânia, até chegarem à uma avenida marginal que fazia a ligação entre o centro e bairros da região leste da cidade.
O trânsito na marginal não estava tão intenso, permitindo acelerar um pouco mais. Ambos os carros aumentaram a velocidade naquele trecho. O líder dos bandidos no comando da direção, sentiu que aquele seria o momento para aproximar-se. ,
— É agora. — Balbuciou, olhando para o comparsa sentado a seu lado.
Todos os ocupantes do veículo utilizavam máscaras com rostos de personagens de filmes americanos. Coringa, Pinguim, Homem-Aranha e até Frankenstein estavam ali representados.
Com um golpe no volante, acelerou e passou a frente. Numa manobra exímia fez o carro rodopiar diante dos olhos de Hugo, obrigando-o a frear bruscamente, sem, contudo, evitar uma leve batida.
Hugo desceu do carro com aparência assustada. Os homens mascarados e com armas em punho, se aproximaram. Um dos homens aplicou-lhe uma chave de braço, imobilizando-o.
Hugo gritou ao sentir o braço convalescente de uma bursite, ser contorcido até suas costas. Uma sensação de calafrio apoderou-se de seu corpo ao perceber o cano de um revólver pressionado em sua cabeça.
— A chave do carro! — Gritou o agressor.
— Está na ignição. — Hugo respondeu com a voz abafada pela dor. O suor descia de seu rosto em pânico.
Rapidamente foi rendido e colocado no porta-malas de seu próprio carro. Um homem negro e forte apoderou-se das chaves e acionou a ignição.
Os dois carros deixaram o local em alta velocidade. Um transeunte, do outro lado da rua, observou tudo sem esboçar qualquer reação.
◆◆◆
Karina estava às voltas com uma série de reportagens sobre violência urbana. Um canal de TV apresentava o telejornal local e trazia uma reportagem sobre as ações criminosas praticadas pelo crime organizado.
— A exemplo dos sequestros relâmpagos, os criminosos nem sempre tem como alvo novos ricos, pessoas famosas, delatores ou informantes...
A voz de um apresentador, narrava de modo bastante sensacionalista cenas de uma ação policial contra sequestradores, derrubando cativeiros e resgatando reféns.
... Essas facções tem como objetivo, também, o assassinato de homossexuais. Tais ações, indiretamente de cunho religioso e contra pessoas comuns, cuja opção sexual infringia as leis de Deus se fundamentam em extremismos e radicalismos, assemelhando-se, em algumas circunstâncias, às manifestações racistas e a xenofobia.
O apresentador em sua narrativa fez referência aos ataques a negros nos Estados Unidos, aos atentados incendiários em Paris, aos hooligans, aos skinheads e aos ataques terroristas em países do oriente médio, enquanto flashes de imagens de arquivos jornalísticos eram apresentados no programa jornalístico.
Karina com o olhar atento aumentou o volume da televisão.
...Recentes crimes contra pessoas comuns, são, na maioria dos casos, ações isoladas e as vítimas, geralmente, são sequestradas, roubadas, torturadas e posteriormente assassinadas de modo violento.
A imagem de um repórter de rua ocupou toda a tela do aparelho de TV. Em um ponto da cidade ele noticiou mais uma ação criminosa contra pessoas comuns. A matéria descrevia outro sequestro relâmpago. O repórter, um sujeito caricato, celebre por apresentar reportagens sensacionalistas, recheadas de bordões e termos da gíria policial, narrava de modo eloquente uma versão que teria sido dada a ele por uma testemunha, para explicar os momentos que antecederam ao sequestro.
— A testemunha que preferiu não se identificar viu o momento exato do sequestro. Após uma batida leve, a vítima, ao sair do veículo abalroado para ver o estrago, foi surpreendida por alguns sujeitos fortemente armados que rapidamente o rendeu, colocando-o no porta-malas de seu próprio carro. A testemunha, com medo, nada pode fazer a não ser anotar a placa de um dos veículos. A polícia já está tentando identificar o proprietário, na tentativa de encontrar pistas da vítima e dos sequestradores.
Karina apontou o controle remoto para a tela de TV e começou a zapear por outros canais. Sexo, violência e programas religiosos preenchiam a tela do televisor, na medida em que as imagens se sucediam rapidamente, obedecendo aos comandos remotos. Por fim, desligou a TV.
◆◆◆
Simão recebera mais um contato de Abdul. Apesar de frequentes, eram feitos sempre com muito cuidado, sem rodeios, com frases curtas e codificadas na tentativa de fugir de grampos telefônicos.
A ligação de Abdul com o crime fora herdada de seu pai, cujas ações criminosas ligadas ao contrabando de diamantes na África, vinham despertando a atenção de organismos internacionais, inclusive a ONU.
As atividades no Brasil eram conduzidas pelo pulso firme de Simão, com o qual compartilhava importantes ideais políticos. Uma nova ação criminosa vinha sendo planejada no Brasil e envolveria o sequestro de uma celebridade.
Os contatos com Simão serviam como orientação para cada etapa do planejamento. Sequestros relâmpagos de empresários, profissionais liberais e assaltos a bancos, serviam de preparação para desviar a atenção de autoridades policiais em relação às atividades ilícitas ligadas ao contrabando de pedras e metais preciosos.
Nomes importantes do meio artístico nacional vinham sendo selecionados e seus hábitos estavam sendo observados. Apresentadores de programas de TV em redes nacionais, âncoras de telejornais, cantores e atores, poderiam, a qualquer momento, serem vítimas de assalto ou sequestro.
O último contato com Abdul serviu para Simão definir os responsáveis pela condução dessa etapa. Sentado à mesa de um dos bunkers que comandava, apoderou-se de uma folha de papel em branco e escreveu em letras graúdas o nome de JONAS.
Simão havia se aproximado de Jonas para tentar unir pontas de um enigma que começaria a se criar. Vislumbrara no jovem geólogo, exímio conhecedor de pedras preciosas, um fiel escudeiro, com potencialidade para ascender no mundo paralelo do crime organizado.
Vários foram os encontros e conversas entre os dois. Simão usava com muita propriedade toda a sua sapiência para atrair e conquistar a confiança do novo amigo.
Jonas visualizava a mesma possibilidade de ascensão, além do dinheiro fácil, o poder e a projeção que sempre almejara. Simão parecia ser o caminho para tais conquistas, não importariam os meios.
— A mídia costuma ser generosa com os protagonistas de ações que possam dar-lhes audiência. — Dizia Simão a Jonas, em um de seus encontros. — Bandidos perigosos se tornaram populares em todo o mundo, graças à mídia. Bonnie e Clyde por exemplo. No Brasil, a coisa não é diferente. Lampião, Lúcio Flávio, Leonardo Pareja, Lázaro e tantos outros são grandes personificações da mídia. Tornaram-se ícones no mundo do crime, graças ao espaço dado pelos meios de comunicação. Dinheiro, projeção e poder não estão, necessariamente, ligados a boas ações.
Jonas se recordava das conversas com Simão, sempre que planejava alguma ação nova. Simão, costumeiramente, especulava sobre questões éticas envolvendo algozes, vítimas e a mídia.
— Algumas vítimas ganharam fama com a exploração jornalística de seu próprio drama. —Assim Simão afirmara em um de seus encontros.
Jonas, apenas assentia. O discurso filosófico de Simão impressionava. Intimamente, Jonas se perguntava como um indivíduo com aquela inteligência e perspicácia envolvera-se com o crime organizado.
— Jornalistas? — Jonas perguntara apreensivo.
— Sim. Basta lembrar alguns jornalistas que se ofereceram como reféns no decorrer de ações criminosas, envolvendo assaltos ou sequestros. Ganharam fama, notoriedade e pontos de audiência nos programas jornalísticos, exibindo manchetes sensacionalistas. O único repórter a subir o morro e entrevistar o traficante fulano de tal, a única emissora que obteve permissão para registrar imagens do cativeiro, ou coisas assim.
— Faz sentido. — Jonas concordava reflexivo.
— A verdadeira história, Jonas, é aquela que foi contada. isso independe da versão, se fato ou boato. Não sendo contada não existe história e nem versão da história. O Brasil está repleto de episódios pitorescos e nem sempre heroicos, mas é escrita, descrita e contada como tal.
◆◆◆
Karina chegara cedo ao escritório. Precisaria de muita disposição, pois a semana começaria a todo o vapor. Por melhor que pudesse parecer, a situação da empresa, em certo sentido, a preocupava.
Temia pelo seu futuro e pelo futuro de seus empregados que a consideravam uma empreendedora de sucesso e a admiravam pelos prêmios que já havia recebido.
A onda de violência na cidade e a constante sensação de que alguém a perseguia incomodava, deixando-a aflita.
As reuniões tensas e os telefonemas ameaçadores já faziam parte de sua rotina. Contudo, suas aflições não poderiam afetar sua rotina de trabalho.
O telefone tocou no momento que ajustava alguns pontos de sua agenda. O visor do aparelho indicava uma chamada originada pelo ramal de sua secretária, Celina.
— Dona Karina, tem um senhor aqui na recepção e deseja falar com a senhora. Ele diz que trabalha com investigação e segurança particular. O nome dele é Miguel. Posso mandá-lo entrar?
Karina deduziu tratar-se de alguém indicado por Luiza. Ainda não estava convencida da necessidade de contratar um segurança particular, mas, todavia, não faria desfeita a amiga.
— Claro, mande-o entrar.
Um homem alto, de pele avermelhada e com um vasto bigode adentrou a sala. Apresentou-se, segurando uma pequena carteira de couro, decorada com uma insígnia dourada representando a república em um dos lados e no outro, o documento com a sua foto, um pouco mais jovem e seus dados pessoais.
Os olhos grandes e esverdeados percorreram rapidamente todo o recinto, captando todos os detalhes da ampla e decorada sala.
— A senhorita está de parabéns. A sua empresa está muito bem instalada. Tanto sucesso não deve ser por acaso — emendou antes de assentar, atendendo ao convite de Karina.
Seus olhos percorreram novamente todo o ambiente até encontrar os olhos de Karina. Assentou-se, sorriu e continuou — e a senhorita também é muito bonita. Beleza, somada a dinamismo e juventude é igual a sucesso. Quanto maior o sucesso, mais cuidado se deve ter com a própria segurança. A senhorita concorda?
Karina deu um sorriso amarelo sem entender o propósito de todo aquele rodeio. Todavia, antecipou-se.
— Foi Luiza quem falou a meu respeito para o senhor?
Ele sorriu e tentou desconversar, tirando um pequeno bloco de anotações do bolso.
— Luiza? Ah, sim. Mas, quero dizer, seu sucesso empresarial é notório. Mais cedo ou mais tarde, com tanta violência nos dias atuais, qualquer profissional de segurança e investigação iria oferecer-lhe seus préstimos. Que dia é hoje? —dissimulou, rabiscando alguma coisa no bloco de anotações. Sorriu novamente, fitando os olhos de Karina, como que agradecendo pela confirmação da data. — Como eu disse, a qualquer momento algum colega ou eu mesmo, iria lhe oferecer um serviço relacionado à segurança privada, mas o motivo que me traz aqui é outro.
◆◆◆
Simão estava ladeado por duas belas garotas na ala privativa de uma movimentada boate de Copacabana, quando o celular tocou. Dois comparsas bem vestidos e bem armados com pistolas automáticas escondidas pelas roupas lhe serviam de segurança.
Todos numa mesma mesa, rodeados de muitas mulheres bebiam e fumavam sem parar. Tanta generosidade nos gastos com orgias e bebedeiras redundaria, ao final, em uma conta altíssima sempre paga com dinheiro vivo, ou mediante troca de favores entre Simão e os donos da boate.
Simão caminhou até um local ainda mais reservado na área VIP, para atender a chamada. Suas palavras objetivas, embora codificadas, eram dirigidas a um dos encarregados de uma operação envolvendo contrabando de urânio.
A conversa quase toda monossilábica referia-se a um carregamento apreendido no Amapá, na caçamba de uma caminhonete.
Apreensivo, o homem do outro lado da linha argumentava em tom preocupado.
— Foram apreendidas dezoito sacas de um mineral granulado escuro composto de urânio e tório, altamente radioativos, abundante em jazidas encravadas no extremo norte brasileiro.
— Eles estão se aproximando. — Simão advertiu.
A imprensa anunciara tratar-se de uma investigação secreta feita pela Polícia Federal.
Estaria ali o fio da meada para a descoberta de uma das mais obscuras máfias em atuação no País, com ramificações internacionais, especializada na extração clandestina e na comercialização ilegal de urânio.
— Sim. Houve gravações de conversas telefônicas feitas para polícia e que vazaram para a imprensa.
As gravações revelavam o funcionamento da máfia, desde a extração do minério nos garimpos, situados em plena selva amazônica até as negociatas encabeçadas por quadrilhas que exportam o urânio para clientes, tão misteriosos quanto elas próprias, muitas vezes, com o respaldo de autoridades constituídas e políticos.
Simão fora informado da extensão das investigações realizadas pela polícia. A investigação envolvia não só brasileiros, mas, criminosos internacionais que estariam sob a mira das polícias irlandesa, russa e alemã.
Supostos integrantes de uma conexão que, segundo os investigadores, estaria levando o minério para países da Europa, Ásia e África, em particular a Rússia e a Coréia do Norte. Atento ao que ouvia de seu informante, do outro lado da linha, fora comunicado sobre uma notícia veiculada pela imprensa, segundo a qual, o Palácio do Planalto já havia recebido o alerta sobre o contrabando de urânio que estaria indo parar, também, nas mãos do terrorismo internacional.
Simão desligou celular e coçou o queixo demonstrando preocupação. Voltou à mesa e sentou-se novamente junto de seus comparsas. Olhou para um deles e mencionou a palavra celebridades.
O homem deu um sorriso e balançou a cabeça em sinal positivo. Havia entendido a mensagem. Um outro, imediatamente, levantou-se empurrando uma das garotas que se sentara em seu colo com os seios de fora. Afastou-se e saiu da boate para fazer uma ligação telefônica.
Do ponto onde estava era possível ouvir música funk, servindo de trilha sonora para o show de algumas strippers. As operações que vinham sendo realizadas pela polícia federal não chegavam a intimidar as ações coordenadas por Simão, mas serviam como indicativo para mudanças estratégicas nos planos da facção sob seu comando.