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Capítulo 2

Dirigi-me mais uma vez para o salão. Parecia igual como antes. As mesmas meninas sentadas e conversando em voz baixa. Quando entrei nem pareceram perceber minha presença. Eu era um fantasma no meio delas.

Continuei esperando com elas. O Senhor Fahir voltou com um papel. Parecia o mesmo que Seth segurava. Talvez fosse para que eliminasse algumas garotas dali. Certamente era. Esperei que me chamassem. Eu torcia para que me chamassem. Assim, a competição toda acabava e eu ia para casa para ouvir um “eu te avisei” da minha mãe.

– Aquelas que eu chamarem, ficarão. As outras, por favor, peço para que saiam. Tudo bem? – As garotas concordaram com sorrisinhos confiantes. Revirei os olhos. Era óbvio que elas tinham feito um bom trabalho cuidando de Seth para estarem imunes à eliminação.

O senhor Fahir começou a falar. E não parava de falar. Falar. Falar. Chamou meu nome e, ainda completamente desesperançosa, fui até onde estavam muitas garotas. Não gostava de continuar na competição. Bufei. No fim, Seth só eliminou três de uma nuvem de garotas. Revirei os olhos. Caberia a Senhora Zilena e ao Senhor Sheikh Rashid a eliminação verdadeira.

Voltamos aos nossos locais. Novamente a confusão de risinhos e conversas enquanto o Senhor Fahir chamava alguns nomes. Mais espera. Nesse ritmo, a entrevista deveria durar o dia inteiro. À medida que elas iam sendo chamadas, algumas já voltavam chorando, pegando suas bolsas ou outras coisas que tinham deixado no salão e saindo. Pelo visto a Senhora Zilena dava a resposta na hora. De todas que tinham ido, só tinham retornado dez. Engoli em seco. Eu era a última. A próxima.

Levantei-me quando o Senhor Fahir me chamou. Dirigi-me com calma até a porta da Senhora Zilena. Esperava que eu não fosse um desgosto para ela. Agora que só tinham sobrado dez, alguma coisa dentro de mim pedia para que eu fosse escolhida. Acho que era esperança de lidar com uma pessoa justa que tinha olhado bem para as meninas barbies peitudas e visto uma possível oferenda de sexo ao seu marido. Engoli em seco. Bati à porta e ouvi a voz séria e feminina de Zilena dizer:

– Pode entrar. – Adentrei o espaço que também era pequeno. Era idêntico ao que Seth estava, com a diferença de que a janela estava fechada com persianas brancas. Sentei-me à frente de Zilena que me olhou por inteiro.

Zilena usava o que parecia uma abaya preta e um hijab na cabeça de cor azul-escuro, que parecia mesclar com um azul-claro. Era uma mulher muito bonita. Não conseguia ver a cor do seu cabelo, mas os olhos eram de um castanho avelã lindíssimo, marcado com maquiagem escura e bem delineada que parecia deixar seus olhos ainda mais atraentes. Os lábios estavam pintados de rosa claro e ela parecia uma princesa com pulseiras grandes pelo braço e anéis.

Sentei-me a frente dela esperando que ela começasse a entrevista. Percebi que ela deu um meio sorriso. Acho que consegui a aprovação dela no quesito roupas. Não estava parecendo uma mulher de roupas vulgares.

– Chamo-me Zilena. – Começou a senhora. – A senhorita chama-se Agnes Valença? – Concordei meneando a cabeça. Ela concordou e voltou a falar: – Quais são suas qualidades para que você se ache merecedora de trabalhar na minha casa, senhorita? – Bem, eu não esperava uma pergunta tão direta assim.

– Conheço um pouco da sua cultura e da sua religião, senhora. O bastante, acredito eu, para saber me vestir sem fazê-la sentir ódio de mim, entender seus horários e um pouco dos seus alimentos, como a alimentação sem suínos. Acredito que sei falar o básico de árabe quando for necessário e sou fluente em inglês. Também possuo o básico em alemão e sou formada em administração. Acho, portanto, que seria uma possível candidata como sua governanta, Senhora Zilena.

Zilena deu um meio sorriso. Durou pouco, mas foi suficiente para me animar um pouco. Acho que chamei a atenção dela. Ela viu em mim uma possível governanta. Menos mal. Acho que a minha escolha em roupas ajudou.

– Bom, pelo menos a senhorita não foi tão enfadonha como as outras garotas que passaram por aqui. Elas diziam que eram lindas e seriam elogiadas pelas outras madames que eu recebesse em casa por causa da beleza delas. Elas nem se deram ao trabalho de pesquisar! Não quero uma moça bonita em casa, que possa atrair os olhares do meu marido e do meu filho. Quero uma moça que me sirva sem chamar a atenção. – Desabafou Zilena e eu concordei não deixando de esconder um meio sorriso. Eu concordava plenamente com ela. Fiquei feliz que ela tivesse percebido isso.

– Em Omã as mulheres não elogiam as outras porque tem governantas bonitas. Não que eu vá pedir para a senhorita andar com um hijab como eu por lá. Você não é da minha religião e reconheço caso não queira usar. Contudo, não precisa ficar mostrando seus seios para meus visitantes, nem colocando as pernas de fora. Tampouco estando com o cabelo solto. Maquiagem, eu até suporto, porque também as uso com frequência, mas nudez, isso é inapropriado na minha casa.

– Imaginei isso, Senhora Zilena. – Zilena meneou a cabeça ajeitando-se na cadeira. Ela era uma mulher imponente. Duvido que quando ela entrasse numa sala, não fosse chamar a atenção. Não seria os cabelos ou a nudeza que a fariam ser reconhecida. Nunca achei que uma pessoa tivesse presença o suficiente para ser reconhecida por isso: pela sua personalidade. Zilena parecia ser uma mulher de palavras comedidas, mas fortes. De uma opinião voraz e de um olhar crítico e imponente, sem, no entanto, ser arrogante, capaz de deixar mulheres do ocidente loucas para aprender como ela era capaz disso.

– Sim. Bom. Seu currículo muito me impressionou. Acredito que o seu e o da Senhorita Desirèe. Provavelmente, serão as minhas favoritas, caso Rashid deixe uma das duas entre as três de sua preferência. Muito obrigada pela entrevista, Senhorita Agnes. – Sorri.

– Eu que lhe agradeço, Senhora Zilena. – Disse e fiz uma pequena vênia, mesmo não sabendo se a devia cumprimentar assim. Mesmo assim, não ia tentar apertar sua mão e provocar uma possível ofensa. Eu estava tentando ser o mais comedida possível.

Quando sai e fui ao salão, não pude deixar de sorrir, um pouco mais aliviada. Parecia que um peso tinha saído dos meus ombros, mesmo que ainda não tivéssemos acabado a entrevista. Ainda faltava o senhor Rashid. O tão falado Sheikh Senhor Rashid que eu não conhecia. E agora, éramos apenas onze. Onze meninas esperando a chance.

Tentei olhar para todas a fim de identificar a possível Desirèe. Das onze, a maioria estava com o cabelo solto e muito cheio, mas bom o suficiente para esconder as orelhas. Pensei se eu não deveria ter feito o mesmo, mas a senhora Zilena disse que o cabelo preso dava um ar de que a pessoa não se preocupava com o cabelo. Todas ali estavam com roupas comportáveis, mas apenas uma, fora eu, estava com o cabelo preso e, achei, em algum lugar dentro de mim, que aquela fosse a tal da Desirèe.

Ela tinha os cabelos loiros bem claros e muito bonitos presos num coque baixo. Parecia combinar perfeitamente com ela. Era um pouco mais alta do que eu e tinha a pele bem translúcida e os olhos bem azuis. Não usava maquiagem, além do que parecia brilho labial, talvez, para manter os lábios menos ressecados. Era bem magra e bastante séria. Eu ainda usava um brinco pequeno na orelha em formato de golfinhos – como eu amava golfinhos! – Mas Desirèe não usava brinco algum. Droga. Eu não tinha a percebido no meio das outras. Ela conseguia ser mais certinha do que eu. Seria aparência? Por que não acredito que Seth deixou ela passar como eu por ser certinha. Mesmo assim, ela parecia ser mais rígida do que eu.

Acabei frustrando um pouco. Ela certamente deveria ter um currículo melhor do que o meu, bem como, ao que pude perceber, mais conhecimento também. Eu não tinha me ligado a alguns detalhes, mas ela…. Ela tinha pensado em tudo! Era uma exímia competidora. Uma que, certamente, deveria ser a mais difícil de combater. Eu estava ferrada.

Tentei não pensar nisso enquanto, novamente, o Senhor Fahir começava a chamar as meninas. Fiquei ali, parada, vendo todas retornarem a seu lugar. Diferente da Senhora Zilena, o Senhor Rashid não parecia dizer logo de cara de quem ele tinha gostado. Acho que ele queria ver todas as opções primeiro.

O Senhor Fahir me chamou. Levantei-me, cambaleante e segui para a última etapa da minha entrevista. O senhor Rashid. Como seria ele? Que perguntas me faria? Senti minhas mãos tremerem e tentei escondê-las atrás das costas enquanto o Senhor Fahir abria a porta para mim. Adentrei a sala e ele logo fechou-a também. Foi então quando olhei.

Era uma sala diferente das outras. Não havia mesa e nem cadeiras. Apenas o que parecia um chão feito de tatame. O senhor Rashid estava em cima de uma almofada e apontou para que eu escolhesse uma das três que estavam ao redor dele. Franzi o cenho. Havia uma preta, uma laranja e uma azul. Olhei para as três e depois para o Senhor Rashid. Percebi que ele se sentava numa laranja. Pensei em até sentar numa laranja também, mas e se todos tivessem pensado como eu? Não seria uma infeliz coincidência e ele ia achar que eu era igual às outras meninas? Sentei na azul. Rashid deu um leve e terno sorriso.

– Apenas você e mais uma sentaram na azul. – Quase senti vontade de bufar. Não diga. Quem seria? Desirèe?

– É uma cor que significa honestidade, tal como meu nome. – Comentou ele. Olhei o Senhor Rashid. Era um homem magro. Acreditei que por ser Sheikh ele poderia ter se dado o luxo de comer mais um pouquinho. Era mais um dos estereótipos que eu tinha na minha cabeça. De qualquer forma, o Senhor Rashid usava um dos vestidos idênticos ao de Seth, só que na cor branca e tinha uma adaga amarrada na altura da cintura. Também usava um véu na cabeça, pano, ou como se chamava aquilo. Era quadriculado em branco e vermelho. Ele tinha uma barba rala no rosto magro e os olhos brilhavam em uma coloração bem negra. Ainda assim, pareciam amistosos.

– Então porque o senhor não está sentado numa dessas almofadas? – Rashid riu. Achei engraçado vendo alguém rir, mas eu estava parecendo uma menina curiosa, então, acho que a culpa era minha.

– Para enganá-las. Das onze meninas, sete olharam para onde eu estava sentado e sentaram na mesma. Não acredito nessas coisas de cores, sabe Senhorita Agnes? Acredito em Alá, meu senhor. No entanto, uma coisa meu pai sempre me disse quando eu era pequeno: Confie no azul, no vermelho e no amarelo. É uma cor primária. As cores primárias foram as primeiras a serem criadas e escolhidas por Deus. Elas devem também sempre serem escolhidas por ti. Com isso, sempre me preocupo que quem trabalhe comigo possa ser único e escolhido como quero que sejam meus empregados. – Era uma explicação sensata para Rashid. Concordei o olhando. Ele parecia um homem diferente, um homem estudioso. Misterioso também. Me interessei pelo que Rashid poderia ensinar.

– Bem, mas há mais do que cores para que eu seja aprovada, acredito eu, Senhor Rashid. – Ele concordou.

– Muito esperta. Sim, Senhorita Agnes. Há. Algumas poucas perguntas, se a Senhorita puder responder. – Assenti e Rashid me olhou nos olhos antes de começar o seu interrogatório:

– Se a Senhorita fosse viajar agora, o que escolheria para levar para Omã? Quem você escolheria? Comecemos com essas perguntas. – Pensei. Olhei para o rosto de Rashid, inexpressivo. Não havia nenhuma dica facial do que ele considerava como resposta adequada.

– Levaria minha irmã, Sofia. Levaria a bomba de oxigênio extra dela. Não quero correr o risco de que ela não respire quando estiver em Omã. – O senhor Rashid me olhou pelo que pareceram longos segundos. Torci para que ele não fizesse a pergunta. Não quereria explicar a bomba de oxigênio, nem porque minha irmã era tão importante para mim. Rashid pareceu considerar por longos segundos e baixou a cabeça por mais alguns longos segundos – por algum motivo que não entendi – e então continuou com as perguntas:

– Quais seria seus dois maiores medos, Senhorita Agnes e quais os seus maiores sonhos? – Aquilo era muito pessoal. Não sabia se Rashid tinha o direito de perguntar uma coisa daquelas. Engoli em seco. Ele continuava passivo, sem expressões. Gaguejei no começo quando comecei a falar:

– T-Tenho medo de perder Sofia por não poder ajudá-la e tenho medo de lugares muito fechados e claustrofóbicos, senhor Rashid. Além dos sonhos de ajudar Sofia, tenho o sonho de viajar para um lugar no meio do nada, vazio, vazio, viajar por um dia inteiro e então, no silêncio de uma noite, jantar aos olhos de Deus. – Rashid concordou. Percebi que ele tinha uma prancheta nas mãos. Acho que ele anotava o que eu dizia. Senti minhas bochechas arderem até se tornarem escarlate. Não sabia que isso seria assim tão importante. Me senti uma estúpida contando as coisas para o Senhor Rashid. Assuntos pessoais.

– É apenas isso, Senhorita Agnes. Se puder voltar. – Concordei me levantando. Minhas pernas estavam levemente dormentes e eu sentia uma leve tontura, como se tudo fosse um sonho. A atmosfera com Rashid pareceu decair uns bons graus da temperatura do ambiente até tornar-se tudo gélido, calmo, como minutos antes de uma morte já sentida. Era assustador. Contudo, reconfortante.

Quando voltei ao salão percebi que Zilena e Seth já estavam por lá. Seth piscou quando me viu passar, tentando me irritar. Acho que conseguiu, já que revirei os olhos, apertando um dos punhos para não o socar. Ainda estava em teste. Eles me expulsariam da casa deles caso eu batesse em Seth? Por que ele, realmente, merecia. Não sei se aguentaria muito tempo sem o fazer.

Zilena era mais alta do que eu achava que era. No entanto, era ainda mais baixa do que Desirèe, ou a moça que dei esse nome. Todas estavam em pé e eu coloquei-me ao lado de Desirèe esperando o Senhor Rashid que logo apareceu com sua prancheta e um sorriso no rosto.

– Em vez de três finalistas, temos apenas duas. – Começou o Senhor Rashid. As meninas arregalaram os olhos, como se estivessem afetadas com a notícia. Me segurei para não revirar os olhos, mas a verdade é que eu também estava nervosa. Sei que tinha chances de ser uma das finalistas, mas Desirèe poderia ser pior do que todas ali. Ela certamente seria difícil de ser combatida. Não acho que, mesmo que eu quisesse conseguiria competir com alguém que parecia tão boa.

– As finalistas são… – O senhor Rashid olhou para todas nós. Demorou o que achei que fosse a mesma quantidade de segundos em cada uma de nós antes de dar a resposta: – As finalistas são: A senhorita Desirèe e a Senhorita Agnes. As outras, por favor, dirijam-se a saída. Muito obrigado pela participação. – Como o dito, as outras seguiram para fora. Eu ainda estava em choque. Tínhamos sobrado. Eu e Desirèe. Eu e a menina valente do meu lado quem julguei ser Desirèe e que realmente era.

Olhei-a e ela pareceu perceber meu olhar nela, porque se virou também para me encarar. No entanto, para minha total surpresa, Desirèe me abraçou e disse em voz alta, para que todos pudessem ouvir:

– Fico muito feliz que tenhamos sobrado. Qualquer uma de nós que ganhe, ficarei contente. – Não percebi nenhuma tonalidade de voz falsa. O que parecia impossível, já que eu era expert em perceber isso. Os olhos dela brilhavam como falso. Mas nada além disso. Mesmo isso, tinha que olhar bem fundo para perceber. Desirèe era uma atriz. Uma ótima atriz. Eu não estava competindo com qualquer uma. Estava competindo com a mente mais brilhante de disfarces que eu acho que conheci, se é que isso é possível. Nunca achei que fosse.

Desirèe tinha enganado Seth, provavelmente beijando-o ou dando algo para que ele criasse esperanças e pudesse passá-la na entrevista. Para Zilena ela tinha parecido a mulher mais certa, mais conhecedora do islamismo. Para Rashid ela tinha respondido as coisas certas – se é que era possível isso, já que nem eu mesma sei quais eram as respostas certas para Rashid – mas, de qualquer forma, ela tinha sentado na poltrona certa. E foi por sorte, o que logo captei. Ela era da França mesmo. A pulseira azul. Só tinha sentado ali por que pensara em seu país. Nada demais.

Quis explodir e xingar Desirèe ali, mas sabia que não podia. Desirèe era uma mistura de sorte e artimanha. Ela. Ela poderia me vencer por atuação. Sua falsidade excessiva. Eu queria tirar a máscara dela e bater nela até que ela parasse de fingir. Rashid, contudo, tirou-me da minha linha de pensamento mortal:

– Agora, meninas, peço que descansem. O último teste entre as duas será amanhã de manhã. Um dos meus motoristas passará para buscá-las no hotel que já reservei para as duas. Não é aconselhável que, a partir de agora, as senhoritas andem sozinhas. Peço até que não saiam do hotel. Coloquem tudo na conta do Sheikh Salal. – Disse o Senhor Rashid e balançou a cabeça enquanto olhava para a prancheta: – Qualquer coisa, senhoritas. Durmam cedo. Buscaremos vocês as sete da manhã. – E dito isso, o Senhor Fahir pediu para que o acompanhássemos para fora. Simples assim.

Ainda olhei mais uma vez para aquela família antes de entrar no carro blindado 4x4 preto. Quando o carro avançou pelas ruas de Paris, me senti estranha, uma confusão tamanha. O dia tinha sido estranho. Repleto de loucuras. E pior, ainda não tinha acabado.

Pelo menos era o que eu tinha que ter logo percebido, mas que só fui perceber mais tarde depois de levar um soco justamente no nariz.

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