Cinco
Havia um amontoado de almofadas marrons em um canto da cabine, próximo da porta e de uma enorme estante cheia de livros velhos que eu nunca toquei. O rapaz desmaiado foi jogado ali e os piratas trataram de sair às pressas da sala antes que eu desse um de meus gritos. Por mais que estivessem curiosos com o que aconteceria com nosso intruso — e eu tinha certeza disso, pois eles estavam saindo calmamente, olhando para trás —, eu não daria aquele gosto de felicidade a eles. Primeiro, por terem deixado o navio sozinho para que alguém pudesse ter acesso facilmente, e segundo, porque nunca deixei que me vissem torturar outra pessoa em meu ambiente de conforto. Cruzei os braços e parei em frente ao corpo desacordado, pensando no que fazer com aquela criatura.
Dorn tinha razão, ele estava engomado demais para um ladrão e por sua expressão anterior no convés pude entender que acabou ali em um momento de desespero. Todavia, a pergunta que não saia de minha mente era: como alguém, em sã consciência, não percebeu que estava entrando em um navio pirata para se esconder, e se percebeu, por que resolveu entrar justamente no covil da maldade?
Aproximei-me com cautela do jovem para poder analisar melhor seu rosto. Os cílios, que se moviam como se estivessem sendo forçados a permanecerem fechados, eram alongados e tinham uma cor tão forte, que pareciam pintados com carvão. A pele branca parecia ligeiramente avermelhada, como se estivesse irritada, e seus cabelos tinham a mesma tonalidade escura dos cílios e das grossas sobrancelhas. Os lábios eram avermelhados e pequenos e havia pontos marrons que deixavam seu nariz com um charme diferenciado.
A luz fraca das lamparinas espalhadas pela cabine parecia beneficiar o rosto jovem do rapaz, pois sua beleza se destacou com a pouca iluminação. Ele não tinha um porte físico grande, na verdade, suas roupas engomadas escondiam bem a situação ali e era difícil dizer algo sobre seu corpo. No entanto, elas lhe caíam tão bem, que era ainda mais difícil se atentar a esses detalhes. Contudo, a forma como fora jogado nas almofadas o deixou tão torto, que era impossível não achar graça de seus braços acima da cabeça, boca aberta e pernas dobradas. Parecia um boneco de pano que fora arremessado longe.
Balancei a cabeça antes que risse de fato e tratei de caminhar pela cabine, pensando no que faria com aquele intruso. Primeiro de tudo, queria assustá-lo.
— Vejamos… andar na prancha parece uma boa opção — disse em voz alta, pois tive certeza de que ele estava acordado quando observei seus cílios e deduzi que seus métodos de desmaios eram apenas uma forma de se salvar da morte. Era fácil saber quando alguém estava fingindo algo se seus olhos não ficassem parados quando ainda fechados. — Os tubarões adorariam um petisco.
Sentei-me na mesa e retirei o coldre da cintura, colocando-o ali em cima enquanto observava o rapaz para saber se havia algum movimento de terror de sua parte. No entanto, ele parecia bem empenhado em fingir um desmaio e isso me fez erguer as sobrancelhas, pensando em como assustá-lo de verdade.
— Talvez deixar que os homens brinquem com seu corpo frágil — vi uma reação no rosto fingido e quase gargalhei, porém me contive. Tendo em vista que o tiro que levou não estava incomodando, eu julguei ter acertado em um dos barris de vinho. Lembrei-me do pavor que ele estava ao ver as armas apontadas para seu peito e isso me deu uma luz. Peguei as garruchas em cima da mesa, observei ambas com precisão até escolher a minha, torci para ele não perceber que ela ainda estava molhada e virei em sua direção, destravando-a. — Melhor dar outro tiro para ter certeza que morreu.
Finalmente ele teve uma reação mais evidente. Logo o rapaz pulou das almofadas para se sentar e se encostou na parede de madeira, novamente com seus olhos arregalados. Suas mãos passaram por seu peito em busca do buraco de um possível tiro enquanto eu sentia uma pequena pontada de dor na cabeça. O efeito da ressaca já estava vindo havia um tempo devido a minha irritação com os gritos dele, mas naquele momento a dor começava a crescer.
— Você já atirou em mim! — gritou exasperado, exatamente como gritou minutos antes, fazendo a explosão de dor invadir meu crânio.
Levei minhas mãos à cabeça ao sentir o impacto daquilo e implorei internamente que meu corpo amenizasse a possível ressaca que vinha me fazer companhia.
— Eu errei — falei tentando confortá-lo enquanto massageava a região que começava a doer. — Mas acerto na próxima se continuar gritando.
Destravei a arma seca ainda em minha mão e apontei novamente para o rapaz de olhos grandes. Sua maneira desesperada de encarar o cano da pistola me lembrou de mim anos antes, quando estava prestes a perder minha mão.
Jones tinha pego o cutelo que um de seus piratas havia lhe entregado enquanto ele arrastava meu corpo pequeno até um dos barris. Ele espalmou minha mão ali, sorrindo de forma apavorante. Eu só sabia gritar e pedir para que poupasse meus dedos, pois precisava carregar meu irmão até que ele pudesse andar com as próprias pernas. Antes que o pirata descesse o cutelo em direção aos meus dedos, ele se deteve e me ergueu como se eu fosse um pano sujo para olhar profundamente em meus olhos e perguntar: “onde está esse menino por quem tanto preza?”, mas eu não queria dizer para o homem mau e isso o fez me dar o primeiro tapa de muitos que levaria dali em diante.
— Do que tem tanto medo? — questionei o rapaz ao voltar daquelas lembranças.
— Morrer, é óbvio — falou. Sua voz demonstrava mais medo do que seu corpo, pois as palavras saiam tremidas.
— Sabe o que tem do outro lado? — perguntei e ele negou. Seus olhos tomaram um ar de curiosidade. — Então como pode temer o que não conhece?
— Não temo o lado em si, mas sim as coisas deste mundo que vou deixar para trás sem ter conhecido. — Explicou-me ele e aquilo me colocou a pensar.
Lentamente abaixei a arma que estava pronta para matá-lo e segui minha observação daquele rapaz. Deveria estar próximo da casa dos trinta e não parecia em nada com um guerreiro ou homem de mãos calejadas. A delicadeza em suas palavras polidas e a forma correta de se portar comigo demonstravam que era alguém culto. Talvez um mestre.
— Então gosta de viajar e explorar as coisas? — perguntei interessada em sua resposta. Por mais que suas roupas não fossem a de um aventureiro, seria a melhor explicação para ter ido parar naquele navio. No entanto ele negou novamente. — Curioso… Não é andarilho, mas viaja para muitos lugares? — outra negação e dessa vez eu franzi as sobrancelhas. — Estou confusa agora.
— Existem várias formas de conhecer o mundo sem precisar sair do lugar. — Mantive a face perdida em diversas questões e o rapaz pareceu achar graça. Ele se endireitou no amontoado de almofadas para arrumar seu traje e me olhou de forma mais descontraída. Seus olhos percorreram o salão a nossa volta até pararem na estante cheia de livros empoeirados. — Eles. Me levam para onde eu quiser.
Falou por fim, fazendo-me olhar para aquele amontoado de papéis sem valor, ainda sem entender onde aquele jovem queria chegar. As folhas daquela estante só serviam para aumentar uma fogueira, não havia magia ali.
— Você… — ele tornou a dizer, puxando minha atenção. — Viaja pelos mares e eu pelas páginas.
— Isso não te ajudou muito — falei com desdém. — Afinal, não lutou por sua vida um minuto sequer.
— Confesso que não sou bom em sobreviver com uma arma. — O rapaz deu de ombros para suas palavras e abriu um sorriso fraco em minha direção. — Mas nunca pensei em ir para uma guerra ou lutar por minha vida. Eu vivo e trabalho em uma biblioteca desde quando nasci.
— Como acabou aqui, senhor… —detive-me na pergunta, analisando-o uma vez mais ao me lembrar de que não sabia seu nome.
— Leon Joseph Salles. — O rapaz disse com uma postura orgulhosa ao entender o que eu buscava. Ele ajeitou sua vestimenta tentando causar mais impacto em seu sobrenome, porém eu nunca havia ouvido falar dele. Não era um título.
— Como acabou em meu navio, senhor Salles?
— Não parece algo muito inteligente agora, mas… — ele cruzou suas pernas, talvez para se sentir mais relaxado ou confortável e sempre tentava trocar de posição, parecendo estar em busca daquilo. — Eu corri de um dos seus homens. Ele me atacou enquanto eu fechava a biblioteca, eu corri e quando vi estava na praia. Pensei que o navio fosse de suprimentos para o imperador, que os homens deveriam ter tirado um momento para festejar na cidade e por essa razão deixaram a embarcação lá. Então acreditei que nenhum pirata me procuraria dentro de um navio por terem tantas vítimas pelo caminho.
— Tem caveiras nas bandeiras.
— Eu não reparei, está bem? — confessou ele irritado e eu deixei um riso escapar. — Olha só, você ri — sua observação me fez fechar a cara novamente e Leon mudou sua expressão para algo ainda mais sério, olhando-me de maneira preocupada. — Vai me matar, certo?
— Preciso — disse sem muito floreio. — Aqueles homens lá fora me respeitam exatamente por isso. Por não ter dó.
— Mas você já teve — ele suspirou antes de seguir — dó de alguém?
— Eu cresci sendo assim, Leon Salles — expliquei, vendo seus olhos brilharem com um aparente interesse por aquele assunto. — As pessoas que me amavam morreram quando eu era pequena e as que deveriam ter pena de mim me jogaram nas ruas. Eu não tive bibliotecas, apenas fome e sorte.
— Isso é terrível.
— Sim, para uma criança, e não também — ele franziu as sobrancelhas novamente. — Ao menos eu aprendi a me defender ao ponto de ter um navio com homens que tiveram fome e sorte assim como eu. Então não seria justo que alguém invadisse a casa deles e saísse impune.
— Pensei que não existisse justiça em meio aos piratas.
— De certa forma, não existe — inclinei meu corpo para poder apoiar os cotovelos na mesa. — Se não fizer parte da tripulação é que realmente não terá.
— Faz sentido — ele apertou os lábios e se levantou do chão, batendo nas vestes para se arrumar. — Posso ao menos saber o nome de quem irá me matar?
Havia um enorme chapéu três pontas na mesa, bem próximo de mim, e ouvir sua pergunta me fez pegá-lo para colocá-lo. Em seguida levei meus pés para cima da madeira, fazendo a cadeira inclinar ligeiramente para trás com o peso de meu corpo, como eu costumava fazer ao me apresentar para alguém que teria o prazer de torturar em minha cabine. Por fim, peguei a arma que estava seca na mesa — a mesma que tirei do homem do lado de fora —, destravando-a e apontei na direção do bibliotecário enquanto um doce sorriso escapou de meus lábios. O senhor Salles fechou seus olhos e eu apertei o gatilho.
— Cassandra Jones — falei.
Leon abriu seus olhos depois de passado um tempo da explosão feita pelo tambor. Ele novamente deslizou suas mãos pelo corpo, talvez em busca da bala ou dos vestígios de sangue, porém nada encontrou. Guardei a garrucha no coldre, enquanto seus olhos ainda procuravam o buraco da bala que ouviu ser disparada. Ele só parou quando encontrou a estátua de porcelana partida em diversos pedaços próxima de seu corpo e, mesmo que eu estivesse distante, pude ouvir seu suspiro aliviado.
— Confesso que estou adorando seu desespero — falei após apreciar aquela cena. Ele tornou a me olhar sem entender. — Talvez não lhe mate por hora e se não me irritar… tanto… posso apenas assustá-lo durante um tempo e, quem sabe, te deixar ir quando me cansar disso.
Mesmo que não fosse fazer aquilo, disse que talvez faria para lhe dar esperanças, assim como faria para enganar alguém quando eu precisasse dela. Era divertido dar e tirar aquilo das pessoas. Não vou mentir que o rapaz havia me animado com seu desespero e que sua vida de aventuras na biblioteca me deixou intrigada, com vontade de saber mais. Na verdade, eu queria entender melhor essa parte de sua vida antes de me afundar em dúvidas devido ao meu alto nível de curiosidade.
No entanto, meu motivo de deixá-lo vivo naquele momento era por me recordar de meus pensamentos no convés, lembrei-me da importância de ter um refém e o fato de já ter perdido homens demais durante os anos por conta de barganhas. Eu precisava de alguém descartável caso fizesse uma nova negociação e os homens daquele navio eram inúteis para aquilo.
Assim que o novo mestre do império recebesse meu recado, ele provavelmente desejaria minha morte. Então o jovem bibliotecário seria algo a mais. O imperador poderia querer resgatá-lo.
Naquele instante o rapaz se sentiu aliviado por não morrer, mas deveria saber que eu, como pirata, não era confiável. Qualquer pessoa deveria ter isso em mente. Parece um destino cruel ser alguém facilmente trocável e as pessoas podem não achar certo os modos como os piratas agem, mas o que eu poderia fazer? Havia uma corda em um palanque com meu nome em algum lugar do continente e eu não queria encontrá-la tão cedo.