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Seis

Observei o senhor Salles dormir sereno em meio ao conforto das almofadas enquanto a luz da Lua invadia a pequena janela próxima do rapaz, iluminando seu rosto sereno. Vendo-o desprotegido daquela maneira, eu recordei de uma pessoa que também havia invadido aquele navio uma vez atrás de comida e que acabou presa da mesma forma, dormindo naquele mesmo lugar. Todos os meus pensamentos viajaram para as lembranças do meu primeiro dia no Safira e dei um leve sorriso nervoso ao me pegar sentindo todas as sensações novamente. Sensações que Leon deveria sentir também.

Hugo e eu estávamos sob os cuidados do temido pirata Urley Jones quando eu dormia naquelas almofadas e o que eu via todos os dias me fazia acreditar que ninguém desejaria ter uma vida daquelas. Era impossível não reconhecer o capitão assim que o via pela primeira vez, pois seu rosto estava desenhado por toda cidade com a enorme frase em cima de sua cabeça avisando a população para que tomassem cuidado ao encontrá-lo e que, caso fosse possível, o entregasse às autoridades.

Dias antes de me largar em um grande buraco dentro de seu navio, Jones havia olhado fundo em meus olhos quando quase arrancou meus dedos e me viu gritar de desespero pelo nome de meu irmão. Ele se deteve por um momento, apenas para me perguntar por quem eu chamava e não acreditou quando eu jurei ser apenas uma criança que dormia próxima dali. Talvez por nunca ter confiado de fato em alguém em toda sua vida, ele me obrigou a mostrar onde a pessoa estava, esquecendo-se de arrancar minha mão para o meu alívio.

Quando chegamos na gruta onde eu havia deixado meu irmão, ele percebeu que éramos apenas crianças com fome e que foi essa a razão de uma garotinha tentar lhe roubar. Urley apenas sorriu abertamente, sem nos dar escolha depois disso. Ele ordenou que seus homens pegassem as crianças e nos arrastou de volta para a embarcação de ladrões, jogando-nos em um porão escuro embaixo dos pés do capitão. Os dias pareciam passar lentamente durante nossa estadia na escuridão. Os gatunos só abriam a portinhola para nos alimentar, somente quando estavam fartos de ouvir o choro de Hugo se elevar e isso se estendeu por longos dias.

Eu havia perdido as contas de quanto tempo fiquei ouvindo as botas de Jones baterem em cima de minha cabeça, mas, em um momento, quando se cansou de ouvir meus gritos e arranhões na madeira, ele abriu o buraco e me puxou pelos cabelos para o lado de fora, deixando meu irmão ainda dentro daquele lugar escuro. Isso me proporcionou mais pavor e outra chuva de gritos ecoou pelas paredes da cabine. Foi quando eu recebi o segundo tapa do enorme pirata ruivo, que me fez cair nas almofadas aglomeradas no canto da sala de madeira. Jones tomou minhas mãos — machucadas e ensanguentadas por quebrar as unhas com as arranhadas na portinhola —, com brutalidade e as examinou. Sempre apertando meus pulsos fortemente, impedindo-me de recuar. Quando acabou sua análise, o homem me jogou de volta nas almofadas e caminhou pela cabine, percorrendo os locais a sua volta em busca de algo.

Ele levou um tempo para achar o que precisava e eu observava para onde exatamente seus pés iam, pois se fosse em direção a portinhola onde meu irmão estava, eu tentaria impedi-lo de sabe-se lá o que planejasse fazer. Porém, no momento que seu corpo parou, ele se voltou à enorme estante cheia de livros bagunçados e seus olhos se focaram em algo no alto. Na última prateleira.

Urley se dirigiu até aquele lugar e pegou o pequeno porta-retratos para retornar até mim, fazendo meu coração disparar com o medo do que aconteceria em seguida. O homem se abaixou ao cortar a distância entre nós e, em meio a sua camada enorme de barba, eu vi um pequeno sorriso medonho. Jones segurou uma de minhas mãos novamente — desta vez um pouco mais paciente —, mesmo que eu tentasse não deixá-lo me tocar, e colocou o porta-retratos nela. Seus olhos fizeram um gesto sutil para olhar a imagem do objeto, motivando-me a seguir aquele movimento.

Meu olhar se encontrou com a pintura do pequeno retrato, o desenho de uma família sorridente e empolgada. O homem alto não tinha barba como Jones, mas era ruivo também, com cabelos bem aparados e vestes caras de um lorde. A mulher sorria de maneira apaixonada ao olhar para ele, usava um lindo vestido vermelho drapeado que iluminava ainda mais sua beleza e seus cabelos, mesmo que ruivos, tinham uma tonalidade mais clara do que o restante da família. Havia ainda duas crianças juntas do casal, uma menina, aparentando ter seus doze anos e assemelhando-se a minha idade, que era bem parecida com o homem da foto, e seu irmão menor, que estava a sua frente com o maior sorriso de todos ali e segurava uma enorme pipa entre seus dedos.

Observei aquela família com mais interesse, pois os olhos daquele homem na pintura eram exatamente como os do pirata a minha frente. Quando tirei minha atenção da imagem para ter certeza daquilo, encontrei um grande e sujo homem com os olhos cheios de lágrimas. Voltei a observar a imagem e depois o local onde estávamos, até que tive uma pequena conclusão do que ocorria naquele momento.

Por mais que estivesse com receio de tudo ao meu redor ainda, eu era apenas uma criança que havia entendido a dor de alguém e isso levou meus dedos ao rosto do grande homem para lhe acariciar, vendo-o desmoronar com aquele gesto. Embora Jones nunca tivesse me contado o que havia ocorrido com sua família, eu tive minhas suspeitas anos depois quando conheci as histórias do povo da ilha de Dafhit e seu destino, pois o pirata tinha orgulho de dizer de onde vinha e que se aquela terra ainda existisse, ele teria uma plantação de alfaces para vender aos mercadores ao invés de roubá-los.

As histórias diziam que Rindell — um dos maiores reinos e grande inimigo do império — invadiu a casa Diden, povo de Dafhit, destruindo tudo, matando e escravizando aquela terra. Algumas pessoas conseguiram escapar durante essa tragédia e os sobreviventes que ficaram da catástrofe só foram libertados anos mais tarde pelo segundo imperador, mas quando isso ocorreu, aquele pirata já tinha perdido a felicidade que conhecia e isso o levou ao destino dos mares.

Voltei meus olhos ao rapaz de cabelos castanhos que ainda dormia com tranquilidade em minha cabine e o agradeci mentalmente por me dar aquela pequena recordação. Algo que apenas eu e Jones tínhamos e que me lembrou também do motivo de minha lealdade, mas que acima de tudo me fez entender parte do seu desespero. Eu lembro de no começo não querer aprender a ser ruim como os homens daquela embarcação eram, mas com o tempo percebi que precisaria ser. Salles não tinha uma história como a dos piratas do Safira. Todos ali deviam algo ao mar ou não tinham nada na terra. Mas ele tinha e parecia bom demais para estar lá até onde eu observei.

— O que vai fazer, Cassandra? — sussurrei a mim mesma, tentando entender o porquê de repente eu estava preocupada com alguém.

Peguei a laranja em cima da grande mesa do capitão, onde Jones se sentava quando eu estava no lugar de Leon, e puxei meu punhal para descascá-la enquanto meus pés acariciavam a portinhola debaixo deles, aquele mesmo lugar horrendo que assombrava meus sonhos. Dei um longo suspiro, ainda perdida em devaneios.

A pequena sombra se moveu pela cabine em direção ao corpo adormecido. A criaturinha estava escondida em algum lugar por ali fazia dias, sem dar as caras. Porém, quando percebeu um invasor em seu domínio, tratou logo de se aproximar para sentir o cheiro do corpo adormecido. Ele encontrou um objeto brilhante preso à roupa do homem e ao tentar puxá-lo, assustou-se. O rapaz na minha frente se mexeu com a presença da criatura e seu rosto se virou para mim, fazendo a pequena sombra correr para a escuridão de onde tinha saído. Os olhos brilhantes do bibliotecário abriram lentamente enquanto a luz tentava acariciar seu rosto. Ele demorou um tempo para acordar por completo e, durante seu processo de despertar no meio da madrugada, eu segui descascando minha fruta.

O silêncio pairava por toda a embarcação, pois os homens se revezam para dormir durante a noite para não sermos pegos de surpresa por qualquer coisa que surgisse em meio à escuridão. Os que ficavam acordados cochichavam entre eles com o maior cuidado para que o som não chegasse até mim.

O rapaz colocou o peso de seu corpo em seus cotovelos, ainda tentando entender onde estava. Então retirou seus óculos do bolso da camisa e os colocou para tornar a observar o ambiente. Passou mais um tempo até que ele se concentrasse em mim novamente e se atentasse em minhas mãos trabalhando para descascar a fruta.

— Cassandra — chamou-me ele, quebrando o silêncio. Salles pigarreou e engoliu em seco antes de seguir. — Onde você dorme?

Perguntou finalmente, seus olhos ainda analisavam cada canto daquele lugar em busca de algo que lhe desse essa informação, mas não havia uma cama na cabine. Eu não me lembrava da maciez de um bom colchão, havia perdido o conhecimento desse conforto muito tempo atrás, mas ele conhecia e deveria ser estranho não ver alguém ter aquilo. Algo que parecia ser simples.

Parei de descascar a laranja para apontar com o punhal em direção ao amontoado de almofadas onde ele estava e vi, mesmo que de longe, o rubor dominar sua face.

— Me desculpe — ele falou depois que seus pensamentos se organizaram. — Tomei seu descanso. Eu não…

— Não se preocupe — mordi um pedaço grande da fruta e seu suco deslizou por meus dedos, molhando os anéis. Fiz uma careta quando minha língua sentiu o gosto azedo e lancei a laranja para longe. Vi o movimento rápido da pequena sombra correr na direção em que a fruta foi jogada. Logo ele iria descartá-la também, quando sentisse o gosto azedo. Coloquei os cotovelos sobre a mesa e passei a lamber os dedos para que o melado da fruta não começasse a grudá-los uns nos outros. — Quando se está em meio a um bando de psicopatas, você tenta não dormir muito.

— Acho que preciso me conter então — sussurrou ele com a voz trêmula.

Observei-o com o canto dos olhos e percebi que seu olhar estava direcionado à sombra pequena. Suspirei alto para chamar sua atenção, afirmando suas palavras quando recebi seu olhar, pois eu mesma não era uma amiga para ele. Não seria bom confiar seu sono a alguém com uma faca na coxa.

— Ler pode ajudar nessa questão, talvez distraia minha cabeça — continuou ele.

Salles se levantou para caminhar pela escuridão da cabine e eu o observei com os olhos cautelosos. Coloquei meus pés em cima da mesa e meu corpo reclinou na cadeira. Meus dedos, já limpos, passaram a brincar com o punhal nas linhas da madeira. O chapéu em minha cabeça cobria parte de meu rosto e isso não o deixava notar minha atenção em seus passos. Ainda que aquele rapaz não tivesse nada de perigoso em sua aparência, eu havia aprendido com a vida que pessoas mentem facilmente sobre seu caráter e passei a confiar o mínimo possível em meus olhos, principalmente com qualquer primeira impressão. Pude ver também que minha pequena criatura estava atenta àquele intruso, tão desconfiado quanto eu, pois sua sombra seguia os passos do bibliotecário, tentando não chamar tanta atenção.

— Você tem muito conteúdo interessante aqui — observou o rapaz. Suas mãos estavam atrás das costas e seus olhos percorriam calmamente as prateleiras e títulos das estantes, onde ele havia parado seu passeio para analisar com precisão, mesmo que a fraca luz da Lua dificultasse esse processo.

Soltei o punhal para pegar o fósforo e acendi a lamparina sobre a mesa, dando um pouco mais de iluminação ao ambiente para facilitar sua observação. Ele me olhou em seguida, talvez esperando uma confirmação de minha parte sobre o que dissera daqueles livros. No entanto eu nunca havia pego um deles para saber o que eram e tudo o que fiz foi dar de ombros, como se não fosse relevante que ele soubesse o que eu pensava das histórias daquela estante.

— Não é adepta à leitura, suponho — ele continuou e isso me fez revirar os olhos com irritação. Uma de suas mãos pegou um livro e o abriu, direcionando as páginas para a luz da janela. Ele inclinou ligeiramente seu corpo para poder ler e eu continuei em meu silêncio. — Bom, faz tempo que não cuidam desses livros. Alguns estão quase se desfazendo.

Ele continuou falando, parecendo um papagaio. Seus dedos alisavam a capa do objeto enquanto ele estreitava os olhos como se aquilo em sua mão lhe mostrasse tudo o que ocorrera durante seu tempo na estante. Voltei a pegar meu punhal, girando sua ponta em um dedo enquanto fixava minha atenção naquela cena e me questionava se realmente era possível que ele tivesse aventuras tão grandes com apenas palavras presas em uma folha. Eu já conseguia ver com mais clareza também a pequena criatura da cabine, com seu casaquinho azul de boneca e os olhos tão focados no bibliotecário que parecia estar preso em uma hipnose.

— Você alguma vez pegou esses livros para ler? — questionou-me o senhor Salles e eu suspirei sem lhe dar uma resposta. — Me disse que cresceu assim, nesse lugar com esses piratas e me pergunto se algum desses homens ou das pessoas que conheceu lhe ensinaram…

— Isso nunca foi importante, tagarela — o interrompi. — Eu tinha que sobreviver e palavras em papéis não fariam isso por mim.

— Sabe, os livros podem te confortar também e acho que se você desse uma chance para a leitura… — soltei outro bufar longo para que ele entendesse o quanto aquele assunto estava me incomodando e isso o fez voltar toda sua atenção para mim. Eu não conseguia ver bem seu rosto, mas o tombar de sua cabeça me dizia que ele tinha uma certa curiosidade e que queria se aprofundar naquele assunto. — Você não sabe ler, sabe?

Questionou por fim. Essa pergunta fez meu orgulho tomar a frente de mim, como se não saber de algo fizesse todos os meus sentidos se perderem. Meu punhal foi cravado na mesa com força e limpei os dentes em seguida de maneira ameaçadora. Salles deu um passo para trás, com certo receio de minha reação e deitou mais sua cabeça, talvez para ver meu rosto iluminado pela luz fraca. O pequeno sorriso surgiu em sua face um instante depois de me observar e ele caminhou em minha direção com uma confiança que não havia demonstrado ter até aquele momento.

— Não precisa se envergonhar — ele disse, parando em minha frente.

— Calado ou te jogarei no mar — o ameacei, mas o rapaz com óculos tortos abriu mais seu sorriso para assumir uma expressão amigável.

— Eu te ensino.

Mantive meu olhar duro, ainda sentindo a grande fúria me percorrer. Por mais que não fosse filha legítima de Jones, eu aprendi muita coisa com o pirata e orgulho era o que ele tinha de melhor para ensinar. Ele sempre afirmava saber de tudo sobre o mundo, dizendo que ninguém tinha mais conhecimentos do que sua vivência pelos mares. Em algum momento da minha vida eu passei a acreditar vivamente naquilo e até tomei suas palavras para mim mesma. Eu sabia que sempre haveria mais a aprender ou descobrir, mas nunca quis questionar um homem duas vezes maior do que eu, com o temperamento forte e uma lâmina afiada escondida em sua perna de pau, era quase como decretar minha morte. Depois de ouvir as mesmas histórias e argumentos, as pessoas passam a acreditar e até a se apegar a certas coisas. Eu não fui diferente disso, então ser criada como filha e sombra de uma pessoa assim me tornou uma simples cópia.

Salles tinha outra visão das coisas, o que ele havia aprendido em seus livros me deixava intrigada para entender mais, porém esse ego me impediria de perguntar, mas se ele me ensinasse a navegar pelas palavras como fazia, eu poderia responder cada questão sobre aquilo, sozinha.

— Não deve ser grande coisa aprender isso. Afinal, a vida nos ensina algo de verdade — disse ainda tentando manter meu ego. Salles não apagou seu sorriso e deu o último passo para abaixar seu corpo ligeiramente, segurar o punhal de minha mão e tentar retirá-lo. Apertei o objeto com firmeza quando a desconfiança gritou em meu interior e ele continuou me olhando nos olhos. A pequena criatura da cabine se agitou e subiu em cima da mesa para mostrar os dentinhos ao rapaz, que se assustou levemente, mas permaneceu ali, firme.

— Existem livros sobre piratas — falou voltando seus olhos castanhos para mim, enquanto suas palavras atingiam o nível mais alto de minha curiosidade.

O pequeno macaco, que já era visível devido à luz da lamparina, deitou sua cabecinha com as palavras do bibliotecário, também parecendo interessado. Em vez de tentar voltar a tirar a arma de mim, o rapaz afastou minha mão para deixar a mesa livre e colocou o livro ali com suas páginas abertas. O macaco inclinou seu corpinho para ver algo que havia lhe chamado atenção e meus olhos se abaixaram, seguindo minha curiosidade. Haviam diversas palavras espalhadas pela folha e no final da segunda página estava o desenho feito em carvão de um navio muito parecido com o Safira. Meus olhos se encantaram com aquilo e já era impossível esconder a empolgação que eu senti ao ver que a história da minha vida poderia estar escrita ali. Toquei no pequeno desenho do navio para sentir o relevo que fizera no papel ao ser moldado ali e voltei a olhar para o rapaz de orbes brilhantes.

— Posso te ensinar a ler todos eles — sussurrou, apontando com a cabeça para a enorme estante ao longe.

Salles endireitou sua postura em seguida e me esperou pensar na proposta que, admito, tinha ganhado um sim no instante em que mencionou meu mundo.

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