Capítulo 3 - Karen
Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
Clemente, o Misericordioso,
Soberano do Dia do Juízo.
Eu já não sabia quantas vezes tinha rezado e pedido para que Deus me perdoasse. Mas acreditava que era a única coisa que poderia fazer por ter me deixado levar por um beijo. O que mais poderia acontecer se ele não tivesse ameaçado tirar meu hijab? Eu não tinha uma resposta boa para isso.
Minha mãe morreu quando eu tinha apenas 14 anos e desde então, Sra. Zilena me deixou assumir o trabalho que minha mãe fazia na mansão em troca de ter onde morar. Uma das lições que mamãe mais repetiu foi que eu nunca me casasse com um homem que não respeitasse a mim e ao meu corpo.
Karim já tinha encabeçado a lista.
Não somente pela atitude que teve comigo, mas também porque havia sido o primeiro homem com o qual eu tivera um contato tão íntimo que não fosse um falar. E era corando violentamente que eu lembrava que tinha tido o meu primeiro beijo de uma maneira intensa até demais. Seria assim com quem quer que viesse a ser meu marido? O agarrar íntimo? Balancei a cabeça negativamente tentando esconder esse pensamento. Não eram pensamentos apropriados.
Como era domingo e não havia lá muito o que fazer, peguei meu lápis e minhas folhas e comecei a desenhar sem saber muito onde queria chegar. Normalmente, as roupas que eu fazia já vinham perfeitas na minha cabeça, em alguns casos de roupas femininas e quase sempre em masculinas, eu me deixava vagar até que eu mesma me surpreendia com o que via. Conforme os traços iam se formando, comecei a sorrir. Era um lindo vestido.
Provavelmente para alguma coisa mais formal ficaria ótimo em Ag. Era redondo como um bolo, mas de uma cor forte como o roxo ou o vinho provavelmente seria triunfante. Seguiam em tons fortes de roxo e vinho subindo num degrade até a cintura onde mantinha se lilás e acompanhava lindos botões dourados, uma manga comprida também clara, mas com o fim da barra próximo do pulso em um tom roxo escuro. Não sei quanto tempo perdi desenhando e ajeitando, e acrescentando detalhes, apagando outros, enfim. Era uma terapia para mim e eu sempre esquecia da hora.
Por isso, quando Nádia, a cozinheira do palácio de inverno, bateu na porta e colocou o rosto para dentro, eu realmente achei que ela me chamava para almoçar, mas ao ouvir o que ela tinha a dizer, congelei imediatamente:
― A senhora Agnes pediu para eu te chamar. O Príncipe está lá também, acho bom vestir algo apropriado. ― Ela cochichou como se estivesse contando um segredo. Arregalei os olhos sem acreditar no que ouvia, mas concordei balançando a cabeça num gesto afirmativo e engolindo em seco.
Nádia mal saiu do quarto, passei a mexer em todos os cantos procurando alguma coisa decente para cumprimentar o príncipe. Depois de alguns segundos, meu cérebro pareceu funcionar novamente e eu tive uma ideia.
Não queria impressionar o príncipe ou coisa parecida. Na verdade, se possível, não queria olhá-lo nunca mais para não sentir minhas bochechas arderem. Mas como eu sabia que isso não era possível, eu precisava deixar uma mensagem: eu era uma moça direita.
Busquei um dos hijab mais sérios que eu tinha de cor preta acompanhando roupas do mesmo tipo com leves e sutis toques de branco na seriedade, mas ainda mantendo-me nesse aspecto. Estava ótimo, conclui. Se fosse necessário usar um niqab na frente do príncipe, eu faria. Me julgassem! Mas eu estava apavorada depois do meu primeiro beijo!
Não demorei para descer e ir até a sala de estar onde Agnes costumeiramente recebia as pessoas. Ali encontrei minha amiga incomodada com o homem a sua frente mexendo as mãos impacientemente. Ela não fazia questão de esconder que olhava toda hora para o relógio enquanto resmungava porque Seth estava demorando tanto para comprar uma torta de morango, como ela lhe pedira.
Também percebi que Al estava ali, provavelmente para se certificar de que não haveria nenhum mal entendido. Franzi o cenho e ignorei o príncipe. Não queria trocar olhares com ele até o momento que fosse necessário. Eu precisava honrar os ensinamentos que minha mãe havia me deixado.
― Me chamou, Srta. Agnes? ― Perguntei.
Se Agnes percebia a forma como eu estava incomodada, ela não demonstrava, já que ela apenas suspirou antes de tomar sua atenção de mim para Karim.
― O príncipe Karim pediu para que eu te chamasse. Ele estava preocupado com nós duas. ― Informou. O silêncio pairou no ambiente. Se havia alguma coisa que precisava ser dita, ela demorou para ser falada e foi Karim que tomou a palavra:
― Na verdade, aproveitando que vocês duas estavam aqui, eu vim pedir desculpas. Fui um péssimo anfitrião, deveria imaginar que a mansão estaria quente demais e poderia provocar enxaquecas nas damas. ― Começou. Minha atenção voltou-se completamente para ele. Não sei porque fiquei a pensar que a mansão quente demais parecia ter um duplo sentido bem significativo, mas me limitei a ficar em silêncio, porque não sabia o que o príncipe estava fazendo. ― E como pedido de desculpas, eu vim convidar a família Abdul e a Srta. Karen para estarem presentes num almoço que realizarei no interior, na Mansão dos Hila, onde fica o meu Aras. ― Sem conseguir esconder minhas emoções, acabei arregalando os olhos, surpresa.
Porque ele estava me convidando para isso? Teria realmente ficado tão incomodado pelo que tinha me feito? Isso era bom, queria dizer que ele sabia do erro que havia cometido. Por sua vez, eu não queria o ver nem pintado de ouro, porque me lembraria da dupla vida que ele levava e o quanto isso me enojava. Não que eu devesse me importar. Na verdade, sim, pois se ele for realmente muçulmano, está desgastando a visão da minha religião.
― Almoço? ― Agnes parecia tão surpresa como eu.
― Não se preocupe. Estou comunicando as duas, mas falarei com Seth assim que eu sair daqui. É só porque queria poder me despedir face a face com vocês por não ter sido um bom anfitrião. De qualquer forma, espero que vocês apareçam. Prometo ser um anfitrião melhor. ― Ele disse entre risadas.
Eu e Agnes estávamos perplexas demais para esboçar qualquer resposta, mas Karim pareceu interpretar nossa resposta como um sim, já que ele abriu um largo sorriso se despedindo de nós e prometendo falar com Seth naquele mesmo dia. Agnes só acordou do susto quando ouviu alguns empregados recepcionando o príncipe para fora, o que a fez me encarar no mesmo segundo.
Imediatamente, senti minhas bochechas corarem enquanto Agnes vasculhava o meu rosto em busca de respostas. Quando ela suspirou, eu sabia que devia contar a verdade da noite anterior para Agnes. Quem sabe assim ela pudesse me ajudar.
― Você quer falar? ― Ela me perguntou. Olhei para Al parado num canto. Não que eu não confiasse na sua figura, sabia que ele não contaria nada para ninguém, mas a questão ali era ter um homem ouvindo que eu tinha deixado outro homem me agarrar. Isso sim me corroeria por dentro. Já bastava Deus ouvindo minhas orações desesperadas para que me perdoasse e perdoasse o homem que não cumpria direito suas leis.
Agnes pareceu perceber o meu desconforto e voltou sua atenção para Al compreendendo as entrelinhas.
Agradeci aos céus por Ag ser tão perspicaz e, claro, por ser minha amiga.
― Al, pode me deixar a sós um pouquinho? E fala para o Seth esperar com minha torta na cozinha. Conversa de meninas agora. E ah, fecha a porta. E manda um beijo para a Fer.― Al concordou rindo e saiu imediatamente da sala de recepção de visitas, o que me deixou a sós com Ag.
Precisei de alguns segundos para recuperar a minha voz e começar a contar o que havia acontecido no palácio real.
― E-Eu estava ontem procurando um banheiro para usar, porque o perto do salão estava interditado por uma mulher. E-Eu perguntei a-a um fu-funcionário e ele me falou que havia no andar superior. E-Então eu fui procurar e entrei num quarto, mas era o quarto do príncipe e-e ele estava esperando vi-visita e… E era uma mulher sem sorte no mundo… E ele me confundiu e… e… me beijou. E eu nunca fui beijada, e não gostei de ser beijada pelo príncipe, po-porque ele não segue direito o islã… e eu… ― Agnes me cortou antes que provavelmente eu me engasgasse com minha própria falta de trejeitos para falar. Estava terrível. Me admirasse que ela conseguisse me entender.
― Não precisa explicar mais, Karen. Eu super compreendo. ― Agnes pareceu refletir um pouco antes de suspirar. Havia pesar em seus olhos. ― Mas receio que não poderei fazer muita coisa além de ficar em seu encalço o almoço inteiro. ― Arregalei os olhos de pavor. Eu não estava contando com a ideia de que haveria de ir. Agnes logo se explicou abanando a mão de várias maneiras: ― O Seth provavelmente vai ir. Por que tem aquela coisa de clãs e os que apoiam a empresa são mais fiéis ao príncipe do que a Seth. Ele deve ir e, de quebra, se não formos, isso será considerado uma afronta para os clãs… Afinal… Fomos… Fomos convidadas pelo próprio príncipe! ― Ela exasperou.
Não consegui segurar a agonia que me tomava conta, sentando-me no sofá ao lado agora que minhas pernas perdiam as forças e tampei o rosto com as mãos. O que eu faria? Não queria olhar para o príncipe, mas ele aparentemente queria se desculpar.
Daria uma chance, um voto de confiança para ele de que era isso mesmo? Que ele queria apenas se desculpar? Acreditaria no falso seguidor? Não havia muito o que fazer, pelo visto. E isso me deixava tomada de medo.
― E não precisamos ficar muito tempo também. ― Continuou Agnes vendo como eu enfrentava as duras palavras. Tirei minhas mãos do rosto voltando minha atenção para Agnes novamente.
― Tudo bem. Vai dar tudo certo. Afinal, ele só quer se desculpar, não é mesmo? ― Sorri amarelo. Era muito ruim da minha parte nutrir esse tipo de esperança? Deveria ameaçá-lo de que contaria tudo para o Sheikh se ele tentasse algo novamente? Mas, afinal, o que o Sr. Rashid poderia fazer? Era difícil ir contra a palavra do Príncipe alegando que eu estava devaneando.
― Karen… ― Agnes então segurou a minha mão como uma mãe que quer dar conselhos. Abri mais os olhos. ― Fique ao meu lado e, de jeito nenhum, saia dele. Eu não tenho um pressentimento muito bom desse almoço. ― Pensei que Agnes continuaria se explicando sobre o porquê ela não tinha um bom pressentimento, mas ela se manteve em silêncio, como se refletisse sobre algo que eu nem mesmo sabia.
Encarei isso como um sinal de que já tinha dado minha hora de partir e sai da sala antes que eu surtasse, não que eu já não me sentisse assim ao pensar em ver o príncipe mais uma vez. Decidi esquecer por ora o medo que eu tinha dele e voltar a me concentrar nos meus desenhos.
Era o melhor que eu poderia fazer.