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A DETENTA E O CARRASCO

(AURORA)

Um alarme soou, a porta foi aberta por algum sistema automático e a ruiva que entrou com certeza estranhou a minha presença. Eu já tinha parado de chorar, já imaginava que alguma outra pessoa compartilharia o quarto comigo, mas não fazia ideia de quando as coisas iriam andar.

— Oi. — comprimentou a moça assim que me viu — Quem é você e o que está fazendo aqui?

Era uma mulher bonita, jovem, loira e de olhos verdes. Não que o crime tenha aparência, mas o que ela teria feito pra ter um sinalizador no tornozelo, prisão perpétua e estar aqui?

— Aurora. Eu estou presa. — respondi, mas só depois que falei notei que respondi o óbvio — Ah, eu ainda não… não…

Uma senhora entrou no quarto, findou minha falha tentativa de comunicação e junto dela havia mais dois homens. A jovem loira imediatamente tomou uma posição ereta ao lado da cama, enquanto a mulher magra e esguia me olhava de um modo carrancudo. Séria, com um chicote na mão e luvas negras, a mulher vestia um terninho de estilo militar, mantinha os cabelos brancos presos num perfeito coque e usava suas rugas para elevar a arrogância de seu ar.

— Não foi julgada, não entrou em processo e veio parar aqui. — resmungou de queixo em pé — Soube que tem informações de interesse da coroa, isso não significa que está absenta das regras e leis que uso para manter a ordem neste mausoléu. Entendeu? Inclusive, mantenha-se de pé.

A loira me olhava com cuidado, enquanto eu me levantava devagar. Arrumei as roupas que estava usando do hospital, juntei as mãos em meu colo e engoli em seco.

— Sim senhora. — respondi baixo.

— Olhe para mim e gesticule. Não ouvi direito. — incitou a mulher.

— Sim senhora. — respondi um tom mais alto.

— Temos tempo e horário para tudo.Tudo. Responda a vistoria e não me dê trabalho. Teremos uma relação em perfeito estado se respirar menos ao meu lado e trabalhar mais quando for ordenado, entendeu?

— Sim senhora. — respondi elevando a voz.

— Me dê a sua papelada. — eu engoli em seco, pensei num envelope amarelo nas mãos do oficial e fiquei sem graça — Está se fingindo de surda?

— Não há nenhum papel comigo, senhora. — contei de mãos vazias.

— Esses idiotas com algumas gotas de sangue azul, devem achar que meu setor é uma zona. — reclamou impaciente — Veio de que setor? — engoli em seco novamente, já que eu não fazia ideia do que ela estava falando — Se eu tiver que perguntar de novo, vou testar meu novo instrumento de organização, para ver o quanto ele é eficaz! — ameaçou levantando o chicote.

— O único que conversou comigo foi o oficial Kennedy. — contei para a mulher, mas ela mantinha a cara de carrasco — Não fui informada sobre setores ou procedimentos, o oficial apenas me trouxe.

— Athos Kennedy? — eu confirmei — Hum, vejo uma execução num processo não tão distante. Uma a menos para eu me preocupar. Sendo assim, coloque-se nos eixos. Até o dia em que sua cabeça se separar do seu pescoço, não quero problemas, entendeu? — eu concordei — E é madame Gioconda. Decore, não vou repetir de novo.

— Sim, madame Gioconda.

— Ótimo.

A mulher se virou, saiu com seus guardas e a porta se fechou fazendo o mesmo “beep” de quando o oficial foi embora. O ar pareceu ficar menos pesado e a loira me olhava com muita pena.

— As únicas que tiveram um processo adiantado na cela, foram para a execução. Ainda assim, eles passaram por um julgamento. Você não? — eu neguei — Sinto muito.

Levando em consideração a raiva do oficial Kennedy e sua intriga com Rato, existia mesmo a possibilidade do meu pescoço ir parar numa corda. O que eu ia fazer? Pelo menos consegui engolir a vontade de chorar.

— O que eu vou ter que fazer aqui? — perguntei indo até a janelinha pequena e espiando lá fora.

— Geralmente lhe dão uniformes na entrada, colocam o rastreador no seu tornozelo e te marcam. Nesse caso, tem uniforme de sobra nesse armário. — A loira pegou uma troca e me entregou um macacão marrom desbotado — Meu nome é Ella, e o seu?

— Aurora. — respondi abrindo a roupa — Obrigada.

— O horário do banho já foi, e se não for uma das primeiras, toma banho gelado. Fique esperta com as maiores, elas costumam roubar comida das novatas. A velha carrasco fala de ordem, mas ela só separa uma briga depois que tem alguém quase morto, ou morto. E fica longe dos guardas, você é muito bonitinha pros tarados que tem aqui.

Ella deitou na sua cama, puxou o cobertor escuro e se virou de costas. Aproveitei a pequena privacidade, me troquei e fiz o mesmo, tentei decorar as palavras da loira, mas rezei para dar conta da rotina do dia seguinte. Eu não quero problemas com o carrasco Gioconda, muito menos receber a visita de um oficial irado com mais problemas na minha ficha.

Eu queria entender o porque eu ainda me deitei pensando nele. No fundo eu sei o que ele pensa. Ele detesta ladrões metidos a justificativas santas, e eu sou o que ele geralmente “detona” na base da lei, ou na surra. Athos Kennedy me desaprova, e eu me sentia envergonhada por estar na lista dos "desaprovados''. Restava eu entender o motivo pelo qual isso me desapontava tanto.

(...)

Um alarme soou, Ella foi o meu guia e minha rotina começou. Camas organizadas, ordens de Gioconda e trabalhos designados. Antes, o maravilhoso café da manhã. Uma gororoba branca e sem doce, sem sal e com gosto de algo esquisito. O refeitório era só um espaço pequeno e lotado, feito para você esbarrar em qualquer um e arrumar encrenca gratuita.

— É melhor comer, não vai aguentar limpar os banheiros o dia todo de estômago vazio. — pediu Ella, tentando me ajudar.

Enfiei uma colher na boca, fiz cara feia e me esforcei para engolir. No momento seguinte, a bandeja foi puxada para o lado e as “grandonas” do lugar estavam ao dispor. Uma merda, pois eu jurava que ia me encrencar mais tarde.

— É verdade os boatos? Você é da execução? — eu não respondi tirando a colher da boca — O que você matou, o gato do rei? — cutucou a mulher, fazendo as outras atrás dela rir.

— Ésmer, deixa a menina em paz. — pediu Ella.

— Shiu, loira bonitinha. — ordenou a mulher grande — A gente tem um extra pra entregar, dê conta do seu e do nosso e vai conseguir comer numa boa amanhã.

— Não. — respondi engolindo em seco, mas mantendo minha negativa.

Ela e as amigas se entreolharam, perceberam minha ousadia e tentaram de novo.

— Acho que você não entendeu, sem essa de “não”. Você vai, pronto e acabou.

Ella tentava fazer uma negativa para mim e eu só tinha uma colher na mão. Dane-se, usei ela mesma. As ruas não me deixou preparada para enfrentar o olhar do oficial sobre mim, mas me deixaram acostumada com os mequetrefes com quem eu tinha que me dar. Segurei a colher pela concha, levantei rápido e fui com o cabo contra o olho da grandona.

Ela cambaleou para trás, gritou com o olho sangrando e a outra amiga partiu para cima. Desviei, pulei na mesa, peguei a colher de Ella e pulei nas costas da outra. Dei várias “cabadas” contra as costas da outra, enquanto ela correu para trás e me bateu contra algo duro, o que me fez cair. Meu corpo levou um baque, eu caí no chão e quando ela foi socar, desviei e como um gato, me mantive de pé. Chutei a cara da vadia, soquei e meti outro golpe. Logo ela estava tonta e cambaleando, e quando a merda ia ficar melhor, levei um tiro de borracha.

Atiraram no pátio, todo mundo abaixou e um grupo de guardas se manifestou no local. O ombro estava dolorido e eu gritei de dor, ainda no chão. Me pegaram pelo braço, Ella me olhou penalizada e me levaram de lá. Minha manhã foi simples, comecei super bem.

(...)

A sala fria em que me colocaram era assustadoramente medonha. Prenderam os meus braços no alto, rasgaram minha roupa nas costas e no momento seguinte, o carrasco Gioconda apareceu na sala.

— Os novatos sempre dão trabalho. — resmungou ao se colocar na minha frente, séria e enojada.

Ela deu uma volta, eu já sabia o que ela ia fazer e só me restava sofrer até acabar. Seus guardas mantinham sua pose firme, eu tentava pensar em algo além da dor que estava por vir, até que senti o primeiro açoite. Engoli em seco, suguei o ar entre os dentes e recebi mais um, mais um, e de novo. Um atrás do outro, fazendo a pele arder, latejar, doer e a dor crescer a cada esticada que o chicote fino pegava na pele. Meu corpo virou solavancos presos pelas correntes, minha garganta não aguentou e eu passei a berrar com as esticadas brutas nas costas.

Não foi um processo rápido, já que a mulher não tinha apenas intenção de me castigar, ela queria ferrar com as minhas costas. O silêncio era uma desgraça, pois a cada vez que minhas costas eram açoitadas, meu grito fazia eco e voltava contra meus próprios ouvidos. A pele era um papel fino rasgando, o sangue desenhava as investidas da mulher sádica e eu estava me perguntando quando foi que fiz xixi. Quando me soltaram, caí em cima dos meus líquidos, bati com o corpo contra o chão molhado e tremi.

— Você tem meia hora para se limpar e se trocar. Se eu tiver que chamar sua atenção, seja lá qual for o motivo, vai levar outra surra. — comunicou o carrasco Gioconda — Ao menos estarei fazendo um favor à coroa.

A sala ficou vazia, e eu tentei me levantar. E senti náuseas e ânsias, junto a dor no corpo e a tremedeira nas pernas. Bem vindo ao primeiro dia na prisão daqueles que vieram para morrer, pois vão dar um jeito de adiantar a minha morte. Era assim que eu me sentia a cada passo arrastado, a cada olho sobre o meu estado e a fraqueza no meu corpo.

Quando consegui chegar no corredor de acesso, encontrei Ella com luvas nas mãos e um balde, junto a mais duas garotas saindo do que, imagino eu, ser o banheiro. Ela soltou os baldes, correu para debaixo do meu braço e me segurou antes de cair. Não consegui segurar mais a ânsia, deixei um pouco do vômito sair do estômago, sujei o chão ali mesmo e olhei envergonhada para a loira que fedia a cloro. Ao menos ela estava mais cheirosa do que eu.

— Eu só tenho meia hora… — murmurei baixinho.

— Pelo seu estado, deve ter perdido metade desse tempo tentando chegar aqui. Vem, eu vou te ajudar…

— Solta ela. — ordenou a madame, pegando nós duas de surpresa — Não vou mandar de novo.

Eu respirei fundo e me apoiei na parede, me livrei da ajuda de Ella onde a mesma me olhava penalizada, mas a última coisa que eu queria era que sobrasse pra ela. Tentei dar mais um passo para frente, senti a vertigem de novo, a tremedeira no corpo e a dor lancinante nas costas. Quem estava presente tentava ao máximo não olhar, assim como Ella; que pegou o balde de volta e foi esfregar a beirada do chão na porta do banheiro.

— O seu tempo está acabando. — contou madame com o chicote na mão e os dois guardas ao lado.

Dei mais um passo, senti as pernas falhar, dei outro e caí.

— Quer que eu a faça se levantar? — perguntou a mulher fria.

Eu olhei para trás e arregalei os olhos e senti toda a adrenalina do peito subir, repentinamente.

Sem aviso, Athos pegou a mulher pelo braço, segurou seu rosto magro e empurrou a mulher fina contra a parede. Tinha um rapaz com ele, que imediatamente veio até mim e sorriu carismático, ainda assim compadecido.

— Oi, moça bonita — sorriu mostrando os dentes e me dando uma piscadela — É uma honra te conhecer.

— Oficial! — reclamou a mulher tentando se soltar — O que está fazendo? Me solte!

Para o azar dos homens, os guardas de madame Gioconda foi tentar tirar o grandão de cima dela, enquanto o rapaz carismático me levantava com cuidado do chão. Athos, pegou a mão de um, dobrou o osso, meteu a cotovelada no outro e uma cabeçada no dono do pulso quebrado. Os dois se afastaram com dor, mas levantaram a mão em paz.

— Oficial, só estávamos tentando fazê-lo entender. — justificou o primeiro guarda.

— Madame Gioconda não é culpada. — improvisou o outro.

Athos olhou para mim, depois para Gioconda e depois pro chicote nas mãos da mulher. Ele fingiu ficar calmo, concordou com os caras e madame Gioconda ajustou o terninho militar se recompondo. Ela estava indignada e, acima de tudo, tentava esconder o medo que sentiu ao ter o homem a prendendo contra a parede.

— Não pode invadir o meu setor e passar por cima de mim, mesmo sendo um membro oficial da coroa. — reclamou a mulher de queixo em pé.

— Cala a boca. — ele vociferou olhando pra mulher, mas com as feições etremamente calma — Se falar mas um “a” pego a porra do chicote e enfio no teu cú, até ele ficar da cor das costas dela. Velha maldita. — cuspiu as palavras, fazendo a mulher arregalar os olhos.

Os homens se entreolharam, Ella segurou a risada e a mulher estava mais branca que corpo sem alma.

— Não… — ela deu uma risada sem graça e limpou o terninho de novo — Há de haver um mal entendido aqui, oficial. Estou ensinando a detenta sobre…

Ele tomou o chicote da mão da mulher, empurrou ela contra a parede, bateu seu corpo forte, segurou seu pescoço e realmente tentou enfiar o chicote dentro da boca da mulher. O objeto de cabo trançado e fino nas pontas, invadiu a boca da mulher e com ódio, ele a ouvir iniciar engasgos com uma raiva insana no olhar.

“Ele podia matá-la…”, pensei.

— Mandei calar a porra da boca! — soltou gultural entre os dentes.

— Athos! — gritou o rapaz carismático que estava comigo — Athos!

Ele teve de me abandonar, o que me custou me manter de joelhos no chão. Imediatamente o cara conseguiu entrar entre a fúria do oficial e a mulher, enquanto os guardas não ousavam se mexer.

— P-para, para, já chega! Athos! Athos! Meu irmão, vai matar a velha! — o homem se enfiou no meio do sufocamento da mulher, conseguiu puxar o objeto da mão do oficial e com muito custo, os separou — Porra meu, vai amassar a tia do pavê! — berrou o rapaz empurrando Athos pra longe — Respira fundo, sua caralha estressadinha! Deixa essa parte comigo, tá legal? — O homem carismático passou as mãos pelos cabelos, respirou fundo e tentou apaziguar a cena. Buscando uma paciência que o oficial com certeza não tinha. — O dona, a gente vai ter que conversar sobre essa parada estranha. — ele puxou uma identificação do bolso e mostrou pra mulher algum símbolo que não vi, enquanto colocava as mãos em suas costas e fazia ela andar devagar. — Porque não saímos daqui primeiro?

Não me concentrei na conversa dele, apenas me concentrei na aproximação do oficial, se enfiando embaixo do meu braço e terminando de me levar até o quarto. No segundo seguinte, eu estava sendo deixada sobre a cama, de barriga para baixo e finalmente descansando o corpo dolorido. O oficial permaneceu de pé, fechou os punhos e pareceu ter dificuldade para conter a respiração pesada no peito. Eu virei o meu rosto, senti a ponta dos dedos grossa tocar a beirada dos ferimentos e por um segundo, gemi de dor, mesmo com um simples toque.

— Não dá. — respondeu com raiva e saindo do quarto.

Tentei respirar fundo, me concentrar em como eu ia cuidar das costas e acabei ouvindo Gioconda gritar.

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