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UM BONITÃO MUITO RUDE

(AURORA)

A sala branca em que me colocaram era até confortável. Não me levaram para uma cela fria para eu ser ouvida por um médico atrás das grades. O lugar não era um consultório comum, já que atravessamos por dentro da construção interna da estadia militar, mas ainda assim, confortável. O médico que adentrou a sala era paciente, bonito e tinha um sorriso amigável. Ao menos ele não parecia estar com raiva de mim, nem se importou com meus pulsos presos na maca.

— Aurora, certo? — perguntou ele vestindo uma luva e puxando uma mesinha metálica de rodas junto de si. Eu concordei e ele se aproximou — Fique sentada, eu vou dar uma olhadinha nisso aqui.

Ele mexeu na ponta de minha orelha, passou um algodão molhado e ardeu. Eu gemi de dor, mas ele pareceu não se importar, apenas continuou limpando.

— Ah, deixe-me ver… — respondeu jogando o algodão dentro de um pequeno pote sobre a mesa — Estava bem sujo, mas já com início de cicatrização. Eu vou aplicar um antibiótico por precaução, assim ajuda a evitar qualquer coisa que tenha passado por aí, tudo bem? — eu apenas concordei, já que eu não fazia ideia do que ele estava falando — Você não é muito de falar, não é? — insistiu o médico — Eu sou o Foster e vou mandar uma enfermeira te auxiliar. Vão soltar você, e mesmo achando desnecessário essas algemas, vão colocá-las de volta depois que estiver limpa. Tudo bem? — Ele era gentil, mas eu só sabia concordar.

Estava tremendo de frio quando o guarda se retirou do quarto junto com o médico, e mesmo com todo o frio e fome que eu estava, senti mais pesar quando fiquei sozinha. Isso me fez pensar na minha situação…

Eu roubei o rei. O homem que saiu do comboio de carros pretos no meio de uma cerimônia importante, é um rei. E aquele oficial, era Athos Kennedy. O nome dele sempre aparece na televisão, principalmente se tratando de crimes com penas de morte e contra a coroa. Sim, eu vi aquele homem apenas em noticiários, televisão, jornais e até em capas de revistas. Ele não é um policial comum, é da guarda real, o que deixa tudo mais difícil. Isso significa que estou na mira da pena de morte.

Engulo seco, imagino a corda em meu pescoço e novamente sinto os calafrios. Tento controlar as lágrimas, respirar fundo e me concentrar. Procuro ocupar minha cabeça com o pensamento de que tudo ficará bem, mesmo sabendo que isso não é verdade.

(...)

Eu estava dormindo quando senti meu sono interrompido. Um cheiro amadeirado tomou minhas narinas, o barulho de alguns passos me fizeram ficar em alerta e quando abri os olhos, tentei me levantar. Havia me esquecido que estava com o pulso preso, o que me fez gemer de dor com o solavanco. Acho que dormi pouco, não sei, mas ele já estava lá. O demônio Kennedy.

Ele colocou uma pasta sobre a escrivaninha, me olhou sério e se sentou. Está bonito de novo, se é que é possível ele ficar feio. Com o pensamento inapropriado eu acabo por corar, mas resolvo falar no meio daquele silêncio constrangedor enquanto tento me sentar.

— Bom dia. — cumprimento baixinho, notando que me mexi demais.

Deixei a camisola expôr parte das coxas e com um braço preso, só me restava me mexer de um jeito totalmente desconfortável enquanto ele me olhava, percebendo meu desconforto. Era constrangedor e errado, e ele parecia não se importar.

— Finalmente tomou um banho. — comentou — Pelo menos agora se parece com uma garota, não com a merda de um fedelho de rua.

É, eu tomei banho e estou vestindo as camisolas do hospital que a enfermeira Kelly me deu. Lavei até meus cabelos, que estão agora cheirosos e até me fez me sentir melhor. Não depois desse comentário, é claro.

Sem nada poder dizer eu desviei o olhar, cruzei meus pés sem graça e mordisquei os lábios, até ouvir a sua voz tomar conta do quarto e ter minha atenção de volta.

— Se ofendendo com a droga de um comentário? Não parece a ladra de ontem.

— A ladra está presa e ela se ofende do mesmo jeito, só não tem o que fazer.

Ele respirou fundo, de um jeito impaciente e baixou os olhos para as minhas pernas de novo. Tentei arrumá-las outra vez, sem muito sucesso. O homem manteve a malícia sobre minha pele, me fazendo notar que ele quis me constranger de propósito, e ao invés de raiva, eu estava ficando envergonhada.

— Aqui diz que seu último registro escolar é aos seus quatorze anos. — comunicou abrindo a pasta, apoiando a canela da perna sobre a coxa e descansando o documento no colo — Sua mãe foi contatada, tiveram processo com o sistema de menores em falta e depois sumiram. Comece daqui. — ordenou sério, esperando minha resposta.

— Não terminei o ensino... básico. — contei.

— Tente me falar uma porra que eu não sei. — retrucou impaciente.

— Trabalho. — respondi desviando meu olhar, tentando entender porque raios ele me tratava daquele jeito e porque eu ficava tão envergonhada com isso?

— Defina “trabalho”. — ordenou.

— Eu conheci algumas más influências. — engoli seco me recordando, mas fui em frente — Minha mãe fazia programas e alguns colegas mais velhos sabiam do ponto. Estavam começando a confundir o trabalho dela comigo, então minha mãe achou melhor me tirar da escola. Para a minha segurança. Foi quando comecei a entender como funcionava pequenos roubos de carteiras e ratos de rua. Eu não podia ficar em casa quando tinha cliente, então roubava nesse tempo.

— Você roubou debaixo do sol, lutou comigo e correu como uma lebre. — ele suspirou — Sua má influência era um fodido ruivo?

Eu neguei.

— Não. Conheci o Rato quando comecei a tentar repassar o que roubava. — contei sem graça — Minha má influência tentou me passar venda de drogas, mas eu fiquei com medo demais. Roubar na rua me dava mais espaço e menos pervertidos.

Ele parecia pensar. Pegou uma caneta de dentro do bolso da calça, anotou algumas coisas e suspirou. Não falou nada por um breve período, mas pareceu concentrado, até levantar o rosto e me olhar duro.

— Sua mãe foi notificada da sua prisão.

— Eu vou poder ver ela? — perguntei esperançosa.

— Não. — respondeu seco — Detentos que age contra a coroa perdem o direito de viver. As visitas são decididas conforme gravidade e julgamento. Resumindo, pouco me fodo com esse procedimento, já que não faz parte da minha área. Meu processo é outro.

Ele era um idiota com todas as letras maiúsculas, mas estava respondendo as minhas perguntas. Não que ele estivesse com menos raiva, mas seria possível que ele estava com pena? Se bem que não acho possível ele sentir pena de alguma coisa.

— Eu… — tentei formular a pergunta e com uma certa dificuldade encarei a real — Eu vou morrer?

— Seria mais simples se fosse. — respondeu mexendo nos papéis, como se a resposta fosse algo casual e simples. — Você tem uma coisa que eu quero, depende do quando pretende me dar.

Engoli em seco, baixei os olhos e tentei pensar. O que ele estava sugerindo, sexo? Passei a minha vida inteira fugindo de idiotas, me desvencilhando de ratos de rua e alguns outros tipos de pervertidos, para pensar em fazer isso com ele? É estranho olhar para ele como se eu estivesse analisando o “produto”. Já que sempre corri o risco, não seria errado fazer por uma boa causa, não é?

O Oficial usava uma farda preta, com coturnos pesados e uma regata branca. O coldre engatilhado na coxa lhe dava uma pose de policial sexy, mas tinha um “Q’ grosseiro nele. Não era um rapaz jovem, era um homem com o corte do cabelo baixo, feições duras e um olhar rígido. Nada dele parecia ser algo suave, e claro, eu era uma tampinha perto dele. Até mordi os lábios por dentro e engoli em seco com a ideia. Nem sempre olhei caras mais velhos com os olhos que estou tendo agora...

— Vai facilitar a porra do meu trabalho se parar de me olhar desse jeito. — ordenou o homem, me fazendo corar as bochechas imediatamente — Vai me passar tudo o que sabe sobre Rato, tudo. Suas informações são de interesse da coroa, entendeu? Sua majestade fodida está disposta a negociar sua vida se for uma garotinha obediente.

— Rato? — perguntei me recordando o quanto ele ficou estressado quando viu o broche nas minhas mãos — Porque o Rei tem interesse nele?

— Não mete o pentelho. — retrucou seco — Você não faz perguntas aqui.

Suspirei cansada, me mexi desconfortável e vi a porta sendo aberta, pegando o doutor Foster de surpresa. Ele não parecia ter ciência da visita do oficial Kennedy.

— Oficial Kennedy? — admirou o doutor.

— Médico não ético e cuzão. — cumprimentou Athos em resposta, fechando a pasta e guardando a caneta.

— Como sempre, um poço de delicadeza. — comentou o médico com uma prancheta nas mãos e um sorriso tranquilo — Não fui comunicado que estava no caso da moça, ela não está no setor feminino?

— Você não foi comunicado porque não te devo satisfação. — resmungou o homem se levantando e tomando a prancheta da mão do doutor — Dois dias? — perguntou levantando a sobrancelha.

— Ela tem uma raspa de bala na ponta da orelha e sangrou bastante, pelo que parece. Dois dias é o suficiente para quatro doses da medicação. — respondeu o médico, colocando uma luva e olhando minha orelha.

— Faz uma prescrição. — ordenou Athos colocando a prancheta sob a beirada da maca — Ela sai agora.

— E quem vai aplicar os remédios? — perguntou Foster curioso.

— Sua mãe. — respondeu o oficial, na maior ironia.

Eu fiquei olhando o demônio bonito responder o homem, imaginando o quão infantil ele estava sendo. Minha vontade era de rir, mas eu precisava me conter para não sobrar pra mim. Ele era um adulto brincando de criança ignorante, mas eu ainda era só uma rata de rua.

— Qual é a tua, cara? — reclamou Foster, pegando a prancheta e tirando a caneta do bolso do jaleco, fazendo o que foi mandado.

Silenciosamente o médico pegou o papel da prancheta e entregou para ele, depois disso guardou o bloco de notas, tirou suas luvas e voltou a falar comigo.

— O resultado dos seus exames saiu, mocinha. — comentou calmo e parecendo realmente preocupado — Precisa se alimentar, Aurora. Seja lá o que faz, não deixe que isso acabe com tua vida. Está magra, com olheiras e com muitos números baixos. Tudo bem?

Eu apenas concordei, me perguntando porque diabos o médico estava sendo tão gentil se eu estava sendo presa. Como eu ia melhorar minha alimentação na cadeia, se eu nem conseguia fazer isso em casa? Apenas concordei, tentando acreditar que possa existir uma possibilidade.

— Obrigada, doutor Foster. — agradeci, finalmente lhe dirigindo a palavra.

— Olha só, ela fala! — respondeu sorrindo e me deixando sem graça.

— Tá fazendo extra, Foster? — O oficial chamou sua atenção — Cai fora. — ordenou abrindo a porta, enquanto o médico revirava os olhos.

— Foi bom te conhecer, Aurora. — respondeu me dando as costas e saindo sem se despedir do oficial.

— Acabou a palhaçada, você vem comigo. — anunciou tirando um colar do pescoço onde tinha uma plaquinha de ferro com as iniciais A.K., abrindo as algemas logo em seguida. — Colabora, porque a minha paciência é do teu tamanho.

Eu massageei os pulsos, mas minha liberdade durou apenas um segundo, quando ele tocou meu braço me forçando a virar, segurando meus pulsos de volta e colocando as algemas. Ele não era carinhoso e eu senti um arrepio feroz correr da ponta dos meus pulsos até o topo da minha espinha. Engoli em seco, suspirei alto e mantive o olhar pra frente, mas eu senti quando o ferro se fechou ao redor da carne, e o homem passou o dedo por cima da pele, como se quisesse aliviar as marcas.

— Pra onde vai me levar? — perguntei quando ele segurou em meu braço e abriu a porta.

Ele não respondeu, apenas continuou me puxando enquanto passávamos por um corredor. Tinha vários policiais, a maioria homens e alguns detentos até com correntes na canela, agora me fazendo entender que ali era um setor médico só para prisioneiros. Um pré setor médico, já que era um lugar pequeno. Saímos de uma ala e passamos a andar entre corredores, só eu e ele. De repente, ele apertou o botão de acesso para um elevador e digitou uma sequência de números, fazendo a porta se abrir para depois entrar na caixa de aço.

— Eu não devia estar acompanhada de outros policiais? Não sou considerada perigosa? E se eu tentar fugir? — perguntei curiosa.

Ele olhava para frente, mas fez questão de apertar a mão em meu braço e fechar os dedos. Acho que me arrependi de abrir a boca imediatamente.

— Cala a boca. — mandou impaciente — O perigo aqui, sou eu. E se fugir — ele me olhou duro apertando sua mão —, te pego só pra te dar uma coça.

Engoli em seco, já que o papo sobre eu ser mulher não era nada para ele. E porque eu, apesar de desconfiar, tinha algumas dúvidas sobre suas ameaças? Só não estava afim de fazer um teste.

Tentei me concentrar no caminho, mas andamos e viramos em várias direções. As pessoas o cumprimentavam com leves acenos de cabeça, outros ficavam olhando tentando descobrir o que estava acontecendo, até que atravessamos uma porta metálica e eu me vi dentro de um corredor extenso cheio de portas. Cheirava a cloro e tinha uma construção uniforme. Sem nada me dizer, ele continuou me fazendo andar, parou em frente de uma porta com o número 79 e a abriu. Tinha duas camas e dois pequenos armários. Logo ele fechava a porta atrás de si e tirava as algemas do meu braço.

— O que vamos fazer aqui? — perguntei curiosa.

— Eu nada, já você…

— Não podia ser mais gentil? — quando vi, já tinha falado.

Ele estava soltando meu braço e antes que eu terminasse de falar, já estava me apertando de novo. Eu tentei me segurar em seus pulsos, mas senti seus dedos segurar o meus rosto e apertar minhas bochechas, enquanto a outra mão me empurrou contra a porta. Seu rosto ficou perto demais, seu hálito quente soprou em mim e meus olhos estavam surpresos.

— Quer a minha gentileza garotinha… Não fode! — reclamou perto enquanto eu nem sabia o que fazer.

Eu estava incomodada. Incomodada demais pelo fato dele me tratar com tanta raiva. Sim, existia uma hierarquia nas ruas também, mas o fato dele me tratar daquele jeito estava me doendo. Não me doía nas ruas, mas me dói aqui. O que havia de errado com ele? O que havia de errado comigo?

— Tomara Deus que eu morra pagando pelos meus pecados, porque nada nesta vida justifica você. — ele me apertou ainda mais e eu gemi de dor — Eu roubei o seu rei, não fiz nada contra você!

Humilhação? Não. Eu estava ficando ofendida por ele me tratar daquele jeito. Era estranho. Eu não costumo me importar com o que as pessoas pensam, geralmente fujo e fico na minha, mas aquela situação...

— É oficial Kennedy. — me corrigiu — Infelizmente o meu rei me usa para corrigir garotinhas que nem você. Acredite, eu tô fodido pra te dar uma lição!

Ele me soltou, me fazendo pender para trás e só não cair por causa da porta em minhas costas. Ele pegou as algemas e a pasta, que eu nem tinha notado estar ao lado da cama. O oficial me deu seu último olhar recriminador e me obrigou a me afastar para abrir a porta, me fazendo ouvir um beep e notar que agora eu estava trancada. Desesperada corri contra o metal frio e segurei no quadrado de grades que tinha como visão para o lado de fora, onde nossos olhares se cruzara quando ele terminou de me trancar.

— Por favor, Athos… Não… — pedi, só então entendendo a realidade do momento.

Achei que ele ia me soltar alguma merda ofensiva de novo, mas me fez engolir o choro e olhou por tempo demais. O cenho estava franzido, seus olhar duro e as feições de poucos amigos. Por fim, resolveu abrir a boca.

— Relaxa garotinha, vai me ver mais cedo do que pensa.

Ele me deu as costas e saiu andando, e eu não fazia ideia dos motivos que me fez estremecer ao ver ele indo embora. Talvez fosse o medo de finalmente estar presa, ou talvez porque estou sozinha… Não sei. Eu só não queria ter visto ele ir embora, por isso chorei.

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