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Capítulo 3

Kelly Ferraço

Na manhã seguinte eu estava quebrada. Elevei os braços e estiquei a coluna, sentindo os meus ossos estralar no mesmo instante. Entrei no banheiro e tomei um banho demorado para despertar e quando saí do banho, pus uma roupa confortável, pois ainda era cedo para ir à faculdade. Na cozinha, preparei uma porção de waffes, com uma fina camada de geleia de cereja e um bom café. Me sentei à mesa e encarei o meu prato, montado com muito esmero por mim, mas havia perdido a fome. Decidi que só o café me bastava e olhei pela janela, admirando a mais bela escultura que só a grande Paris podia me oferecer, a Torre Eiffel. Tomei um delicioso gole do café e só parei quando escutei os sons das vozes animadas no corredor do prédio. Pensei em bisbilhota-los, ver a cara do jovem casal que se mudou para o apartamento em frente ao meu a poucos dias, mas desisti. Não é da minha conta. Me levantei da cadeira e peguei a refeição recém feita e ainda quentinha e pus em um recipiente de isopor, o envolvendo com uma camada de plástico filme, depois o coloquei dentro da minha bolsa. Voltei para o meu quarto me sentindo desanimada. A Maah tinha razão, eu preciso sair um pouco ou eu vou enlouquecer aqui sozinha. Escolhi uma saia xadrez, com cintura alta, com tons de vermelho e preto e de pregas largas, que vão até a altura dos joelhos, vesti uma blusa de bouclê rosado, sem mangas e por cima dela, pus uma casaco de lã bege e para finalizar, escolhi uma bota de cano curto preta. Optei por deixar meus cabelos soltos hoje e fiz uma maquiagem que deixou o meu rosto o mais natural possível. A ideia era cobrir as malditas olheiras. Puxei a respiração e apreciei a imagem da linda e sofisticada garota no reflexo do espelho. Não vi nada ali, além de uma falsa aparência e me perguntei, a quem eu queria enganar?

Saí de casa perto das sete da manhã, pronta para mais um dia de sobrevivência. As oito em ponto, começaram as aulas e foi aí que eu me senti mais leve e de longe me parecia com a antiga Kelly. Aquela que tinha um objetivo, um sonho e que não via a hora de essas aulas chegarem na parte que eu mais amava. A teoria é boa, mas a prática é ainda melhor! No laboratório, me apaixonei em poder conhecer os alimentos de uma forma nunca vista por mim antes. Suas células, suas fibras, suas cores, e foi aí que fez sentido as misturas dos sabores. Sorri ao ver como uma batata sem graça, se tornou divertida através de um simples microscópio. Respirei fundo e comecei a fazer algumas anotações e quando o final do primeiro período acabou, decidi não ir para lanchonete hoje. Então me acomodei em um dos bancos de concreto, pintado de branco, bem debaixo de um sombreiro e comi os waffes frios e murchos que trouxe na mochila. Procurei manter a minha mente vazia e automaticamente me senti culpada. Não posso simplesmente ignorá-lo ou esquecê-lo. Olhei o campus ao meu redor e pensei que o Lipe amaria esse lugar. É simplesmente lindo! O imenso gramado verdejante, os arbustos podados com formatos arredondados, as árvores de troncos largos e de folhas avermelhadas ou rosadas. Os bancos pintados de branco, dão um contraste harmonioso no meio de toda essa beleza natural. O lugar apesar de ter alguns estudantes conversando e rindo, ou até mesmo brincando com algum tipo de disco, tem o seu silêncio aconchegante. Olhei o relógio e descobri que divaguei demais e que preciso voltar às aulas. Guardei o que sobrou do meu lanche dentro da bolsa e logo ajeitei a mesma em meu ombro, indo às pressas para a sala, e assim que cheguei, ocupei o meu lugar, esperando o início da próxima aula. O falatório dos alunos e um rádio tocando alguma música que eu não conhecia me distraiu um pouco, e quando escutei os sons das risadas escandalosas e altas dos alunos, parei para olhar para a porta e ver o que está acontecendo. Para minha surpresa, o professor de gastronomia adentrou a sala usando apenas uma típica saia havaiana, com tirinhas de palhas e nos peitos malhados e com poucos pelos, havia… duas quengas de coco? Meu Deus, é impossível não rir! O cara está estupidamente ridículo.

— Bom dia alunos! Estou vendo que gostaram do meu look de hoje. Mas saibam que essa roupa tem uma finalidade específica. — Ele falou, fazendo graça e por um instante os seus olhos vieram para mim e ele abriu um sorriso satisfeito. — Ora, ora, valeu muito a pena pagar esse mico, ganhei um belo sorriso! — cantarolou e por algum motivo senti raiva dele. O que ele quer, chamar a atenção dos outros para mim? — Ah, não faz isso, ele é tão lindo! — Professor Adrien sibilou decepcionado. “Ai que vontade de mandar esse idiota se ferrar!” Mas ao invés disso eu voltei a me sentar em minha cadeira e ignorei os seus comentários.

— Professor, você está simplesmente comestível essa manhã. — Uma aluna disse de uma forma impulsiva, quase se jogando em cima do homem. Oferecida! Rosnei mentalmente e sem entender o porquê de estar enfurecida com a garota. Vi o professor ficar vermelho na mesma hora e praticamente se engasgar com as palavras não ditas. O que ele queria? Está praticamente nu, mostrando as coxas ligeiramente malhadas e peludas, além do que, a saia não esconde os poucos pelos galegos que se enramam do peito até o V, que praticamente parece nos cós de palha. As tiras da saia mostram a cueca branca que está usando, praticamente desenhando o bumbum e não deixando muito para a imaginação. Não com riqueza de detalhes, mas ela está lá. E para piorar, ele deixou as madechas loiras amarradas em um rabo de cavalo, mostrando cada detalhe do rosto quadrado, envolvido por uma barba rala e loira. “Um tesão!” Merda, tesão não! Um… ah, não importa, é obsceno e pronto!

— Então professor, qual é a finalidade dessa fantasia? — Um aluno perguntou e a garota se inclinou sobre a sua cadeira, empinando a bunda, praticamente comendo o professor com os olhos.

— Alguém aqui já esteve no Hawaii e viram aquelas belas havaianas lindas, dançando e fazendo aqueles movimentos graciosos, enquanto bebia uma água de coco gelada? — perguntou, disfarçando o seu incômodo com o oferecimento da aluna. Alguns alunos fizeram um não com a cabeça. Eu revirei os olhos. — Você, Ferraço? — Ele apontou para mim, me fazendo ajeitar o meu corpo na cadeira e engolir em seco. — Já comeu uma bela salada havaiana, servida dentro de um abacaxi, ou em uma enorme palha de palmeiras? — Olhei para os alunos, que aguardam a minha resposta e respirei fundo.

— Não, eu… nunca estive no Hawaii — respondi com a voz falha. Adrien parecia satisfeito com a minha resposta. Ele sorriu e logo se pôs a interagir com os outros alunos. Minutos depois a sala de aula virou uma zona; uma vitrola antiga começou a tocar um tipo de hula e o professor pediu que os alunos dançassem a música. A pergunta é, o que toda essa merda tem a ver com a gastronomia?

— Entrem no clima havaiano crianças, porque a nossa próxima aula será na enorme cozinha da faculdade. Eu quero que vocês elaborem para mim o melhor cardápio havaiano que eu já comi na vida. — Cardápio havaiano, merda! — Não vai dançar, senhorita Ferraço? — perguntou chegando mais perto e me tirando dos meus devaneios.

— Eu… não sei como se dança isso — menti. O fato é que eu não queria dançar, nem essa música e nem nenhuma outra.

— Isso não é desculpa. — Ele mal disse a frase e eu senti a sua mão me puxar para fora da cadeira e com um movimento rápido, o professor Adrien se posicionou atrás do meu corpo, espalmou uma mão em minha barriga, colando as minhas costas ao seu tronco praticamente nu e a outra mão, segurou uma mão minha e o seu bafo quente bateu contra a minha nuca, quando ele sussurrou algumas palavras: — Mexa o seu quadril assim, pêsse… senhorita Ferraço. — pediu se engasgando com suas próprias palavras e me fez mexer junto com ele. Covardemente, o meu coração bateu forte e em vida. Eu deveria me sentir incomodada, mas não estou. Eu deveria sair do seu agarre atrevido e meter-lhe a mão na cara, mas por incrível que pareça, estou me deixando levar. É só uma aula, certo? Nada demais. E quando começou a me mexer suavemente, seguindo o ritmo da hula, Adrien se afastou e logo o seu calor se afastou também, e eu me repreendi mentalmente por sentir falta disso. — Linda! — sussurrou, olhando o meu corpo se mexer com suavidade. — Só está faltando um sorriso nesse rosto angelical. — Ergui a minha cabeça e encarei os olhos azuis e inesperadamente me senti presa a eles e me esqueci de respirar. Adrien levou as mãos a sua cintura e me assistiu dançar. O que me deixou surpresa, foi o fato de que estava gostando do que vejo e principalmente do que estou sentindo. “Lipe.” Por Deus eu não posso! Parei a dança repentinamente e comecei a arrumar as minhas coisas em cima da cadeira. — Kelly, aonde vai? — Meu professor perguntou, mas eu não parei para responder-lhe e saí o mais rápido possível de dentro da sala de aula.

Não sei quanto tempo dirigi pela grande Paris, perdida em meus próprios pensamentos. Só sei que quando parei o carro, me deparei com o rio Loire e caminhei até a ponte Loire e aqui estou me afogando em lágrimas desde então. O meu pensamento nesse instante era de desistir de tudo e de voltar para casa. Meu telefone começou a tocar dentro da bolsa e eu o peguei, vendo o rosto lindo e familiar do meu pai na tela. Eu respirei fundo e sequei as lágrimas antes de atende-lo e como se ele pudesse me ver, forcei um sorriso feliz e apertei em atender.

— Pai? — falei com falso entusiasmo na voz.

— Kell princesa, estou morrendo de saudades suas! Todos estamos na verdade. Você não ligou desde que chegou em Paris. — Ele cobrou. Olhando para as águas do rio correndo agitadas, pensei em alguma desculpa no mínimo aceitável.

— Desculpe, pai! É que desde que cheguei aqui não consegui parar. Isso aqui é... simplesmente lindo! — menti e escutei o som de uma risada baixa.

— Sabia que esse lugar te faria bem. Visitou a torre? — perguntou mais animado.

— Ãh, ainda não. Agora mesmo estou olhando o rio Loire, e ele é simplesmente lindo! — sibilei. Meu coração se apertou, porque eu sei o real motivo de estar aqui nesse lugar.

— Que bom filha! Mas você não deveria estar na faculdade agora? — Puta merda!

— Ah é, eu devia. — Comecei a me afastar da ponte e a caminhar de volta para o meu carro. — Mas as aulas terminaram mais cedo hoje. — Outra mentira. Quantas mais terei que contar?

— Me promete que irá até a torre, filha. Eu quero muitas fotos suas de lá.

— Eu prometo pai! Eu tenho que ir agora — falei querendo encerrar a ligação. — Vou dirigir, tenho que ir para casa fazer umas coisas.

— Tudo bem, filha! Sua mãe está com saudades, estava pensando em fazer uma chamada de vídeo, logo mais à noite — sugeriu.

— Pode ser, também estou com saudades de todos.

— Combinado então. — A ligação finalmente fora encerrada e eu respirei mais aliviada por não precisar inventar mais mentiras. Entrei no carro e me sentindo um pouco mais calma, dirigi direto para o meu apartamento.

Como esquecer um amor que mal nasceu e ainda sendo tão intenso? Ele morreu me deixando sozinha no mundo, e eu só tinha quinze anos e já o amava como se o meu universo só pertencesse a ele. Ter o Lipe em meus braços minutos antes de ele ser arrancado de mim, foi o que fodeu com tudo. Eu senti o seu amor em toda a sua plenitude, cada pedacinho dele, cada sabor, cada gesto e cada sussurro. Uma promessa fora feita e contra a nossa vontade, ela foi quebrada e o meu corpo simplesmente não quer entender isso. Meses depois de sua partida, eu ainda visitava os seus pais e passava horas trancada em seu quarto o vivenciando, sentindo o seu cheiro, olhando os seus troféus e as suas roupas guardadas. Os meus pais não aceitavam essa minha atitude, que se tornou como um vício, quase que como uma droga. Eu passei a fazer isso todos os dias depois da escola, mesmo sem a aprovação deles. Até que os seus pais resolveram vender a cobertura e ir morar fora do país. Aquilo doeu e eu senti que mais uma vez o Lipe havia me deixado, mas eu tive que aceitar. Eles precisavam fazer aquilo para seguir em frente. Então, por que eu não consigo seguir em frente também? Eu só queria que essa dor passasse. Deitei em minha cama, olhando o sol de final de tarde, em um céu ainda azul e senti os meus olhos pesar minutos depois.

— Mexa o quadril, Kelly, assim, lentamente. — Sua voz sussurrou bem próximo do meu ouvido. Eu fechei os olhos sentindo a maciez da voz aveludada aquecendo a minha pele. Sua mão espalmada em minha barriga me apertava forte, me fazendo sentir a firmeza do seu corpo duro contra ao meu. — Isso Kelly, você está perfeita! — Ele voltou a sussurrar. Mordi o meu lábio inferior, reprimindo um gemido. Deus, ele tirou a mão da minha barriga e segurou a minha mão, nas pontas dos meus dedos, me fazendo girar e o meu corpo ficou de frente para o seu. Sua boca ficara bem próxima da minha, nossas respirações se batendo, nossos hálitos se encontrando. Adrien se aproximou para um beijo e eu voltei a fechar os meus olhos…

— Que merda foi essa??? — rosnei, abrindo os olhos, praticamente saltando para fora da cama e notei que a minha respiração estava sobressaltada, pesada e ofegante. Então levei a mão ao peito e puxando o ar de uma forma quase desesperada, resmunguei: — Merda, professor!

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