Capítulo 2
Kelly Ferraço
Um dia perfeito, sem atrasos, sem correria, sem estresses... A não ser pelo itinerário que está me deixando meio que perdida aqui. Seguindo o mapa da faculdade, que mais parece um labirinto, entro no terceiro corredor movimentado de alunos e agora eu só preciso descobrir qual a sala que devo entrar. Abro o mapa mais uma vez e enquanto ando em linha reta, procuro pela sala azul, no bloco B, e quando ergo a cabeça a encontro bem no meio do corredor. Satisfeita, dou dois passos na direção da sala e tento sem sucesso guardar o mapa no meu bolso traseiro, e para a minha infelicidade, alguns cadernos caem no chão.
— Merda! — xingo impaciente e me agacho para arrumá-los junto aos outros materiais. Logo encaro um belo par de sapatos lustrosos parados bem na minha frente. Penso em olhar quem quer que seja, mas antes que eu consiga fazer tal coisa, um líquido escuro e quente molha os meus cadernos, que ainda estão espalhados pelo chão. Meu sangue ferve imediatamente. — Mas, que merda você fez? — rosno praticamente aos gritos e irritada finalmente olho a cara da jamanta que fez o maldito estrago. Encontro uma bela cabeleira loira, adornando um par de olhos azuis que me encaram assustados, porém, admirados com alguma coisa. Sei lá, o cara parece um imbecil, atrapalhado e bobo! Rolo os olhos internamente. — Idiota! — ralho, pegando os cadernos agora danificados e me levanto em busca de um banheiro para tentar arrumar toda essa bagunça.
Primeiro dia de aula, merda, eu fiz tudo tão direitinho! Agora para piorar serei taxada de a aluna que só chega atrasada e tudo por causa daquele imbecil, estúpido e idiota!
Quase dez minutos depois, corro para a sala de aula. Os corredores agora estão completamente vazios e chego perto da porta da tal sala azul B, consigo escutar a voz grave do professor. Droga, espero que ele não me barre na porta logo no primeiro dia! Alcanço a porta que ainda está aberta e estanco bem na entrada quando vejo o imbecil que molhou os meus cadernos em pé, escrevendo algo no quadro. Merda, merda, merda, ele é o meu professor! Eu xinguei o meu professor? Mil vezes merda! Antes de falar qualquer coisa, eu limpo a minha garganta e encontro coragem para falar:
— Com licença! — Me forço a dizer. O loiro e alto... bem alto mesmo, diga-se passagem, se vira para me olhar. Lindos olhos azuis! Penso. São meigos e tranquilos... Que merda estou fazendo? Respiro fundo e continuo a falar: — Será que eu posso? — Aponto para dentro da sala. Ele continua me olhando e aquele maldito olhar bobo estava ali me encarando como se eu fosse uma fruta deliciosa.
Idiota!
— Pode. — Ele finalmente responde, usando um tom firme até demais. “Ok, vou relevar!” Puxo a respiração mais uma vez e assinto, adentrando a sala de aula. — Da próxima vez tente chegar no horário. — O infeliz comenta. Ah, não deu mais para segurar, então soltei uma resposta à altura do que acabou de falar.
— Eu teria, se um destrambelhado não tivesse derramado café nos meus cadernos! — Uso o mesmo tom que acabou de falar comigo. E, merda, é impressão minha ou o meu professor acabou de corar? Ele corou, é sério? O observei puxar uma respiração e sem dizer mais nada, ele foi para sua mesa e abriu um livro grosso.
— Abram os seus livros na página 37, vamos ver a origem de alguns alimentos. — A pergunta que me veio à cabeça de imediato foi, quem precisa saber a origem dos alimentos? Pelo amor de Deus, quem em sã consciência não sabe de onde veio a pizza? Ou picles? Ou a macarronada? Segui para a segunda cadeira no canto da parede, bem perto da janela e abro o único livro que trouxe comigo. Sim, seguindo o itinerário.
****
Após três aulas seguidas com o professor Adrien, saio da sala direto para uma lanchonete dentro do campus mesmo e me peço um delicioso pedaço de torta de limão e uma xícara de chá. Enquanto repasso os últimos traços da aula sobre a origem dos alimentos, releio sete tópicos interessantes que me chamaram a atenção e que eu não havia atentado para isso antes. O livro compara a alimentação em três fases da história; alimentação na pré-história e na idade antiga, depois na antiguidade clássica e na idade média e por fim na idade contemporânea. Uma mudança radical entre um tempo e o outro. A garçonete traz o meu pedido e o põe na mesa; uma porção de batatas fritas e um refrigerante, o meu chá e a torta que havia pedido. Encaro a jovem de pele branca e de bochechas rosadas, que me olha com um sorriso.
— Desculpe, eu não pedi essas batatas e o refrigerante!
— Eu sei, o moço ali pagou pra você. — Inclino um pouco a cabeça para ver o tal rapaz por trás da garota, bem acomodado na outra mesa e o meu professor ergue a sua latinha em um brinde. Reviro os olhos.
— Pode levar de volta, por favor? — peço. Seu sorriso gracioso desaparece instantaneamente.
— Mas,
— Só leve isso daqui! — A corto ríspida.
— Claro, senhorita! — Ela força um sorriso e põe os pedidos de volta em sua bandeja, deixando apenas o que lhe pedi, e eu volto a me concentrar no meu livro. Aonde foi mesmo que parei? Me pergunto, e no segundo seguinte, sinto alguém esbarrar forte contra a minha mesa, fazendo a xícara virar e derramar o líquido amarelado e quente pelo tecido perolado. “Mas o quê?” Ergo a cabeça e encaro o meu professor com um olhar espantado, olhando o estrago que acabara de fazer na toalha da mesa.
— Seu idio...
— Tá! Eu já sei — disse me interrompendo. — Eu sou mesmo um idiota, um destrambelhado e um imbecil, mas você é uma menina muito mal educada! — Ergo ainda mais a minha cabeça, empinando o meu queixo e demostro toda a minha irritação.
— O que você quer de mim, professor Adrien? — Tento não ser ríspida com ele. Ele dá de ombros.
— Um pedido de desculpas. Nós começamos esse relacionamento errado. — Hein?!
— Relacionamento, que relacionamento? — O corto outra vez. Ele cora literalmente e balbucia qualquer coisa sem fazer som. Parece nervoso.
— Es.. esse — gagueja apontando dele para mim. Eu me encosto na cadeira e cruzo os meus braços, ainda perdida na palavra "relacionamento". — Professor/ aluna. — explica e só então ele consegue respirar. — Sem falar que é muita falta de educação sua, senhorita Ferraço! — Continua me encarando com repreensão e mais firme dessa vez. — Nós franceses gostamos de agradar as pessoas, somos pessoas adoráveis e você, deveria saber disso. — Arqueio as sobrancelhas. — Além do mais, como havia dito antes, gostaria me desculpar pelo acidente que causei em seus cadernos, não custa nada aceitar o meu pedido de desculpas! — bufo de modo audível.
— Se eu aceitar o seu pedido de desculpas, o senhor vai embora? — Agora ele arqueia as sobrancelhas loiras e em resposta, puxa uma cadeira para se sentar, sem nenhum convite, ficando de frente para mim.
— Mon Dieu, senhor é um termo muito velho, e eu nem sou tão velho assim. Quantos anos você tem? — Me ajeito na cadeira e me inclino um pouco, me aproximando da mesa e o encaro irritada.
— Não te interessa! E quer saber? Fica com essa mesa, com a torta, as batatas, não me importa! — Fico de pé imediatamente e começo a recolher as minhas coisas, saindo da lanchonete sem me preocupar com a sua reação, ou ouvir as suas idiotices. Mas que merda! Será que ele não vê que não quero saber de nada? Não quero a sua companhia, não quero conversar com ele e tão pouco um amigo. Eu preciso ficar sozinha com o meu passado, com o meu fracasso e com as minhas dores. Vou direto para o campus, para a próxima aula, que agradeço a Deus não ser desse professor pegajoso.
****
A sala de aula está praticamente vazia, pois, ainda temos mais vinte minutos até a próxima aula. Aproveito para abrir a primeira página do meu caderno e encontro nela a foto do Lipe, a única que sobrou, pois, os meus pais confiscaram todas na tentativa de amenizar o meu sofrimento. O que eles não sabem é que a minha dor não estava naquelas imagens e sim, dentro de mim. Perdida em lembranças, deslizo o meu indicador no seu sorriso lindo e as suas palavras doces imediatamente ecoaram dentro de mim.
Lembranças...
— Achei isso aqui — Ele ergueu um colar de pérolas e me sorriu. — Posso pôr em você, senhorita? — Meu sorriso se alargou.
— Sim, por favor! — falei, afastando os meus cabelos para o lado e ele pôs o colar no meu pescoço. Lipe me olhou deslumbrado por um tempo.
— Ficou lindo em você! — sussurrou e já não estava brincando como antes. Nossos olhos se encontraram e se fixaram um no outro. Meu sorriso aos poucos foi se apagando e o dele também. Lipe segurou os meus ombros e me virou de frente pra ele. — Não me leve a mal, Kelly — sussurrou, erguendo sua mão e com ela acariciou o meu rosto. — Não estou querendo me aproveitar desse momento que estamos sozinhos aqui, mas...
— O quê? — perguntei com um som baixo demais. Ele deu mais um passo em minha direção e agora estávamos tão próximos um do outro.
— Eu quero... quer dizer, eu posso... te beijar?
(...)
— Bom dia! — Uma senhora entra na sala, me despertando de mais um sonho acordado e eu fecho o caderno, escondendo a imagem do amor da minha vida, sentindo o meu peito amargurado e cheio de saudades. Deus, se eu pudesse voltar no tempo. Se eu não tivesse saído da sua festa naquela noite. Se... são tantos sis, tantos arrependimentos. — Eu sou a professora Lettiê François e na aula de hoje vamos aprender sobre segurança no trabalho. Alguém aqui tem ideia de quantos acidentes podem acontecer em uma cozinha por causa de uma breve distração? — A aula não era atrativa, e confesso que algumas vezes me distrai com momentos que não conseguia apagar da minha mente. Essas lembranças é o que me mantém viva e ativa, e ao mesmo tempo elas me machucam também. No final da tarde, estou de volta ao apartamento e confesso que estou emocionalmente e fisicamente cansada, louca por uma ducha quente e uma cama macia.
****
Quando termino o meu jantar, me esforço para limpar os pratos e deixar a cozinha arrumada. Meu pai sempre me ensinou que um bom chef sempre mantém tudo em seus devidos lugares e eu sei que aprendi com o melhor. Sigo para o meu quarto praticamente me arrastando e quando finalmente chego a cama, ainda encontro forças para estudar e recapitular as aulas de hoje. Já é quase meia-noite quando apago a luz do abajur e ponho a minha máscara, para enfim ter mais uma noite de sonhos. Me viro para o lado e ajeito o lençol, cobrindo o meu corpo e finalmente posso relaxar, e foi aí que tudo aconteceu.
“Mas que porra é essa?”
Indago internamente enquanto retiro a máscara e encaro a escuridão do meu quarto, me sentando em seguida por causa do maldito som alto ecoando uma música francesa, praticamente dentro do meu quarto. Quem é o louco, ou a louca que está ouvindo música a uma hora dessas? Pulo para fora da cama e saio do meu quarto a passos largos, quase que atropelando os móveis a minha frente. Visto um casaco de tecido fino sobre o meu pijama de ceda, amarro pela cintura e vou até a porta. No entanto, quando chego a estender uma mão na maçaneta, a música simplesmente para e uma sequência de risadas femininas ecoa alto no apartamento em frente ao meu. Respiro fundo, muito fundo.
— Ah, j’adore cette chanson! Laisse la musique jouer. — A voz feminina diz manhosa, quase em uma súplica e depois volta a rir.
— Non chérie, il est tard. — Uma voz grossa e masculina responde com um tom doce e carinhoso.
— Je t'aime! — Ela sussurra.
— Je t'aime aussi! — Porra! Me afasto lentamente da porta, me sentindo arrasada e seguro as lágrimas. Volto para o meu quarto e me jogo na cama. A música volta a tocar, mas dessa vez com um tom mais baixo e suave, e é possível escutar os cochichos e as risadinhas dos dois através da parede. Sorri por dentro. Sei bem o que é estar apaixonada e eu jamais estragaria isso entre eles. O barulho do casal dura pouco tempo e a música foi desligada já na metade, mas o sono não veio mais. O cansaço e a fadiga não me abandonaram e mesmo assim, eu vi mais um dia amanhecer na grande Paris.
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Vocabulário;
Mon Dieu – Meu Deus
j’adore cette chanson! Laisse la musique jouer – Eu adoro essa música! Deixa tocar.
Non chérie, il est tard – Não, querida. Já está tarde.
Je t'aime! _ Eu te amo!
Je t'aime aussi! _ Eu te amo mais!
NOTAS DO AUTOR:
Oh, Deus! Estou com muita dó da nossa Kell! Espero que o Adrien não demore a vir em seu socorro.
Mais alguém aí na torcida?