Capítulo dois
MAJU
Prendi o meu cabelo em um coque alto, abri a torneira da pia e fiz uma concha com a mão. Levei a água que consegui acumular até o meu rosto, molhando o mesmo na expectativa de tirar um pouco da tensão.
Faço esse processo mais uma vez, antes de molhar um pouco a minha nuca e pescoço. Fechei a torneira, apoiando as minhas mãos na pia e levantando o rosto para encarar a mulher refletida no espelho.
As olheiras profundas em meu rosto deixavam claro o cansaço que estou nesse momento, adquirido através de um plantão de vinte quatro por quarenta e oito. Estou trabalhando um dia inteiro, sabendo que terei outros dois para compensar.
O início do meu plantão foi tranquilo, nada diferente do normal. As coisas foram complicar de verdade quatro horas atrás, quando um grande presidiário fugiu do presídio Gabriel Ferreira Castilho, mais conhecido apenas como Bangu três.
Pelo que entendi, a polícia foi atrás. Tudo isso resultou em uma perseguição policial pela Avenida Brasil, a maior Avenida do Rio de Janeiro. Por ser um horário de pico, oito horas da noite, resultou em muitas pessoas gravemente feridas como consequência dessa merda toda.
Eu não sei o resultado dessa perseguição, isso pouco me importa. O que realmente está me deixando com evidências do cansaço, tanto físico quanto mental, é a incerteza do futuro de diversos pacientes que estão por aqui.
Sei que a principal regra, para qualquer um que trabalha com atendimento de emergência, é ter um coração frio. Precisamos adentrar o hospital, deixando todos os sentimentos do lado de fora, assim fica mais fácil lidar com as perdas que se tornam parte do seu dia.
Precisamos não nos envolver profundamente, criar algum sentimento de empatia por nenhum paciente. Alguns podem sim sair, seja andando por seus próprios pés ou em uma cadeira de rodas, seja ela temporária ou não. Outros, todavia, só saem daqui direto para o caixão.
Nunca é algo fácil, exige, em níveis absurdos, do profissional em questão. Às vezes o paciente pode ser extremamente chato, mas a família é um doce sem igual e na hora de contar, você sente a dor. A pior parte é entregar uma notícia negativa a um dos familiares, principalmente quando esse em questão é mãe.
__ Maria Julia.--- Sara, minha amiga, chamou por mim enquanto entrava no banheiro reservado para funcionários.
__ Já vou.--- Suspirei, antes que ela pudesse falar qualquer coisa, apoiando o meu peso na pia.
__ Eu sei que não é fácil amiga, mas precisamos fazer isso. Deve está sendo torturante para a família, passar esse tempo todo sem uma notícia que seja.--- Sorriu carinhosamente, juntando as nossas mãos.
Há poucas horas um homem chegou, vítima desse conflito na Avenida Brasil. Ele havia sido vítima de uma bala perdida, estava entre a vida e a morte e um pouco antes de levar ele para a sala de cirurgia, só consegui escutar a sua mãe pedindo para salvar a vida do filho.
Eu tentei, juro que tentei. Dei tudo de mim, auxiliei como pude os médicos e cirurgiões, mas a bala perfurou o coração, que não levou poucos minutos antes de bater pela última vez.
__ Vamos terminar isso de uma vez por todas.--- Fiquei de pé, tentando soar firme e confiante em minhas palavras.
__ Estou logo atrás de você.--- Demonstrou apoio, tirando de mim um sorriso em sinal de gratidão.
Sara é uma colega de trabalho. Eu a ajudo em seu trabalho, afinal sou a enfermeira chefe e ela técnica de enfermagem. Com o tempo e a convivência acabamos criando um certo nível de intimidade.
Saímos do banheiro, caminhando diretamente para a recepção. Respirei fundo, preciso fazer o meu trabalho.
__ Parentes do senhor Antônio Cassimiro?--- Perguntei firme, encarando a ficha.
__ Somos nós.--- Escutei a voz da mesma senhora da outra vez.
Rapidamente escuto a movimentação e algumas pessoas estão perto de mim, visivelmente ansioso por notícias.
__ Graças a Deus alguma notícia.--- Uma voz feminina fala.
Ainda séria, levantei o meu olhar. Tinha umas cinco pessoas na minha frente, contando com a senhora da outra hora. Mas dessa vez uma mulher gestante, que pela minha experiência devia estar por volta dos seis meses de gravidez. Em seu dedo uma aliança de casamento, similar a que vi na mão do falecido.
Isso vai ser ainda mais difícil do que eu poderia imaginar.
__ O paciente chegou nesta unidade com uma bala em seu coração, a mesma perfurou o seu pulmão e alojou-se no ventrículo direito. Conseguimos parar a hemorragia que se fez, mas infelizmente o seu coração não resistiu e parou de bater com três horas de cirurgia. Fizemos o nosso melhor, mas o paciente veio a óbito.--- Tento me manter firme, mesmo com as lágrimas nos olhos da mãe e, provavelmente, mulher.--- Eu sinto muito.
__ NÃO.--- Gritou a gestante, ficando cada vez mais branca. O homem ao seu lado foi o primeiro a sair do choque, segurando ela para que não caísse.
__ Doutora, por favor, diz que está mentindo.--- Pediu uma quarta pessoa.
__ Eles são casados há dez anos, já estavam no terceiro filho. O meu filho é um bom homem, estava voltando de um trabalho. Depois de muito tempo havia conseguido uma obra para fazer, estava radiante porque poderíamos fazer um bolo para o aniversário de seis para a sua filha mais velha. Ele estava voltando do trabalho.--- Contou a mãe.
Respirei fundo, controlando os meus sentimentos. Muitos tem essa reação, de me contar a história do paciente em si, como se isso fosse o suficiente para que ele voltasse à vida. Sei que em momento como esse, qualquer esperança tem que ser agarrada.
Sei disso, pois tive a mesma reação quando uma situação similar aconteceu com o meu pai anos atrás. A única diferença é que eu não tinha seis anos, mas sim quinze. De resto, parece que estou revivendo todo aquele pesadelo.
__ Eu sinto muito.--- Repeti sem mais o que falar.
Nenhuma palavra poderia aliviar a dor, o luto. Ele saiu essa manhã em busca do pão de cada dia de sua família, mas jamais poderia imaginar que nunca mais retornaria.
A verdade é que nunca imaginamos que podemos ser vítimas de uma bala perdida, que na verdade foi bem achada. Que podemos entrar em uma estática grande e cruel demais para ser contada.
__ Não, você não sente, nem sequer imagina o que estou vivendo.--- Falou a moça gestante.--- O que eu vou falar aos nossos filhos quando eles vierem perguntar que horas o pai deles vai chegar?
Sem mais o que falar, apenas abaixei a minha cabeça. O pior de tudo isso é porque foi de surpresa, algo tão repentino que não tiveram tempo de processar a ideia da perda, pois tiveram que lidar com o fato em si sem nenhum preparo emocional.
Não que ter um possa servir de algo, mas pelo menos não é tão doloroso.
__ Com licença.--- Pedi assim que vi alguém da minha equipe fazer um sinal, indicando que precisavam de mim.
Dei as costas, escutando o choro alto deles ainda. Sinto o meu coração pesado, doido para abraçar um deles e chorar juntos, contar que conheço melhor do que ninguém essa dor, pois convivo com ela diariamente e nada que eu faça pode me fazer esquecer da forma tão dolorosa que o meu herói me foi arrancado.
__ Podemos realizar a troca das equipes?--- Perguntou um enfermeiro da minha equipe.
__ Podem sim, mas não façam isso de uma vez, mas sim gradativamente. O hospital está um caos, não podemos deixar nenhum setor desatendido.--- Autorizei.
__A senhora não vai agora?--- Perguntou Daniel, um enfermeiro.
__ Nem se eu quisesse.--- Neguei com a cabeça.--- Precisam de mim aqui para organizar as equipes, para liderar também. Quando tudo normalizar eu saio.
__ Pode levar a madrugada inteira, até mesmo o dia.--- Argumentou Sara.
__ Eu sei.--- Permito que os meus ombros caiam, um sinal claro de cansaço.
__ Ao menos coma algo, poderá passar mal se continuar nesse ritmo.--- Pediu minha amiga.
__ Eu já estou acostumada, não se preocupem. Agora se arrumem, vão para a casa e descansem, mas antes de cumprir a última parte, agradeçam por terem retornado aos seus lares, nem todos tiveram essa sorte.--- Aconselhei.
Involuntariamente o meu olhar voltou para aquela família, onde a moça gestante era atendida por uma equipe de enfermeiros. Ela aparentava ter desmaiado. Sinto pena, essa não é uma notícia fácil de se receber, mas ela não terá outra escolha que não seja se reerguer e continuar lutando por seus filhos. Eles vão precisar dela como nunca antes.
Dei um sorriso sem sentimentos para todos, começando a me afastar deles logo em seguida. Não tenho tempo para sentir nada, nem mesmo ser tomada por lembranças dolorosas, mais pessoas precisam de mim nesse momento.
Orientei a nova equipe, que já chegou pegando pesado. A maioria dos setores estava um caos, o que demandou de mim um pouco mais de estratégia na hora de espelhar todos, diferente de como tinha feito no plano que os enviei. Sou muito organizada e cuidadosa com isso, tomo o maior cuidado ao organizar as equipes.
Esse é um hospital muito grande, demandando a maior atenção possível. Não posso me dar ao luxo de errar uma vírgula que seja, se não essa me será cobrada. É uma responsabilidade enorme, mas gosto de me sentir útil e se tem uma coisa que nunca fiz foi fugir do trabalho.
Agora só saio daqui ao concluir minha faculdade(ouvi um amém por estar no último período?) e me tornar uma médica mesmo. Sou uma pessoa ambiciosa, com garra o suficiente para correr atrás dos meus objetivos, com o intuito de tornar os sonhos em realidade sem pisar em ninguém, apenas com o meu esforço.
Após quarenta e oito horas intensas. Sim, foi um dia a mais do que planejado. Estava chamando um uber para a minha casa, sabia que não iriam subir por se tratar de uma comunidade, mas lá eu pegava um moto táxi. A única coisa que não posso fazer agora é ir de ônibus, não iria aguentar.
Entrei no carro, tomando um copo inteiro de café. Fui educada e cumprimentei o motorista, abrir as janelas de trás e encostei o meu corpo. Como esperado, pegamos um pequeno trânsito na Avenida Brasil.
Não é sempre que me dou ao luxo de ir de uber, afinal moro longe e acaba ficando bem caro. Mas neste momento estou mais do que exausta, não tenho outra escolha. Sem contar que me dar a esse luxo uma vez ou outra não faz mal a ninguém.
Estou fazendo a minha auto escola e assim que terminar a faculdade, vou comprar o meu carro. De início não quero nem um zero, apenas um veículo que me tire desse sufoco.
__ Desculpe moça, mas não vou passar daqui.--- Falou o motorista.
__ Tudo bem, tenha um bom dia.--- Falei simples, saindo do carro. Já havia pagado pelo pix, então não me preocupei e apenas comecei a subir tudo.
Sou moradora da Comunidade da Rocinha, o que para muitos é um cúmulo, não é algo que me incomode tanto. Sou nascida e criada nesse lugar, o conheço como a palma da minha mão.
Pretendo sair daqui sim, mas só futuramente. No momento, meu foco é terminar a minha faculdade, comprar o meu carrinho e só depois eu compro uma casa. Por enquanto estou bem, morando com a minha vó, la cuida tão bem de mim que nem me vejo mais longe dela, afinal ela já disse que daqui não sai.
__ Ai colega.--- Chamei o menino do moto taxi quando este passou por mim.
__ Fala ai, princesa.--- Parou ao meu lado, olhando descaradamente para o meu corpo.
Sou uma mulher morena, baixinha, com cabelo liso e bem grande. O que não tenho de altura compenso com um corpo avantajado, violão como muitos o chama.
__ Me leva na casa perto do mercadinho do seu João?--- Pedi.
__ Monta ai.--- Apontou para a garupa e eu subi na mesma.
Quando chegamos, apenas paguei a sua corrida e sai ignorando as piadas. Já me acostumei com as mesmas, não tenho outra escolha.
__ Bom dia, Billy.--- Cumprimentei o salsicha que me cumprimentou assim que eu cheguei. Amo a festa que ele faz.
__ MAJU?--- Gritou minha avó da cozinha.
__ EU.--- Gritei de volta.
Não levou muito tempo até que ela apareceu secando suas mãos no pano de prato.
__ Desculpa a demora, a senhora leu a minha mensagem?--- Perguntei.
__Li sim, meu amor.--- Concordou.--- Fiz sua comida favorita, frango com quiabo. Agora toma o seu banho que a Vovó vai levar um prato pra você.
Concordei com a cabeça, agradecendo com um sorriso cansado. Passei por ela, dando um beijo na sua cabeça e subi as escadas. É uma casa duplex recém reformada. A reforma me custou uma fortuna, mas valeu a pena, minha avó ficou muito feliz e isso basta.
Deixei tudo no canto do quarto, tomei um banho longo e relaxante, colocando um pijama branco. Comi o prato que a minha vó fez, liguei o ar e deitei com o meu companheiro nas pernas.
Estou exausta, só quero descansar como mereço!