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Gabriel

O dia lá em casa começava cedo, quatro horas da manhã minha coroa já estava de pé passando um café e se arrumando para mais um dia de trabalho.

Assim que ela saía, levantava lá pras seis da manhã e também já começava meus dia, esperando os corres que teria que fazer ao longo do dia.

- Levanta, vagabundo - digo ao voltar para o quarto, depois de tomar um banho, encontrando Davi ainda dormindo - Aqui não é pousada não.

Ele resmunga alguma coisa, mas o ignoro. Se não saísse logo, iria me atrasar. Nos últimos dias, os caras da quebrada não tinham muita coisa para mim fazer, então havia começado a vender salgadinhos e balas num sinal não muito longe dali.

Estava terminando de me arrumar, quando ouvi alguém me gritar do portão e bater palma em seguida. Intrigado, saio do quarto e vou até a porta da frente, abrindo um pouco a porta.

- Quem é? - digo sério, elevando a voz.

- Sou cara, Juninho - Abro mais a porta, saindo de casa.

Juninho era um dos traficantes dali da comunidade, era um dos mais empenhados, que dava não somente o sangue pelo comando, mas também a vida. Algo que com certeza não faria, já que saberia muito bem separar o tráfico da minha família.

Mas para Juninho a facção era a família dele e nada depois disso, importava.

Não era sempre que ele ia lá em casa, primeiro por que minha mãe não gostava nem dele e nem dos demais e por que não tínhamos tanta amizade.

Só que ele estava ali agora e alguma coisa ele queria, já que não fosse importante, nem ali estaria.

Encostado no muro ao lado do portão, ele me encara com a expressão séria, enquanto caminho até o portão, sem me dar o luxo de abri-lo.

- Diz aí.

- Tem um trabalho pra você.

- Trabalho? - repito - Que trabalho é?

- Caveira é que sabe. Ele só mandou avisar pra você ir lá.

- Beleza - Volto para dentro de casa, pegando a chave, só então abrindo o portão e saindo de casa.

Andamos lado a lado em silêncio, algumas pessoas que passam por nós nos encaram por longos segundos, outras somente abaixam a cabeça, evitando qualquer tipo de contato visual.

A boa parte dos moradores da comunidade. Tinham medo dos traficantes dali, pois sabiam do que eles eram capazes e se cismassem com sua cara ou achassem que era algum tipo de x9, poderiam ser brutais. Traficantes odiavam x9 e mais ainda curiosos.

Na comunidade vivíamos sobre as leis deles, a polícia ali não podia fazer nada, muito menos intervir nas decisões do chefão.

Começamos a subir o morro, passando por mais pessoas no percurso, algumas conhecidas minhas que cumprimento com um aceno de cabeça. A medida que andávamos, tentava imaginar o que o Caveira queria comigo.

As vezes ele me mandava lavar o carro dele, levar alguma encomenda até outra comunidade ou dar algum recado. Então só deveria ser algo do tipo.

- Ele não falou o que queria comigo não? - pergunto para Juninho, quando já estávamos na metade do caminho.

- Falou nada.

Continuo a andar, convicto de que não deveria ser nada demais. Nunca era algo muito importante.

No alto do morro em cima de uma laje fazendo um churrasco em plena terça-feira, lá estava Caveira com outros traficantes, ao som de um pagode e acompanhado de muita mulher.

Algo completamente normal para eles e até para mim, que já estava completamente já habituado com tais coisas.

Me aproximo sem jeito, preferindo ficar num canto, enquanto tentava evitar de olhar para duas mulheres com biquínis pequenos e seios fartos, que dançavam e sorriam disfarçadamente para mim.

Juninho vai até Caveira e diz alguma coisa, apontando em seguida para mim. Ele assenti, dando um tapa nas costas de Juninho, antes de vir até mim dando um longa tragada num baseado.

- Tudo tranquilo? - Ele pergunta, soltando a fumaça no meu rosto.

- Tudo sim - digo sem hesitar - Queria que eu fizesse alguma coisa?

Ele dá outra tragada assentindo, os olhos fixos em mim, como se estivesse me minha mãelisando.

- Ainda quer entrar pra família?

A pergunta me fez franzir o cenho. Não era bem o que estava esperando. Todos eles já sabiam da resposta, que fazia de tudo para eles verem que poderia ser útil. Acreditava que se ganhasse o mesmo que eles ganhavam ali na comunidade, conseguiria que minha mãe parasse de ralar o dia todo em duas casas de família e cuidasse mais dela.

Ela havia feito isso desde que meu pai nos abandonou. Cuidou e criou dos filhos dos outros e no final, ainda saiu por ruim. Praticamente tivemos que nos criar sozinhos, cuidar um do outro, enquanto ela lutava para chegar de noite com alguma coisa para comermos.

Queria retribuir tudo que ela já havia feito por mim e não mediria esforços para isso, igual ela não media.

- Quero sim - digo com a voz firme e o tom sério.

Ele assenti, olhando para a loira perto da churrasqueira. Mantenho meus olhos nele por via das dúvidas.

- Tenho um trabalho pra você então - diz por fim, voltando a me olhar - Se conseguir fazer, se considere dentro. Se não, já sabe.

Sem qualquer motivo, meu coração acelera e começo a transpirar. Era algo que não tinha controle, toda vez que ficava sob pressão ou nervoso, meu corpo já dava sinais para isso e acabava me entregando.

Respirando fundo e mantendo a postura de “bandido mau” que eu não tinha, assinto.

- O que tenho que fazer?

Ele dá um meio sorriso.

- Passar fogo num policial.

Um zunindo se instala em meu ouvido e aos poucos, perco completamente o foco de tudo ao meu redor. Não era nada do que estava esperando, não era uma das coisas simples que ele mandava fazer, que não interferia na vida de ninguém ou prejudicava, era algo drástico e definitivo.

Minha boca fica seca e tenho dificuldade em respirar, precisando começar a respirar pela boca.

- Qual foi, Gabriel? Tá pálido - diz rindo - Tá passando mal?

Pisco algumas vezes, engolindo em seco, tentando me recompor o mais rápido que podia, enquanto minha mente ainda processava de forma lenta as palavras ditas por ele.

Mais que porra era aquela?! Pra quê matar um policial?

A pergunta obviamente eu já tinha a resposta. Eles odiavam policiais e vice-versa, mas eu não queria matar uma pessoa que nunca me fez mal algum que, eu nem conhecia.

Mas aquele era o preço que tinha que pagar, se quisesse o dinheiro que tanto queria.

Juninho se aproxima, sem saber o que estava acontecendo.

- O que tá pegando?

- O Gabriel vai arregar - diz Caveira em tom divertido, debochando da minha reação.

Juninho junta as sobrancelhas, dividindo sua atenção entre eu e Caveira.

- Que nada, o cara tem sede de dinheiro - Ele dá um tapa leve nas minhas costas - Não é, Gabriel?

- É - digo num tom baixo.

- Sei não - Caveira dá mais uma tragada no cigarro - Acho que ele só vai fazer alarde. O moleque é novo na caminhada e vai acabar fazendo merda, vai sobrar pra mim limpar depois a cagada.

- Não - digo de imediato - Não vou não. Confia - Ele precisava acreditar que eu conseguiria, aquela era a minha única chance, se não conseguisse fazer o que queriam, nunca mais teria.

- Aí, Caveira, quer mais o que? O cara diz que consegue, dá uma chance.

Caveira me olha por alguns segundos, antes de sair andando até a churrasqueira.

Olho para Juninho, esperando que ele soubesse o que aquilo queria dizer.

- Consegue mesmo? - Ele pergunta, dando um passo na minha direção - Não é fácil não, principalmente quando é a primeira vez - E ele deveria saber muito bem disse, já que deveria ter feito aquilo já mais do que eu poderia contar nos meus dedos das mãos e dos pés - E é um verme, um vacilo seu, ele mata você e de vez da família dele velar você, quem vai fazer teu velório é tua coroa - Franzo o cenho, o encarando com a cara fechada - É você que sabe, se vê que não vai conseguir, que vai amarelar, cai fora logo e deixa pra outro a vez - Ele dá outro passo na minha direção, até ficar centímetros de distância de mim - Mas se vê que consegue, vai, Caveira não é de dá segundas chances pra ninguém e tu já sacou isso, não já?

- Já sim.

- Então pega a visão.

Caveira volta cinco minutos depois com um prato recheado de carne. A cena fez com que minha boca enchesse de água, já fazia algum tempo que não comíamos carne em casa e o fato de eu querer comer a mesma quantidade ou mais, me fez ir em frente na minha decisão.

- Se tu ramelar, só vai ramelar uma vez - diz ele, apontando o dedo indicador com gordura na minha direção - Tá entendendo?

- Tô sim.

Caveira olha para Juninho ainda do meu lado.

- Dá pra ele tudo que ele tem que saber.

- Beleza.

Com isso, ele volta para a roda de samba dele, me deixando para trás com as pernas completamente bambas e fora do ar. Ainda não havia acreditado no que acabara de aceitar fazer, se minha mãe soubesse de uma coisa daquela, primeiro ela me daria uma surra para me deixar sem conseguir andar por três dias e depois me expulsaria de casa.

Essa era uma das piores hipóteses do que ela faria comigo, poderia fazer coisas piores e não poderia reclamar, já que sei que é algo muito grave e que não tem perdão.

- O cara é esse aqui - Juninho me mostra uma foto no celular dele. Era um homem alto, parcialmente musculoso e vestido num uniforme preto que eu conhecia muito bem.

- Ele é do BOPE?! - pergunto incrédulo e ao mesmo tempo surpreso. A cada instante a situação só piorava e só dava indícios que eu deveria ter recusado e ficado com a minha falta de sorte na vida.ç

- Comandante.

- Que porra, Juninho - murmuro ainda surpreso, encarando a foto, sentindo novamente minhas mãos começaram a suar e o suor se acumular na minha testa.

Eu não teria chances, estava na cara. Ele me mataria antes mesmo de eu tentar alguma coisa com ele.

- Tão planejando invadir o morro.

- Tão? - repito.

Ele franze o cenho, erguendo um pouco o queixo.

- Tu não vê jornal, não, Gabriel? Em que mundo que tu vive? A casa caindo pra nois e você aí boiando - Passo as mãos pelo rosto, respirando fundo, soltando o ar de uma vez dos meus pulmões.

- Estes dias não tenho visto jornal não.

- Então fique sabendo. Querem o Caveira vivo ou morto e vai ser nessa hora que você vai matar ele.

Assim como os policiais, eles também tinham um plano. Um plano que os deixaria com as mãos e os pés atados por algum tempo, enquanto pensavam no que iriam fazer.

Respiro fundo diversas vezes, com o olhar fixo no vazio, processando as palavras ditas e imaginando por um instante que aquela comunidade iria virar um verdadeiro inferno. Já que os dois lados tinham objetivos iguais e que isso geralmente, nunca acabava bem

- E quando vai ser isso?

- Essa semminha mãe. Os verme já tão tudo preparado, o informante disse que até os PM vão ajudar.

- E o exército?

- Só vão chamar se a situação sair do controle. Mas nois sabe que vai sair, que com a morte desse cara aqui, vão mandar eles entrar com tudo, só que aí não vai nada aqui pra eles.

- E por que o Caveira não sai daqui? - Seria o que eu faria, não ficaria ali, numa roda de samba esperando que a polícia invadisse e tentasse me matar.

- Estão de olho nele, em cada passo que ele dá. Se ele sair da comunidade, vai tá assinando a sentença de morte dele.

Então o plano do Caveira era mais complicado do que eu pensava. Ele iria esperar sim que invadissem, me colocaria para matar o comandante, no meio tempo que eles estivessem novamente se erguendo, usaria esse tempo para fugir e quando invadissem novamente, não iriam encontrá-lo, muito menos as drogas.

Merda, penso, me dando conta de um segundo fato. Agora eu sabia demais.

- Só precisa fazer tua parte - diz Juninho por fim, me lembrando que ainda estava numa laje com um dos traficantes mais procurados do Rio de Janeiro a poucos passos de mim.

- Entendi.

- E não fode com tudo, tá ligado?

- Tô sim.

- Beleza.

Saio da laje não sentindo minhas pernas. Pareciam gelatinas e não se firmavam direito no chão. A cada passo que eu dava para longe, fazia com que meu coração acelerasse mais e eu voltasse a suar como se estivesse correndo a maratona do São Silvestre.

Havia alguns pequenos detalhes que eu precisaria acertar, como por exemplo, o fato de não saber atirar. Se fosse de estilingue, até que seria fácil, mas uma arma, nunca havia pegado uma e toda vez que me aproximava de uma, acreditava que iria disparar a qualquer momento.

Quando me dou conta, já estou em frente de casa e entrando pelo portão bruscamente, indo direto para a cozinha. No sofá, Davi me olha sem entender.

Bebo dois copos de água, bebendo o terceiro facilmente.

- Tá assim por quê? - Davi pergunta, quando saio da cozinha.

- Não é nada não.

- Tá com cara que viu um fantasma - Ver um fantasma seria melhor do que havia acabado de aceitar fazer.

- Tô bem - Me aproximo da janela, esperando que meu corpo voltasse ao normal.

- Sei - Encaro ele por cima do ombro.

- Vai começar a pegar no meu pé mesmo?

- Não tô dizendo nada.

- E não é pra dizer mesmo, cuida da sua vida, que vou cuidar da minha - Dito isto, decido tomar um banho para esfriar minha cabeça e tentar pensar com clareza.

Depois de um banho frio de alguns minutos, saio do banheiro sentindo meu corpo um verdadeiro cubo de gelo, mas já conseguia pensar com clareza e ver a situação que havia me metido por outro ângulo.

As portas se abririam para mim ali, quando eu fizesse o que queriam. Só precisava matar o cara, se possível, um único tiro, certeiro e limpo, sem fazer com que ele sofresse ou qualquer outra coisa do tipo. Pensando nisso, precisava saber exatamente por onde a polícia iria entrar e me esconder, tinha que ser do alto, tipo aquelas snippers, eles tinham uma melhor visão de cima e era i9sso que eu queria.

Tentaria não chamar muita atenção, isto era o essencial. Depois que notassem que ele havia sido baleado, começariam a olhar para todos os lados como gaviões e se eu permanecesse no mesmo lugar, me encontrariam e Deus sabe o quê, fariam comigo se me pegasse, o mais grave que poderiam fazer comigo era me torturar lentamente, até eu implorar para que me matassem.

E não queria que minha mãe sofresse, então por isso, tinha que pensar em cada passo que eu daria até o momento que o mataria e depois dá um jeito de me esconder até a poeira baixar.

O difícil seria explicar para minha mãe aonde eu havia me metido por quase 24 horas.

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