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Carolina

Meu dia começava cedo e quando eu digo cedo, por volta das 4 da manhã, era quando eu levantava cedo para correr. Havia encontrado um jeito de sempre me manter disposta, depois de duas gestações e com uma rotina tão corrida.

A corrida durava em média uma hora, quando eu voltava, na grande maioria das vezes, encontrava Guilherme de pé, já preparando o café da manhã.

Naquele momento que estava correndo, era o único momento em que me sentia eu mesma e poderia colocar para fora todos os sentimentos ruins que estavam presos dentro de mim. Me sentia leve quando voltava para casa, suada, ciente que havia descarregado todas minhas energias e que estava pronta para recarregá-las novamente.

- Oi - digo ao encontrar Guilherme em pé no meio da sala, diante da televisão.

- Bom dia - diz num tom baixo, se inclinando para me dar um beijo rápido, não conseguido focar completamente nele, já que o noticiário a frente falava sobre uma invasão do BOPE naquele dia.

- Vai ter invasão? - pergunto pasma.

- Eu não contei? - Mesmo sendo casada com o comandante, não era tudo que Guilherme me contava, não sei se ele fazia de próposito ou acontecia por ele não lembrar de ter que comentar comigo.

- Não.

- Mas agora você já sabe - Ele volta a olhar para a televisão.

- O exército vai estar lá?

- Não - Franzo o cenho, olhando-o novamente. Invadir uma comunidade como aquela, com dezenas de traficantes altamente armados e sem o apoio do exército, não me parecia ser uma boa entrada, a polícia militar naquele caso não seria tão útil.

- A polícia militar que irá dar apoio?

Ele se afasta, andando em direção a cozinha.

- Damos conta.

- Eu sei que nós damos conta - Sigo ele até a cozinha - Só que não fazemos ideia do que estará nos esperando.

- Bandidinhos de merda que merecem morrer, só isso - diz com raiva na voz - É por isso que vamos lá, pra limpar aquele lugar.

Paro perto da porta, observando-o se servir de café.

- Você sabe que não é só traficantes que tem lá - murmuro - Tem crianças da mesma idade dos nossos filhos.

- E será que os pais deles não vê jornal? Já estão cientes da invasão, agora tem que fazer a parte deles - diz com tom sério, terminando a conversa ao sair da cozinha.

As vezes odiava aquele jeito do Guilherme, não o reconhecia. Ele acreditava que todo mundo em uma comunidade era bandido e os que moravam lá que não faziam nada contra eles, eram coniventes com o crime. Entretanto, eu acreditava que não era bem assim, que nem todo mundo que morava em uma comunidade, tinha alternativa, nós da polícia, sabíamos muito bem o que traficantes podiam fazer, até que ponto de crueldade que poderiam chegar.

Guilherme acreditava que era dever da polícia, limpar as comunidades deste mal e adorava quando éramos chamados para situações deste tipo, pois sabia que era poucas as vezes que prendíamos alguém.

Depois de um banho repleto de pensamentos confusos, volto para a cozinha, no exato momento em que minha mãe entra em casa, cumprimentando de forma o gentil o genro antes de vir até mim na cozinha.

- Vi o noticiário - diz ao entrar na cozinha - Vão invadir mesmo aquela favela? - E minha mãe como Guilherme, odiava comunidades, acreditava que nem deveriam existir e que as pessoas que moravam ali, para começo de conversa, deveriam morar num lugar bem distante de pessoas como eles.

- Deveria perguntar isso para o Guilherme - digo calmamente - Não sou comandante. Ele é.

- Isso é jeito de falar comigo, Carolina? Sou sua mãe e você é bom voltar a me respeitar - diz elevando um pouco a voz - Você mais do que ninguém deve saber o que seu marido vai fazer ou não, principalmente quando se trata da vida de vocês.

Solto o ar dos pulmões.

- Tá bom, mãe.

Ela começa a se mover pela cozinha, tirando vasilhas de uma sacola ecológica.

- E tente não voltar morta - Continua com a voz severa - Tem duas crianças aqui esperando a mãe voltar.

Enquanto Guilherme vibrava para entrar em uma comunidade e matar todos os traficantes que via pela frente, eu temia ser baleada e não voltar para meus filhos.

Todas as manhãs antes de sair, me despedia deles ainda dormindo com um beijo e com muito pesar, que me afastava deles.

Nesta altura, Guilherme me esperava dentro do carro, impaciente, já que deveria ser o primeiro a chegar e ver os últimos detalhes que estavam faltando.

O silêncio predomina dentro do carro, a apreensão me dominava e não conseguia parar de pensar nos meus filhos. Guilherme parecia mais calmo ao meu lado, concentrado em apenas chegar logo.

Como já esperado, todos os policiais estavam na mesma sintonia, esperando o momento em que iriam partir para o ataque. Em momentos como este, preferia me manter distante, tentando uma conexão direta com Deus e m busca de proteção não somente à mim, mas aos moradores que estariam no meio daquele confronto.

Chegada a hora nos deslocamos em nossos carros, enfileirados pelas ruas, chamávamos a atenção de todas as pessoas. Segurava com um pouco mais de força a arma de comprida em minha mão, tamanha era a força que não demorou para aquecer o cano.

A imprensa estava na entrada da comunidade, ansiosos pela nossa chegada e quando viram Guilherme, foram como um enxame de abelhas para cima dele em busca de uma entrevista. Ele é claro, se negou a falar com todos e foi começar a por o plano em ação.

Soltando o ar dos pulmões, entro em ação, após a liberação de Guilherme. Os policias haviam sido distribuídos estrategicamente, prontos para qualquer ataque surpresa.

Os primeiros minutos são de completos silêncio, não havia moradores a vista e os comércios locais estavam fechados. Até que tudo mudou com uma rajada de tiros, que estremeceu todo meu corpo.

Os policias que estavam à minha frente e nas minhas costas, paralisaram por um instante, até que continuamos a andar na posição que estávamos. Em algum lugar ali, Guilherme estava com outro grupo, sendo mais exigente e autoritário que que já era.

É claro que aquela calmaria não iria durar para sempre e logo estávamos atirando sem saber em quem, avançando toda vez que víamos que o suspeito havia sido abatido.

O suor se acumulava em minha testa e descia pelo meu rosto e pescoço e a arma que segurava, estava escorregadia, graças as minhas mãos suadas. Meu coração batia descontroladamente, mas não lhe dava atenção que deveria dar.

Avançávamos para o alto do morro, em busca de um traficante que já estava sendo procurado a um bom tempo e que tínhamos informação que estava ali já algum tempo.

Teoricamente não era algo difícil de se fazer, mas quando colocado em prática, tudo mudava.

Foi quando ouvi uma explosão não muito longe dali e a primeira pessoa que vem à minha mente é Guilherme. Saindo da posição que estava, corro na direção da explosão, igGuilhermendo as vozes dos meus colegas que, temiam que algo de ruim pudesse me acontecer.

Senti quando estava me aproximando, quando de repente ouvi outra explosão, dessa vez perto de mim, o que me desacordou.

O barulho de disparos cortou a escuridão, me  levando de volta à consciência. Meu cérebro parecia estar nadando em uma neblina densa e viscosa, aos poucos percebi que já estava escuro e ainda assim, ouvia disparos vindo de toda parte.

           Gemendo, rolei o corpo para ficar de bruços, quase vomitando por causa da agonia no crânio.

           Onde estava Guilherme? O que aconteceu? Estávamos em missão e... Merda!

           IgGuilhermendo o latejar na cabeça, começo a rastejar na areia para longe dos disparos. Meu corpo inteiro doía e as partículas de areia cobriam meus olhos e enchiam meus pulmões. Parecia que eu era feita de areia, que minha pele se dissolveria e seria soprada para longe pelo vento.

          Mais disparos e um grito de dor.

          Senti um aperto de medo no peito.

— Guilherme?

— Fui atingido. — A voz de Guilherme era chocada. — Ai,merda, Carol, eles me pegaram.

— Aguenta firme. — Rastejei de volta na direção dos disparos, arrastando meu fuzil inútil.  Eu ficara sem munição cinco minutos depois de sermos emboscados, mas não queria deixar a arma para os traficantes  — Estão vindo nos buscar.

         Guilherme tosse, mas o som se transformou em um gorgolejar.

— Sai daqui, Carol. Sai logo daqui. Volte.

— Cale a boca. — Rastejei mais depressa. A luz fraca da lua iluminava um pequeno monte perto de nossa viatura capotada.

          A voz de Guilherme vinha daquela direção e eu sabia que devia ser ele.

Sentia que era ele.

— Só aguente firme.

— Eles não... tem que sair daqui, Carol. — Ele respirava agora com dificuldade. A bala devia ter atingido os pulmões dele. — Eles... ele queria isto. Ele ordenou isto.

— Do que você está falando? — Finalmente cheguei até ele.

         Mas, quando encostei nele, só senti carne molhada e ossos fraturados. Afastei a mão. — Merda, Guilherme, sua perna...

— Você precisa... — Ele respira fundo, fazendo um som esquisito — ir embora. Eles explodirão este lugar se vierem. Aquele filho da puta, ele... eu o peguei. Eu ia expô-lo. Isto não é o Talibã. Sabiam... — Ele tosse — sabia que estaríamos aqui. Isto é coisa dele.

— Para. Nós vamos sair desta. — Eu não podia pensar no que Guilherme dizia, não podia processar as implicações das palavras dele. Não podíamos ter nos traído daquele jeito. Era impossível. — Só aguente firme, amor.

— Não dá — Ele faz um som estranho novamente quando estendi a mão para ele. — Eles... — Ele engasgou e senti um líquido quente cobrindo minhas mãos ao pressioná-las na barriga dele.

— Gui, fica comigo. — Meu coração batia em um ritmo regular e doentio.

         Não o Guilherme. Aquilo não podia estar acontecendo com ele. Aumentei a pressão no ferimento dele, tentando estancar o sangue.

— Vamos, por favor, fique comigo. A ajuda chegará em breve.

— Corra — Ele murmura baixinho. — Ele matará... — Ele estremece e senti o momento em que aconteceu. O corpo dele ficou mole e o fedor da evacuação encheu o ar.

— Guilherme! — Mantendo uma das mãos na barriga dele, coloquei a outra em seu pescoço, mas não havia pulsação.

         Acabou. Meu marido e comandante estava morto.

Por um momento fiquei sem reação, sem saber o que fazer. Não sabia nem o que pensar direito. Estava diante do corpo do meu marido e não sabia o que fazer.

        Rá-tá-tá!

       Os disparos voltaram, bem como a neblina no meu cérebro. Também estava quente, muito mais quente do que deveria estar à noite no deserto. O calor me consumia como se...

        Puta merda, estou em chamas!

      Me  jogando para o lado, rolei o corpo, parando apenas quando o calor diminuiu. Minhas costelas doíam muito e minha cabeça girava, mas as chamas que queimavam minha pele desapareceram.

          Ofegante, abri os olhos e olhei para o teto alto acima de mim.

         Teto, não céu noturno.

         Meu cérebro finalmente voltou ao normal.

       Minha primeira missão tinha acontecido há quatro anos antes. Havia sido a primeira vez que vi alguém morrer e ser baleado.

        Não conhecia ninguém, então não tinha por quem chorar e mesmo que eu quisesse chorar naquele momento, não conseguia por alguma razão, era como se estivesse esperando o jogo  ser reiniciado e recomeçar tudo novamente.

        Entretanto, não iria recomeçar.

        Rá-tá-tá!

        Virei a cabeça e vi um vulto pequeno correndo no outro lado. Quatro homens vestindo uniforme do BOPE corriam atrás dele. Enquanto eu observava incrédula, ele se  virou e disparou a AK-47 contra os perseguidores. Em seguida, ele correu para longe, sumindo de vista em poucos segundos.

          Merda. Eu precisava fazer alguma coisa. Gemendo, rolei o corpo.

       Tudo queimava à minha volta, incluindo a viatura. Um barulho em questão chamou minha atenção, um helicóptero da polícia.

        Ele estava pousando não muito muito longe dali com as pás desligadas.Os traficantes deviam ter matado os policias da última viatura antes de irem atrás de nós.

       Enquanto tentava me levantar, vi um policial saltar na direção da viatura em chamas. Percebi com alívio que ele sobrevivera.

          Lutando contra uma onda de tontura, dei um passo em direção ao carro, igGuilhermendo a dor agonizante nas costelas.

          Antes que eu chegasse lá, ele saltou para fora da viatura segurando uma metralhadoras e correu atrás dos traficantes. Eu estava prestes a ajudá-lo quando percebi movimento perto do helicóptero.

         Dois homens saíam dele, claramente com a intenção de escapar.

        Reagi antes mesmo de perceber conscientemente quem eram. Erguendo a arma, disparei neles várias vezes, propositalmente mirando longe de órgãos críticos. Quando parei, o lugar estava novamente em silêncio. Olhei para trás e vi alguns dos nossos. Pareciam ilesos.

        Um sorriso maligno curvou meus lábios quando me virei e comecei a andar na direção dos dois homens que eu ferira.

      Havia chegado a hora de quem causou a morte do meu marido.

Precisava vingar ele de alguma forma, fazer alguma coisa.

— É você quem acho que é? - Não fazia ideia de quem havia atirado no meu marido, só sabia que alguém precisava pagar.

          Meu sorriso aumentou.

         Atiro na perna de um e no braço de outro.

        Os dois rolam no chão, gemendo de dor. A dor deles ajudou a reduzir um pouco da minha fúria. Aqueles homens pagariam pelo que fizeram com Guilherme  e com os policiais que morreram naquele dia.

— Suponho que tenham vindo no helicóptero para observar a ação e entrarem no momento certo — digo, colocando a mão nas costelas doloridas. — Exceto que o momento certo não chegou.  Eles devem ter descoberto quem você era e chamaram todos os policiais que lhe deviam algum favor.

— Os homens que matamos eram policiais? — Um policial perguntou, tremendo visivelmente quando os níveis de adrenalina diminuíram. — Os que estavam nos outros também?

— A julgar pelos equipamentos, muitos eram policiais. Alguns provavelmente eram corruptos, mas outros simplesmente seguiram cegamente as ordens dos superiores.

- Nois não decidimos nada - diz um dos traficantes com a voz trêmula.

- E quem decide? - pergunto com a raiva e a dor me dominando.

- O chefe - O outro responde suando.

          Mantenho minha arma em punho, pronta para atirar, entrando num dilema em atirar ou não. Por causa deles, havia perdido uma parte de mim, não só eu, mais a minha família agora estava incompleta, destruída.

 Os tiros continuaram ao meu redor, mas não consegui a me concentrar neles. Era como se estivesse fora de órbita, como se estivesse ali apenas meu corpo e minha alma estivesse vagando em algum lugar.

Um policial se aproxima de mim e coloca a mão em meu ombro, me acordando do meu transe.

- Acabou - murmura. Pisco algumas vezes, abaixando a cabeça, me dando conta de que ele não estava falando somente da missão, já que não conseguia mais ouvir disparos, mas sobre Guilherme.

             Havia visto meu marido morrer bem diante dos meus olhos, agonizar praticamente até a porta e não havia conseguido fazer absolutamente nada para impedir que o pai dos meus filhos morressem e o deixassem órfãs.

- Eu... - digo baixo, sem conseguir formar uma frase - Eu...preciso de uma ambulância.

- Está machucada? - Ele pergunta num tom preocupado - Foi ferida?

Balanço a cabeça de imediato, sentindo minha visão embaçar graças as lágrimas.

- É pro Guilherme.      

Ele solta o ar dos pulmões.

- Ambulância não vai poder ajudar ele mais - Aquelas palavras doeram mais do que eu esperava que iria doer, trouxe mais lágrimas e uma sensação que eu não conseguia respirar.

Comecei a puxar o ar desesperadamente, fazendo um barulho estranho, isto de certo modo o assustou, pois começou a passar a mão rapidamente pelas minhas costas e usou o rádio que tinha para chamar uma ambulância, mas não para Guilherme, é claro, mas sim para mim, que deveria estar visivelmente alterada graças a tudo que havia visto.      

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