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Carolina

A maioria dos brasileiros acreditam que os policiais moram numa área nobre em mansões e com seguranças os acompanhando para toda parte que vão.

Só que sou obrigada a dizer, que não é bem assim. Pelo menos no Brasil.

O primeiro item a ser abordado, é o salário. Não é aquelas coisas e com uns descontinhos aqui e uns extras ali, até que dá para viver razoavelmente bem, entretanto, não como um milionário.

O segundo item que deveria ser visto, talvez acima do primeiro, a perigosidade que nos colocava todos os dias. Aí é a hora que alguém diz: “ Mas você não queria ser policial? Então”. É, eu queria, desde pequena, entre uns 9 ou 10 anos, ficava completamente eufórica quando via uma viatura de PM fazendo ronda, sempre transmitindo segurança. Além disso, queria poder ajudar pessoas e foi movida a este pensamento, que entrei na academia de polícia. Entretanto, o salário não corresponde a tudo que a maioria faz para manter os bandidos presos ( mesmo sabendo que o sistema soltará pouco tempo depois nas ruas) e o perigo que corremos, já que se levarmos um tiro, podemos morrer e como qualquer outra pessoa, fora da base, temos pais, filhos e até netos.

O terceiro e último item, que praticamente vai contra todo o trabalho que fazemos todos os dias, é a falta de preparação do governo em relação aos presídios. Com a super lotação, acabam por inventar as famosas “saidinhas” e nisso, muitos não voltam e até comentem mais crimes.

Já parou para pensar em quantos crimes são realizados neste meio tempo? Fora as fugas repentinas?

O trabalho além de ser contínuo, não era bem remunerado, o que causava o que você vê muitas vezes na televisão: greves.

Assim como alguns colegas de trabalho, éramos discretos, isso mais por segurança, para evitar possíveis retaliações.

Não temia pela minha vida, depois que sempre estava exposto a morte, se deixava de ter medo de morrer. Temia pela vida dos meus filhos, eles sim, temia que pessoas maldosas, numa tentativa de me ferir ou chantagear, pudesse machucá-los para conseguir isso. E eu não queria que conhecessem a maldade humminha mãe, não quando ainda eram apenas crianças e era minha obrigação protegê-los.

Descobri minha primeira gravidez, pouco depois de entrar na academia de polícia, isto de certo modo me desestabilizou, já que tinha feito planos que até no momento da descoberta da gravidez, estava seguindo a risca.

Namorava há pouco mais de um ano e meio, recente para meus pais e impróprio para ter um bebê. Mesmo assim, por descuido meu ou não, aconteceu. Não preciso dizer que Guilherme pulou de alegria, imaginando um menino brincando com ele de futebol e eu...(suspiro), só conseguia pensar o que faria da minha vida com um bebê.

A pedido da minha mãe, tive que parar a academia de polícia e me concentrar na gestação do meu bebê. Aos poucos a ideia de que colocaria um bebê indefeso no mundo dentre alguns meses, parou de me assombrar e não via a hora de conhecê-lo. Quer dizer, conhecê-la.

Era uma menina. Isabela.

O fato de ser uma menina, me deixou um pouco triste, queria que fosse um menino, por que Guilherme queria um menino. Só que diferente de mim, ele não se mostrou decepcionado e isto meio que me ajudou a aceitar que eu teria uma menina, uma menina que poderia ser igual a mim ou...

Idêntica ao pai, só que uma versão feminina dele.

Os seis meses seguintes do nascimento de Isabela, foi mágico, todo dia era um descobrimento, tanto para mim, quanto para ela. Apesar de não gostar muito quando Guilherme ia para a base, já que já estava trabalhando como PM desde que nos conhecemos e começamos a namorar.

Com seis meses de vida das Isabela, decidi que era a hora de voltar a correr atrás do meu sonho e assim eu fiz, a contra gosto da minha mãe, já que ela queria que eu fosse uma mãe convencional como ela fez e me dedicar somente a Isabela. Só que felizmente eu não era uma mãe convencional, gostava de adrenalina.

Não consegui passar no primeiro teste de aptidão física após a academia de polícia, fiquei entre os últimos e sentia que meus pulmões explodiriam a qualquer momento. Estava sedentária e com quase trinta quilos a mais. Não tinha como isso dar certo.

Foi então que comecei uma preparação física com base numa dieta quase restrita, no início foi horrível, as dores de cabeça me torturavam todos os dias, igual minhas alterações de humor. Meu corpo começou a se acostumar, os quilos aos poucos começaram a me abandonar e pouco antes da prova novamente de aptidão, já tinha perdido boa parte do peso que havia ganhado e tinha esperança que dessa vez iria conseguir.

E consegui. Não acreditei quando passei a linha de chegada.

Pensei que depois disso, só seria alegria, mas não foi. Todos os dias quando saía para trabalhar, temia não voltar, temia deixar minha filha órfã de mãe e meu marido viúvo, pedia todos os dias aos céus que não me deixasse morrer e até cogitava a ideia de ficar fora das ruas, não seria ruim, seria até parcialmente seguro, já que mesmo com a farda eu já corria o risco de levar um tiro.

No meio de tudo isso, o medo de não ver Isabela crescer, começou a me perturbar. Minha filha estava crescendo, se mostrando inteligente todos os dias com suas descobertas e eu não estava vendo, apenas minha mãe e ela fazia questão de ressaltar o quanto eu estava sendo burra em preferir meu trabalho invés da minha família.

Neste meio tempo, Guilherme me apoiava, sempre quando podia e sempre quando nos encontrávamos em casa depois de plantões longos e exaustivos. Não existia mais finais de semminha mãe em família ou viagens, para conseguirmos viajar, precisávamos ver até os últimos detalhes e adiar férias, para conseguirmos viajar juntos.

Quando finalmente achei que minha vida estava com um rumo e já acreditava ter tudo sob controle, descobri minha segunda gravidez.

Sim, dois anos depois de Isabela nascer e cerca de um ano e meio depois de estar atuando como PM.

Minha mãe surtou novamente, Guilherme pulou de alegria e eu... apenas respirei fundo e continuei vivendo minha vida, não era uma doença, era uma gravidez e poderia seguir normalmente minha vida até o nascimento daquela criança que, dessa vez, sem que ninguém fizesse planos ou esperasse, era um menino.

Um menino que nasceu comprido e com quase 4kg. Bento.

Este era o nome que Guilherme daria para Isabela, se Isabela não fosse uma menina e mesmo com a rede de apoio contínua dos meus pais, ainda senti tudo que senti na primeira vez, talvez duplicado, já que o puerpério era isso, uma montanha de emoções após o parto.

Seis meses depois de molho, me sentia parcialmente pronta para voltar ao trabalho, só que dessa vez temendo que não voltasse para não só uma criança, mais duas.

O medo não passou com o passar do tempo, pelo contrário, continuou lá e me sentia extremamente aliviada e feliz quando chegava em casa e via minha sala um verdadeiro caos com brinquedos espalhados por toda parte e com duas crianças ligadas no 220 me esperando com sorrisos banguelos.

Ali, era somente a mãe deles. Carolina.

- Ah, chegaram - diz minha mãe levantando, erguendo as sobrancelhas acima dos óculos redondos.

- Oi, mãe - digo abraçando meus dois filhos de uma vez e os beijando de uma vez.

- Mataram muito bandido hoje?

- Mãe - repreendo baixo.

- Hã. Não - diz Guilherme rapidamente, tirando completamente o foco do assunto, ao ver os filhos olhando a vó atentamente - Só um dia comum no Rio de Janeiro - Dito isto, ele vai para o quarto e mesmo sem ver, sabia que estava indo guardar as armas no cofre que havíamos comprado assim que Isabela nasceu.

- Mãe, meu dente tá mole - diz Isabela, cutucando o dente da frente.

Franzo o cenho, me agachando um pouco para olhar o dente.

- Nossa, Bela. Já?

- Sua filha tem 7 anos, achou mesmo que ela iria ficar o resto da vida com dentes de leite? - diz minha mãe irritada.

- Só tinha esquecido disso, mãe.

- Como outras coisas também. Não sei o que seria de você sem mim - Poderia contratar uma babá, só qu8e minha mãe não queria que os netos ficassem nos cuidados de uma estranha e até entendia com tanta coisa que via na televisão sobre babás e os maltratos, mas se fosse para esfregar na minha cara que era uma péssima mãe, preferia encontrar a babá perfeita aonde quer que ela estivesse.

- Mãe. Mãe. Mãe! - Bento começa a repetir sem parar, enquanto minha mãe continua jogando sua irritação em mim.

- O que essas crianças vão pensar quando crescerem? O que vão falar de você? - Ela continua - Eu tento criá-los da melhor forma possível, até melhor que criei você, só que sou a avó. Não sou a mãe deles.

- Mãe!

- Você tem que escolher quais são as prioridades da sua vida e vê se os seus filhos estão no meio.

- Mãe!

- O quê é, Bento?! - digo gritando, acabando por descontar a raiva que estava da minha mãe, no meu filho.

Um breve silêncio se instala, minha mãe me olha chocada, com a expressão ainda mais irritada e o Bento...com os olhos cheios de lágrimas.

- Viu aí? Pra quê falar desse jeito com o menino? Ele não tem culpa de nada - Ela o pega com o movimento, se afastando com ele, indo para a cozinha.

Isabela continua no mesmo lugar, me entregando um papel com um desenho.

- Ele queria mostrar isso, mãe - murmura.

Era um desenho completamente colorido e sem forma, mas era do Bento e eu amava os desenhos que eles faziam.

- Tá lindo. E o seu?

- Não fiz desenho hoje - diz calmamente - A vó só ajudou com a lição de matemática - Ela inclina a cabeça para o lado - Quer que faça um desenho pra você?

- Quero sim.

- Tá bom - Ela vai até a mesinha de centro, se preparando para começar.

Em pé no meio da sala, decido ir para meu quarto, me batendo contra Guilherme ao fazer isso.

- O que foi? - Ele pergunta baixo.

Balanço a cabeça de um lado para o outro.

- Vai lá ver o Bento.

Não gostava de ser explosiva. Nunca gostei. Queria ser um bom modelo de mãe, melhor do que minha mãe foi, que apesar dela dizer que foi uma mãe boa para mim e a minha irmã, 24 h por dia, ela estava literalmente mentindo, já que tinha momentos que o estresse acabava interferindo na nossa relação, junto com o cansaço e só agora que me tornei mãe, entendia ela.

Eu precisava conciliar meu emprego, meus filhos, meu lado esposa, lado filha e dona de casa, e ser boa em tudo isso. Só que sempre alguma coisa não ficava bom o suficiente. Ou eu não comparecia sempre aos almoços de domingo, ou não estava sempre presente na vida dos meus olhos ou até mesmo não dava a devida atenção para meu casamento.

Muitas vezes me sentia sobrecarregada e não sabia como explicar isso para minha mãe ou demonstrar para Guilherme, que acreditava veemente que eu dava conta de tudo.

Eu era humminha mãe e não uma máquina, as vezes queria ficar num quarto escuro, deitada, em silêncio, sem ter contato com ninguém, tentar me sentir eu mesma, a Carolina de antes que sabia que estava em algum lugar dentro de mim e mais do que ninguém, precisando de atenção.

Sempre estava a disposição de todo mundo, menos para mim, minhas vontades, meus desejos, não eram prioridade, para ninguém.

Depois de um banho e de vestir uma camisola, me sento na beirada da cama com o cabelo ainda úmido e o sono me aproximando.

Tinha dias que não via a hora de chegar de noite para dormir.

- O que aconteceu na sala? - Guilherme pergunta, ao entrar no quarto e parar perto da cama.

- Só minha mãe com os discursos dela - Passo as mãos pelo rosto - Acabei gritando com o Bento.

- Você tem que parar com isso. Ele é apenas uma criança - E novamente o óbvio é esfregado na minha cara.

- E eu não sei disso, Guilherme? Toda vez que a minha mãe me vê, ela tem que dizer que estou errando como mãe.

- Eu sei, Carol. Mas talvez ela tenha razão. Quem está criando as crianças é sua mãe, eles não tem uma presença de mãe em casa.

- E de pai também não - Ressalto.

- É. Eu sei. E também me sinto culpado por isso, mas temos contas pra pagar.

Suspiro.

- E se eu ficar em casa, não acha que as coisas vão se complicar?

- Vão, mas pelo menos sua mãe vai parar de pegar no seu pé.

- Vamos resolver um problema e criar outro - Conhecendo minha mãe, ela vai vir com um novo discurso, onde eu posso ter uma renda extra cuidando dos meus filhos.

A única coisa que eu sabia fazer, já estava trabalhando, fora isso, não havia nada que eu sabia fazer, pelo menos era o que eu achava e não iria adiantar nada se ela vinhesse com a sugestão de artesminha mãeto ou qualquer outra coisa, pois já sabia de antemão que não daria certo.

- Então o que vamos fazer? - Ele pergunta num tom baixo, como sempre esperando que eu tomasse uma iniciativa e decidisse o que iríamos fazer.

Só que estava cansada de decidir as coisas. Cansada de todo mundo esperar que eu soubesse o que fazer em todas as situações. Eu não sabia! E já estava de saco cheio de pensar pelos outros.

- Eu não sei, Guilherme - digo irritada.

- Não se estressa comigo não, Carol.

- Não estou estressada com você, Guilherme - Por que todo mundo achava que eu vivia estressada, só por elevar um pouco a voz.

- Tá - diz por fim num sussurro, soltando o ar dos pulmões - Tá com fome? Vou ver o que tem na cozinha.

Estava morrendo de fome, entretanto, o sono já estava me vencendo.

- Só quero dormir.

- Então tá. Coloco as crianças na cama.

Engatinho até o meio da cama, me cobrindo ao me deitar. Antes de Guilherme sair do quarto, é impedido por Isabela que entra correndo segurando um desenho.

- Fiz o desenho, mãe.

- Ah. Fez? Deixa eu ver - Pego o desenho encontrando o típico desenho de família feliz, com direito ao nosso cachorro e a gata - Faltou os peixinhos.

- Mesmo? - Ela se inclina sobre o desenho, olhando o mesmo com atenção.

- É. Faltou.

- Mas não tem mais espaço.

- Você pode desenhar aqui - Aponto para um espaço em branco acima da cabeça das pessoas desenhadas ali.

Ela me olha intrigada.

- Não vai ficar estranho eles no céu?

- Claro que não. O desenho é seu e você pode desenhar do jeito que você quiser e pintar como quiser.

Ela pega o papel da minha mão, dando um outra olhada no papel, antes de sorrir para mim.

- Vou desenhar os peixes então - Com isso, ela sai do quarto, desligando a luz. Ao longe podia ouvir a televisão e Guilherme conversando com as crianças, como sempre fazia quando estava em casa.

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