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Gabriel

Quem me conhece sabe o que vivi e o que passei. O tanto que ralei para chegar aqui.

Lembro de vários veneno. Eu, ainda menor, nunca sonhei pequeno. A minha coroa me criou sozinho, levantando cedo no raiar do dia, bem cedo.

Sempre aprendi com ela, a ser grato pelo o que vem.

Hoje só veem os close, nunca viu meus corre. Não sabe o que precisei passar para chegar onde estou.

Meus corre começou quando um dia meu chinelo quebrou, meu pai já não estava em casa, havia deixado minha mãe para ficar com uma mulher estudada, deixando para trás não apenas ela, mais três filhos, um morto pouco depois de ter nascido.

Com a “separação”, minha mãe teve que trabalhar em dobro, dia e noite, e o dinheiro que arrumava trabalhando em casas de família, era apenas para nossa alimentação, que mesmo assim, não era uma das melhores, chegava dia que o café era facilmente substituído por chá e tinha dia que ela deixava de comer de noite, para que tivéssemos o que comer no outro dia.

O dia em que meu chinelo quebrou e que cheguei na minha coroa e ela não tinha como me dar outro, com oito anos vi que era minha obrigação era conseguir esse chinelo, ralar para conseguir ele. E foi o que comecei a fazer.

Uma criança de oito anos, não poderia trabalhar como um adulto, mas eu tentava. Fazia favores, ajudava senhorinhas e tudo que mandavam eu fazer eu ia, muitas vezes até em troca de um prato de comida.

Foi neste tempo de “favores” que o tráfico entrou na minha vida. Como tinha dinheiro envolvido, acabei sendo atraído. Muitas vezes os caras da quebrada, me via, um menino magro para a idade, roupas surradas e apenas com uma mãe que fazia de tudo por mim, me davam comida, dinheiro, mas depois precisava retribuir o favor. “Agradecer” pelo o que estavam fazendo por mim.

O tempo começou a passar, o dinheiro que me davam, já não era o suficiente para mim e a vida dos moleques na quebrada que trabalhavam com o tráfico, me chamava cada vez mais a atenção.

Queria ter as coisas que eles tinham. As roupas, as moto irada e ser respeitado. Acima de tudo, queria ter dinheiro e mostrar para o homem que dizia ser meu pai, que havia sobrevivido, aos trancos e barrancos.

O primeiro passo já tinha dado, já estava na mesma caminhada com eles, mostrava que era interessado. Só precisava que me dessem uma chance.

E eu estaria pronto quando isso acontecesse.

Sempre na hora da minha mãe chegar, sempre pouco depois das 6 horas da tarde, arrumava a casa. Já havia virado uma espécie de rotina, apesar dos meus outros dois irmãos, fruto do primeiro relacionamento da minha mãe, mais velhos do que eu e os três demais, morarem com a minha avó, apenas eu e o mais novo morava com ela. O mais velho, havia deixado de morar conosco pouco depois que nosso pai saiu de casa e começou a morar com um irmão do nosso pai.

Minha mãe tentou estar presente e trabalhar praticamente 24 horas por dia, mas não foi o suficiente para ele e isso acabou sendo um dos motivos para ele ir embora e culpá-la por tudo de ruim que acontecia na vida dele.

Havia aprendido na marra como cozinhar, limpar a casa e lavar roupa. A primeira vez que fui cozinhar um feijão para a janta, quase o queimei, da segunda já ficou duro, mas na terceira depois de ouvir algumas dicas de vizinhas, consegui algo comestível.

Me senti orgulhoso de mim mesmo, principalmente quando a minha mãe elogiou minha comida, isso só me motivou mais e me fez querer aprender mais, até chegar no ponto que cozinhava melhor do que muita mulher, dominando praticamente o fogão.

Meus dois outros irmãos, também sabiam cozinhar, acreditava que até melhor do que eu, o cheiro da comida deles chegava longe e minha mãe também gostava. Acho que sendo mãe e se fosse oferecido por nós sopa de pedra, ela ainda comeria e diria que estava uma maravilha.

Era um dos poderes que ela tinha, nos manter otimistas, mesmo quando o mundo deixava mais do que claro, que ia de mal a pior.

Sempre no mesmo horário, ouvia a voz dela ao longe, cumprimentando alguns conhecidos, trocando breves conversas com outros, mas nunca demorava para passar pela porta com um suspiro e tirar do ombro a bolsa simples de lona e deixar no canto do sofá.

Apesar da idade e do maltrato do tempo, minha mãe era uma mulher bonita, já beirava os 56 anos de idade. Alta, negra e abaixo do peso. Não era sempre que ela tinha “fome”, era sempre o que dizia e só comia realmente quando a comida era feita por um de nós, parecia que não via comida há dias e até repetia.

Eu daria minha vida pela minha coroa Marilene e mesmo não tendo tatuado o nome dela como meus dois irmãos, o amor que sentia por ela demonstrava no dia a dia.

- Mataram mais um, não foi? - Ela pergunta, quando me encontra no meio da sala estreita.

- Sei não - Ah, eu sabia sim. Aconteceu antes mesmo do dia nascer, quando os primeiros moradores começaram a sair de suas casas, viram um corpo estirado numa esquina, cujo sangue descia pela rua, deixando o local marcado por um bom tempo.

Mesmo de bruços e sem camiseta, deu para reconhecer. Era o Flavinho, morava algumas ruas acima de onde morava, o conhecia de vista, mas sabia que ele era usuário e trabalhava para o comando.

Não precisou de um perito para sabermos que havia sido morto na traição. O tiro havia sido na cabeça, por trás.

Era assim que a maioria fazia. Na grande maioria das vezes, os que seguravam o ferro, haviam sido amigos de infância, crescido juntos e para não serem o da vez, tinham que fazer o trabalho.

Isso me fazia acreditar que para não aumentar ainda mais o remorso, atiravam por trás. Faziam movidos a mistura de droga e álcool, mas nunca a sangue frio.

- O corpo tá lá ainda - Ela continua, indo para a cozinha - A mãe dele tá lá, do lado do corpo, já não tem nem mais lágrima pra chorar - Ela toma um pouco de água pensativa - Não sei não o que iria fazer se fosse eu.

- Deixa isso pra lá, mãe - digo baixo.

- Não tem como deixar isso pra lá não, Biel - diz elevando o tom de voz sério - Quando uma mãe perde um filho, todas sofrem.

- O cara já foi - Volto para a sala, coçando a cabeça, não querendo imaginar a cena que ela acabara de dizer.

- Sabe por que diz isso? - diz ela, vindo até mim - Por que não tem filho e peço à Deus que nunca passe por isso.

Pego minha camiseta no braço do sofá, a vestindo antes de sair pela porta.

- E aonde que tu vai? - Ela pergunta, antes de eu sair.

- Dar uma volta.

- Dar uma volta uma hora dessas, GABRIEL?! - diz elevando a voz quando chega no meu nome.

- Só é uma volta, mãe. Daqui a pouco tô aí - digo com a voz mansa, saindo de fininho.

Ela me segue com uma das mãos na cintura e a expressão irritada.

- Você viu o que aconteceu com o menino e mesmo assim vai sair - Continua dizendo enquanto saio de casa.

- Não vai acontecer nada não, mãe - Saio pelo pequeno portão de ferro enferrujado.

Conhecia aquela comunidade como a palma da minha mãe. Havia crescido ali, né? Naquelas ruas. Conhecia todo mundo, mesmo a comunidade sendo grande o suficiente.

Apesar de ser um lugar considerado perigoso, e eu sabia que era, Manginhos numa parte do tempo, era um lugar comum, com pessoas trabalhadoras e crianças brincando por toda parte.

É claro que uma vez ou outra, ou quase sempre, tinha os tiroteios e para ser sincero, os tiroteios recorrentes eram com a polícia. A dominação do tráfico cada vez mais na favela, chamava atenção das autoridades e é claro que isso os obrigava a fazer uma intervenção e essa intervenção na maioria das vezes, não acabava bem.

Além de policiais serem mortos, baleados, traficantes também eram, vítimas do sistema em que vivíamos, onde o negro e favelado, não tinha vez, não tinha voz. O pior de tudo, quem mais sofria neste meio, eram os civis, pessoas como minha mãe, que só matavam um leão por dia para sobreviver.

Mas acreditava, assim como outros moradores, que não havia sido a polícia que havia passado fogo no Flavinho.

Não tinham acesso livre a comunidade e a única viatura que fazia “ronda”, era paga por propina e só se metiam com casos que não tinham haver com o tráfico. Os problemas do tráfico, eram resolvido pela lei do tráfico e nem a polícia podia mudar isso.

A primeira vez que vi alguém ser julgado pelo tribunal do crime, marcou minha vida para sempre.

As punições era de acordo com o a gravidade da situação. Havia punições “brandas”, que podia ir de uma surra de ripa molhada, pois assim não quebrava, até o famoso micro-ondas.

Quando era pequeno e senti o cheiro em questão, minha mãe usou uma frase que me acompanha até hoje: “Cheiro de carne humminha mãe sendo queimada é diferente de qualquer outra.”

Em outras palavras, era um cheiro característico e que se impregnava em sua roupa e principalmente em seu nariz. E mesmo que quisesse se livrar daquele cheiro, o cheiro ainda ficava marcado em sua mente e o acompanhava por um bom tempo.

Este foi o único motivo que me fez deixar de comer carne por uma semminha mãe e meia.

O sortudo daquela vez, havia caído na besteira de roubar justamente o comando. O olho havia sido maior do que a barriga e só entendi o que minha mãe queria dizer com “não tenha o olho maior que a barriga”, quando me vi nessa situação.

Nesse dia em questão, havia ido levar uma s marmitex que os cara havia pedido e justamente na hora que cheguei com o rango, o cara estava lá, sangrando por toda parte, machucado, de joelhos e com uma expressão que dizia claramente que aquilo não acabaria bem.

- Qual foi do cara? - perguntei baixo, para um moleque que estava por perto.

- Vai pro micro-ondas - Olho novamente para o homem ajoelhado não muito longe de mim. Quando faço menção de cair fora, ele volta a falar - Fica aí.

Eu devia ter ido embora? Deveria. Só que a curiosidade falou mais alto e a curiosidade ainda vai ser o fim do ser humano.

O sujeito apanhou mais, implorou pela vida e chorou. Ficou num estado lamentável e até pediu que atirassem somente na perna dele, que ele já havia aprendido a lição e que nunca mais voltaria a fazer.

O problema é a confiança. Não era sempre que via eles dando segunda chance para vacilão, eles não davam. Não podiam transparecer que eram brandos, assim outros fariam a mesma coisa e acabaria saindo do controle.

E eles não queriam que saísse do controle.

Pneus foram colocados em cima dele, empilhados um em cima do outro, até que seu corpo sumisse dentro dos pneus. Por último, sem aviso prévio, atearam fogo na gasolina jogada no chão e nos pneus e, não demorou para uma grande fogueira humminha mãe se formasse bem diante dos meus olhos.

Não foi somente o fogo que me hipnotizou, mas os gritos. Os gritos dele eram de pura dor e desespero, duraram cerca de dez minutos, minha alma parecia que iria ser arrancada do meu corpo, junto com meu coração e jurava que já estava começando a sentir tudo que aquele infeliz estava sentido.

Quando os gritos começaram a cessar lentamente, só sobrou o silêncio e a conversa dentro da normalidade entre os caras ali. Conversavam sobre o placar do jogo, a quantidade de drogas vendidas e o nóia da rua de baixo que sempre comprava mais do que conseguia usar e que sabiam que logo morreria vítima de uma overdose.

Matar pessoas, ali, já havia se tornado normal. Matar pessoas, para eles, já era normal e cotidiano, e não sabia se me sentia assustado ou com medo.

Então de fato, Flavinho não era o primeiro corpo que estava vendo. Depois do episódio do micro-ondas, já tinha visto outros.

Os outros foram piores? Foram.

Traumáticos? Com certeza.

Mas só me serviu de lição para não fazer a mesma coisa.

Antes mesmo que chegasse na rua específica, podia ouvir os gritos roucos da mãe de Flavinho. Ela questionava o corpo do filho, perguntando o por quê que ele não a ouviu e dizendo que aquele não era o caminho que ela escolheu para ele.

Havia somente quatro pessoas por perto e uma delas, a filha caçula, tentava levá-la para casa. Até aquele momento, o rabecão ainda não havia aparecido e com certeza não iria mais naquele dia.

De cabeça baixa passo por eles, andando o mais rápido que posso, sem querer absorver aquela dor para mim.

Era possível? Não era.

Três ruas abaixo, lá tinha o Sherek. Não preciso nem dizer o por quê que ele era chamado assim, né?

Encostado em um poste, ele fumava um baseado tranquilamente, vendo o movimento baixo da rua.

- E aí - diz quando me aproximo.

- E aí - Respondo, olhando sem querer para o final da rua, onde sabia que a mãe de Flavinho ainda deveria estar -Sabe o que aconteceu com o Flavinho?

- Quem fala demais dá bom dia pra cavalo - diz sem me olhar - O cara tava se achando demais, falando o que não devia. Os cara decidiram que era melhor mandar ele sentar no colo do capeta.

Outra coisa que aprendi foi que se você quiser sobreviver, tem que ficar de bico calado. Não importa o que você veja ou que escute. Tem certas situações em que precisamos nos fazer de surdos e mudos.

- E você - Olho para ele no mesmo instante, me assustado - Tá suave?

- Eu? - Repito, dando de ombros - Tô sim.

Ele assenti devagar, fumando mais um pouco.

Por mais alguns minutos permaneço ali, fingindo ver algo que nem eu sabia o quê, até que com um toque de mão, me despeço e decido voltar para minha casa, não querendo abusar da sorte e muito menos ser confundido com outra pessoa.

         Isso acontecia com frequência, sabe? Muitas vezes meu irmão mais novo era confundido comigo e olha que nem nos parecíamos. Tinha a impressão que ele era mais baixo, além de mais magro e ter fisionomias completamente diferentes, mas só o fato de sermos negros e termos um jeito próprio, já era o suficiente.

         Na volta para casa percebo que o rabecão havia dado as caras e sem jeito algum, tato, ou seja lá qual for a palavra que queira usar, eles pegaram o corpo do moleque e colocaram dentro de uma espécie de caixa de plástico. As lágrimas da mãe dele voltaram, com certeza com a ideia de que levariam seu filho e que dali só o veria pela última vez ao ser velado.

         Passei o mais rápido novamente por eles, pedindo mentalmente à Deus, que não permitisse que minha mãe passasse por tal situação.

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