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CAPÍTULO 2

Capítulo 2

CLOE SMITH

-Ótimo, agora vá.

Ouço vovó Marie dizer ao longe, provavelmente sentada na sala de estar onde está escutando o programa matinal no rádio que está sobre a mesinha de centro do lugar, uma vez que nós não temos televisão em casa, pois segundo ela, tal objeto é uma caixa eletrônica maldita usada pelo diabo para destruir a vida de milhões de pessoas, consumir o cérebro e a alma delas diariamente. Então esse objeto perverso está totalmente proibido de entrar em nossa casa, e ai de mim se um dia lhe pedir por isso, igual fiz uma vez, há muitos anos atrás quando tinha uns oito ou nove anos de idade.

Esse foi um dos piores erros que já tive a burrice de cometer na minha vida... o dia em que eu tinha voltado da escola, e influenciada pela conversa que tinha tido com uma das minhas amigas de classe, eu fui pedir a vovó que comprasse uma televisão para nós porque todo mundo tinha uma em casa. E o pior... eu ainda insisti e bati o pé no chão que queria porque queria uma TV também, logo após ela apenas me responder a primeira vez com um "NÃO" seco e irredutível.

Bem, o resultado já era mais do que esperado vindo de um adulto com a personalidade e caráter de uma mulher como Marie Smith. Eu ainda me recordo muito bem de cada estalo do cinto contra minha pele, marcando as várias partes do meu corpo de um vermelho vivo, enquanto ela corrigia o meu ato de rebeldia e me ensinava os dez motivos para que eu não voltasse a desejar a ter o objeto adorado do demônio. Foi uma longa surra, em que eu não podia gritar ou correr para me esconder em nenhum lugar, e que me deixou com o corpo ardido por três dias seguidos.

A partir desse dia eu perdi totalmente o interesse em ter aquilo dentro de casa e para acrescentar ainda mais a experiência traumática, fui estritamente proibida de voltar a conversar com a minha amiga de classe, que tinha sido usada pelo diabo para me corromper dos bons caminhos e me levar diretamente para o caminho da rebeldia. Então eu perdi a única amiga que possuía na escola e em qualquer outro lugar. Eu fui isolada e sofri zombaria dos outros alunos que me achavam uma completa esquisita que só sabia rezar. Fui taxada como chata e idiota, ninguém mais queria falar comigo depois do escândalo que vovó fez na minha escola com a mãe da menina, por causa do que aconteceu entre nós. Eu fiquei morrendo de vergonha por dias, semanas e meses, até o assunto ser esquecido pelas pessoas e trocado por outro mais interessante com o passar do tempo.

Balanço a cabeça de um lado para o outro para afastar as lembranças ruins da infância no passado, enquanto subo as escadas rumo ao segundo andar da casa, onde fica o meu quarto, no final do corredor, o único cômodo que há por aqui, pois o quarto da vovó fica no andar debaixo, devido ao seu problema de locomoção que a deixou em uma cadeira de rodas há quase dez anos, e também por causa do fator que ela enxerga bem pouquíssimo nessa idade.

Então eu abro a porta e a fecho as minhas costas assim que entro em meu quarto, porém sentindo-me ligeiramente desanimada por ter que realizar aquilo mais uma vez, mesmo sem muita vontade, como faço todo santo dia da mesma forma: por uma hora seguida sem parar. Como de costume, eu realizo a mesma preparação de costume. Abro as cortinas para permitir a entrada da luz solar que vem de fora, estico o tapete no chão com cuidado e me ajoelho sobre ele, de frente para a janela pronta para rezar, tendo como somente a vista do céu azul que ilumina o início do dia, como em todas as manhãs.

O tempo começa a correr lentamente enquanto inicio a atividade. O ponteiro no relógio parece que não se move nenhum um pouco enquanto digo as mesmas palavras já a alguns minutos seguidos. Contudo, de repente um movimento estranho acontecendo a poucos metros abaixo na rua desperta a minha atenção por um instante. O que está havendo? É o que me pergunto internamente, ao mesmo tempo em que observo o grande e lindo casarão de dois andares que há de frente para a minha casa, do outro lado da rua, e que estava vazio há vários anos com uma placa de vende-se pendurada nele, sendo pela primeira vez em muito tempo aberto por alguém.

É um homem, eu percebo ao observar a fisionomia da pessoa estranha, bastante diferente das demais pessoas que comumente moram em meu bairro. Será que ele é o novo morador do casarão? Que intrigante... eu penso comigo mesma, cativada pelo movimento que me rouba a atenção imediatamente. Eu me desconcentro, perco um pouco do raciocínio enquanto meus lábios apenas se mexem de forma aleatória com o que deveria ser uma reza fielmente decorada. Contudo, para dizer a verdade eu já nem sei mais se estou falando as palavras corretas nesse exato instante.

A curiosidade do que está acontecendo na propriedade vizinha é bem maior e está me deixando bastante avoada. Noto que a antiga placa "vende-se" anteriormente pendurada no portão já foi retirada, ou seja, isso significa que ela realmente foi comprada pelo novo morador. O homem é um cara bastante alto de onde consigo vê-lo na posição em que estou ajoelhada. Possui costas largas e nesse momento está usando roupas aparentemente bonitas e caras para uma pessoa comum como os meus vizinhos ao redor. Ele tem a chave do imóvel nas mãos quando um pequeno caminhão de mudanças estaciona em frente ao casarão que lhe pertence agora.

Enquanto continuo a rotina de rezar por uma hora seguida, até completar o tempo certo e sem me interromper, percebo que já não estou mais dizendo coisa com coisa, ao mesmo tempo em que meus olhos seguem fixos e atentos a cada movimento que acontece na calçada lá embaixo, do lado oposto da rua, na casa do meu mais novo vizinho.

Fico vendo quando várias caixas e objetos começam a ser descarregados do caminhão e levados para o interior do imóvel pela dupla de entregadores que veio no transporte de mudanças. Oh sim, então ele é realmente o novo morador que finalmente comprou o casarão da frente. Esse é o meu mais novo vizinho. Mas que interessante, essa é a primeira novidade que surgiu essa semana. É o que pondero distraidamente, mas logo volto a prestar a atenção em tudo o que acontece lá na calçada.

Eu balbucio algumas palavras que ainda lembro da reza, porém o resto já esqueci por completo. Leva um bom tempo até que a mudança do homem finalmente chegue ao fim, após a entrega de dezenas de caixas, diversos móveis e eletrodomésticos, que não eram muitos ou exagerados, no final das contas, mas apenas o suficiente para um homem viver confortavelmente sem grandes dificuldades.

Então, quase como se tivesse sido combinado por uma obra ao acaso do destino, o meu tempo de devoção a reza também chega ao fim no mesmo momento, ao mesmo tempo em que o processo de mudança dele. É como se nossos relógios estivessem sincronizados com nossas ações, mas não estão. Não acredito nessa coisa de destino. As coisas simplesmente acontecem como devem acontecer sem nenhum motivo ou razão que se possa explicar.

Ao término de tudo, a dupla da transportadora embarca no mesmo caminhão que veio e vai embora sem mais demora ou conversa. O homem caminha tranquilamente pela entrada de sua nova propriedade, abre a porta da casa, mas antes de entrar no imóvel, ele para por um segundo no lugar e se gira o corpo para trás de repente.

No mesmo instante, impassível e com uma calma friamente calculada, o homem ergue as vistas e me pega olhando atentamente para ele. Dois pares de olhos se chocam um contra o outro como uma impactante colisão de carro: os meus olhos cor de mel que se arregalam um pouco, assustados, quando os dele de um verde escuro encontram os meus. Fico inerte, sem nenhuma reação coerente, porém não consigo me desviar de seu olhar que permanece em mim. O homem me encara com seriedade durante alguns segundos, logo em seguida ele simplesmente vira as costas outra vez e entra na casa. Ele fecha a porta e some de vista, me deixando extremamente intrigada e curiosa acerca dele: o meu novo vizinho misterioso.

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