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Capítulo 3

Capítulo 3

O vento assobiava lá fora enquanto Samy se encolhia na cama, encarando o teto manchado de infiltrações. A escuridão envolvia o quarto como um cobertor sufocante, mas Samy já estava acostumada com ela. O silêncio da casa durante a madrugada era uma companhia constante, uma quietude que apenas aumentava o peso da solidão. Seus pensamentos, no entanto, não a deixavam descansar. Eles sempre voltavam para o mesmo lugar, para a mesma dor que a seguia desde criança, a partida de sua mãe.

Samy tinha apenas dez anos quando sua mãe os deixou. Na época, ela não entendeu completamente o que estava acontecendo, mas se lembrava vividamente da última noite que passara com ela. Aquela noite se repetia em sua mente, como um filme antigo que não conseguia desligar, trazendo à tona as emoções cruas que tentava enterrar há anos.

Ela se lembrou de estar sentada na sala, com seus pés balançando de um lado para o outro enquanto via a mãe arrumar uma mala. Ruan não estava em casa; provavelmente já estava no bar naquela época. A pequena Samy observava, sem compreender o que aquelas ações realmente significavam. Sua mãe, Clara, era uma mulher bonita, de cabelos longos e castanhos, e com uma doçura no olhar que, para Samy, era sinônimo de segurança. Aquela era a mulher que a abraçava quando tinha pesadelos, que penteava seu cabelo antes de ir para a escola, e que, mesmo em meio às brigas constantes com Ruan, parecia ser a única pessoa em sua vida que se importava com ela.

Mas, naquela noite, havia algo diferente no olhar de Clara. Seus olhos estavam cheios de uma tristeza profunda, um cansaço que Samy não sabia explicar. A mãe murmurava coisas que Samy não entendia na época, sobre liberdade, sobre recomeços, sobre o peso de uma vida que ela não conseguia mais carregar.

-Eu volto logo, Samy-, disse Clara, ao acariciar o rosto da filha pela última vez.

Essas palavras ecoaram na cabeça de Samy por muito tempo depois que a porta se fechou, e Clara desapareceu na noite. Ela se agarrou àquela promessa, acreditando que a mãe realmente voltaria. No entanto, os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses. Eventualmente, a pequena Samy entendeu que sua mãe não voltaria mais.

A lembrança daquela noite a assombrava, uma cicatriz emocional que nunca cicatrizou. Durante anos, Samy tentou racionalizar o abandono. Ela se perguntava o que havia de errado com sua família, com ela mesma, para que Clara preferisse deixar tudo para trás. À medida que o tempo passava, a ausência da mãe se tornou uma ferida invisível, mas sempre presente. Samy cresceu com um vazio, uma sensação de que havia algo de fundamentalmente errado com ela, como se não fosse digna de amor, nem da mãe, nem de ninguém.

E então, havia Ruan. O homem que já era distante e frio antes da partida de Clara se afundou completamente no álcool depois que ela os deixou. O que antes eram explosões de raiva esporádicas, transformou-se em uma constante amargura. Ele culpava a vida, o trabalho, e até mesmo Samy pela partida da esposa. Cada vez que ele se embriagava, sua ira se voltava para a filha, como se ela fosse o lembrete vivo da mulher que o havia abandonado.

Samy aprendeu a se tornar invisível na própria casa. Ela evitava qualquer confronto com o pai, fazia de tudo para que Ruan não a notasse, pois sabia que a atenção dele nunca significava algo bom. Ele nunca a agrediu fisicamente, mas suas palavras eram lâminas afiadas. Ele a culpava por tudo que dava errado. Quando as contas estavam atrasadas, quando o bar não ia bem, quando ele se sentia mal por beber demais, de alguma forma, tudo parecia ser culpa de Samy.

Ela suportava o peso dessa responsabilidade silenciosamente, sem reclamar, sem chorar. As lágrimas não faziam mais parte de sua vida. Aprendera cedo que chorar não mudava nada, que fraqueza apenas o incentivava a ser mais cruel. Ela se fechou, construiu muros ao redor de si, escondendo a menina machucada por trás de uma fachada de rebeldia e indiferença. Se sua mãe havia a abandonado, e seu pai a culpava por tudo, o que mais ela poderia fazer além de se proteger do mundo?

Na escola, Samy também não se abria com ninguém. Suas notas eram medianas, e ela mal interagia com os colegas. Todos sabiam que ela vinha de uma família complicada, e, embora não falassem diretamente, os sussurros nos corredores eram constantes. Aquela é a filha do bêbado do Alçapão, todos diziam. Samy fingia não ouvir, mas a verdade é que ela ouvia tudo. O estigma de ser filha de Ruan Williams, o homem mais conhecido por suas bebedeiras do que por qualquer outra coisa, a seguia onde quer que fosse.

Às vezes, sozinha no quarto, ela se perguntava como teria sido sua vida se Clara tivesse ficado. Teria sido diferente? Ruan seria um homem melhor? Ela seria uma pessoa diferente? Essas perguntas a atormentavam, mas as respostas nunca vinham. A realidade era que sua mãe escolheu ir embora, e sua vida virou um caos desde então.

Quando Samy finalmente parou de esperar o retorno de Clara, algo dentro dela mudou para sempre. O otimismo e a esperança que ela carregava como criança desapareceram. Ela passou a viver um dia de cada vez, sem expectativas de que as coisas melhorariam. O sonho de sair de Bullut ainda persistia, mas cada vez mais distante, como uma luz fraca no fim de um túnel sem fim.

Agora, aos 18 anos, Samy sabia que ninguém viria salvá-la. Se quisesse escapar de Bullut e de seu pai, teria que fazer isso sozinha. Mas essa era a parte mais difícil. Por mais que odiasse a vida que levava, por mais que desprezasse a figura de Ruan e tudo que ele representava, Samy ainda se sentia presa. Parte dela temia que, se fosse embora, estaria repetindo a história de sua mãe. E a última coisa que Samy queria era se tornar mais uma sombra na vida de alguém.

Mas, ao mesmo tempo, ela sabia que não poderia continuar assim para sempre. E, enquanto olhava para a janela do quarto, com a lua brilhando fracamente lá fora, Samy prometeu a si mesma que encontraria uma maneira de escapar, antes que as sombras de Bullut a consumissem completamente. Não poderia continuar suportando aquilo, pois as cicatrizes deixadas pela partida de sua mãe e pelo comportamento abusivo de Ruan moldaram Samy em quem ela era, uma jovem forte, mas profundamente marcada pela dor e pelo abandono. O vazio que Clara deixou nunca foi preenchido, e a escuridão que seu pai trouxe para sua vida tornou-se uma companheira constante.

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