Um recomeço
A primeira coisa que fiz naquela manhã foi me inscrever no curso para comissário de bordo. Uma tarefa fácil, graças a quantia guardada do meu emprego nos últimos dois verões como garçonete em uma lanchonete.
Mesmo determinada com o quê queria fazer, hesitei diante do notebook em finalizar a inscrição. Um misto de medo e apreensão tomou conta de mim, levantando diversos questionamentos internos.
Mas só precisei lembrar da maquete no quarto de Camille, que minha mente clareou e o sol voltou a brilhar.
Tamanha foi a ansiedade que naquela mesma noite que não consegui dormir. Vi as horas passarem, enquanto me mexia em busca do sono, até que um determinado momento desisti.
O sono veio depois das duas da manhã, pouco tempo depois ouço o celular tocar ao longe, parar por um breve momento e insistir novamente.
Lutando contra o sono, semicerro as pálpebras estendendo a mão até o móvel, precisando estreitar o olhar para entender os números na tela de bloqueio.
Arregalando os olhos, tiro rapidamente a coberta de cima de mim e pulo da cama, indo para o banheiro.
Estava a quase uma hora atrasada.
Ainda com o corpo molhado por causa do banho, luto para vestir a calça jeans, vestindo por último um suéter creme.
Uso os dedos como pente, enquanto saio do quarto, procurando com os olhos algum vestígio de Camille ou Conrad, mas pelo horário, não era para ter mesmo ninguém em casa. Incluindo eu.
Ando dois quarteirões até encontrar um táxi, acabando com o mesmo parando pouco depois num congestionamento, faltando poucos quarteirões para o local do curso.
- Vou ficar aqui mesmo - Anuncio, dando o dinheiro da corrida.
Na calçada, acelero meus passos, alternando em leves corridas.
Faltando poucos passos para a porta de vidro, estendo a mão para abri-la, acabando por trombar em outro corpo.
Uma mulher de estatura mediana, cabelo castanho rente ao queixo e usando óculos, sorri com os lábios rosados.
- Atrasada também? - pergunta, ajeitando a ecobang branca no ombro.
- Parece que somos duas - Ela abre a porta, usando a outra mão para indicar para eu entrar.
- Obrigada - Agradeço ao entrar, esperando-a fazer o mesmo. Atravessamos o saguão em direção das escadas, parando no pé da escada - Você lembra o andar?
- 6° andar - diz ela olhando para o espiral de degraus. Soltando o ar dos pulmões, olha para mim - Com certeza isso faz parte do curso.
- Sabe que agora também estou com essa impressão? - Dito isto, começamos a subir os degraus o mais rápido que conseguimos, tendo que parar a cada dez degraus para recuperar o fôlego.
- Com certeza é aqui - diz ela, quando chegamos no 6° andar, ignorando completamente a fadiga ao andar em direção da última sala do corredor, de onde vinha uma voz feminina autoritária.
Parada em frente a porta, dá duas batidas, insistindo quando a porta não se abre de imediato.
A porta abre de repente e uma mulher com o cabelo num coque perfeito e físico magro aparece. Seus olhos escuros, estão sérios, assim como sua fisionomia.
- Quem são vocês?
- Beca.
Ela olha em seguida para mim.
- Robbie.
- Estão atrasadas. E muito. Isto é indispensável para a profissão que acham que estão prontas e querem se profissionalizar.
Engulo em seco, sentindo minhas bochechas arderem.
- Vamos poder entrar? - Beca pergunta.
- Infelismente para o primeiro dia, vou ter que relevar. Mas que isso não se repita, nem aqui e nem em outro lugar.
- Não irá - Garanto, atraindo sua atenção.
Ela dá um passo para o lado, permitindo nossa entrada. A sala quadrada e com mais de trinta cadeiras, estava quase lotada, tanto de homens, como mulheres.
Ignorando o máximo que podia os olhares, ando até a carteira mais próxima, fingindo naturalidade. Nunca fui fã em ser destaque, gostava do anonimato.
Conhecimento gerais de aeronaves, leio mentalmente, quando a professora volta para a sequência de slides, continuando com a explicação.
Durante as próximas quatro horas, fiquei completamente submersa em anotações, detalhando o máximo que conseguia sobre a aula.
A primeira semana praticamente me destruiu, ás aulas começavam cedo e terminavam tarde, não tinha um dia em que eu e Beca não nos encontrasse ao chegar no prédio e todo dia prometíamos que era a última vez que nos atrasaríamos.
Na segunda semana, já tinha dominado os horários, assim como Beca e não víamos a hora em deixar a parte teórica do curso e entrar na ação. Até aquele momento, já havíamos aprendido sobre postura e etiqueta, segurança de voo e serviço de bordo.
Mesmo cansada, substituía algumas horas de sono estudando, absorvendo o máximo de informação possível.
Batidas ecoam pelo quarto, um bom tempo após o jantar. Sentada no meio da cama, desvio a atenção do caderno em meu colo, para a porta que se abria.
- Vim na cozinha fazer um chá e vi que a luz do quarto ainda estava acesa - diz Camille, segurando duas canecas - Trouxe chá.
- Obrigada - Pegando a caneca, tomo um gole do líquido quente, o sentindo escorregar pela minha garganta.
Os olhos de Camille vagam pelas folhas do caderno, enquanto as folheia.
- Quando vai contar? - Ela ergue o olhar para mim - Não vai ser o fim do mundo, mas com certeza vai pegar elas de surpresa - Sem pensar muito, pego meu celular ao lado e desbloqueio a tela - Vai fazer o quê?
- Se for pra contar, que seja logo então.
A primeira a atender é Leah, deitada em uma cama e com um abajur ao lado, estreita os olhos e franze o cenho ao me ver.
- Robbie.
- Atrapalho?
- Estava só...lendo um livro - diz pegando o livro sobre o peito - Aí não é seu quarto. Onde você está?
- Na casa da Camille - Camille senta ao meu lado, acenando para a tela.
- Oi, mãe.
Leah sorri sem mostrar os dentes. De repente ao lado, aparece outra tela, aonde estava Maggie vestida em um kimono longo florido.
Se inclinando para frente, olha com atenção a tela do celular.
- Leah?
- Oi, Maggie.
Maggie balança suavemente a cabeça de um lado para o outro.
- Por que a ligação em grupo, Robbie e Camille?
- Rob tem uma coisa pra contar - diz Camille, abraçando meus ombros.
- Estou ouvindo - diz Leah.
- Seja o quê for, girassol, estou do seu lado.
Respirando fundo, empurro as palavras de uma vez para fora da boca.
- Não vou mais fazer saltos ornamentais.
Silêncio. Absoluto.
Cinco segundos. Dez. Trinta.
Leah move os lábios franzidos de um lado para o outro, até quebrar o silêncio.
- Espero que tenha um bom motivo.
- E tenho - digo sem pensar - Nunca foi o quê quis fazer.
- Robbie, não acha meio tarde pra dizer isso? Está 15 anos atrasada.
- Por isso que não quero mais fazer.
- E decidiu jogar anos de trabalho fora do dia para a noite?
Franzo levemente o cenho, lembrando que foi quase exatamente isso.
- Já me decidi.
- Mudanças são sempre necessárias e importante para a nossa evolução espiritual - diz Maggie - Estou feliz que tenha dado este passo, Robbie.
- Você não sabe no que ela trocou os saltos ornamentais.
- Estou no curso de aeromoça. Na metade dele, na verdade.
- Respondido seu comentário, Leah? - Maggie alfineta.
- Não venha dar de boa mãe agora, Maggie.
- Gente - diz Camille pacientemente - Vão mesmo começar a discutir?
- Ultimamente não tem como não discutir com a Maggie - diz Leah, levantando da cama.
Desvio minha atenção para Maggie, que olhava acima do celular, parecendo conversar com outra pessoa, sem emitir qualquer som.
- Quem está aí, mãe? - pergunto. Ela me olha, colocando rapidamente um sorriso no rosto.
- Ninguém, girassol. Só estava olhando o noticiário.
Tentando passar despercebido ou não, atrás dela, Johannes passa. Camille e eu nos entreolhamos, antes de voltar a olhar para a tela do celular.
- É o Johannes que passou? - Camille questiona.
Maggie abre e fecha a boca, levando por fim a mão até a cabeça, antes de dar de ombros.
- Pra mim, já deu - diz Leah séria, antes de encerrar a ligação.
Com as mãos apoiadas no balcão, Maggie solta o ar dos pulmões com a cabeça baixa.
- Leah faz tempestade em um copo d’água - diz baixo, erguendo o olhar em seguida para mim - Robbie - Chama quando levanto, saindo do quarto.
Maggie não podia fazer novamente o que fizera antes, praticamente enfiar guela abaixo uma nova pessoa em nossas vidas e esperar que acolhessemos da melhor forma.
Pessoas não eram descartáveis ou substituíveis, principalmente não dava para contar vínculos quando bem quiséssemos.
Debruçada sobre o balcão da cozinha, observo Camille entrar no balcão e se escorar no mesmo.
- Ela não pensou duas vezes em colocar o Johannes dentro de casa.
- É a Maggie, lembra?
Naquele momento desejei não sei como ela.
Desejei poder amar uma única pessoa com todas minhas forças, até o final da minha vida.
