San Francisco
- Por que isso agora? - Maggie questiona, em pé em minha frente, encaro a xícara verde-musgo.
- Todo mundo precisa de um tempo ás vezes, mãe - diz Camille.
Maggie desvia o olhar rapidamente de Camille, novamente para mim.
- Pensei que iria cuidar de você.
- Eu estou bem, mãe - murmuro, sustentando seu olhar.
Inspirando profundamente, ela nos serve chá de camomila.
- Quanto tempo? - pergunta, atraindo meu olhar - Quanto tempo irá ficar?
- Só alguns dias - diz Camille, com a xícara perto da boca - Pense em todos os protestos que vai poder ir.
- Ser mãe foi uma escolha minha, Camille - diz Maggie séria.
- Eu não sou mais criança, posso cuidar de mim mesma - Lembro - E foi como a Camille disse, só vai ser alguns dias
Maggie toma um pouco do chá em sua xícara, para enfim assentir devagar.
- Se é isso que quer, por mim tudo bem. Além do mais sou contra proibições, todo o ser humano é livre para fazer o quê quiser. Inclusive de usar drogas.
- Mãe...
- Sempre fui muito liberal à isto e acredito que haveria mais benefícios se as drogas fossem legalizas - Ela continua, entrando em um dos seus discursos.
- Mãe - digo novamente levantando - Entendi e obrigada por isso.
Maggie suspira com os olhos começando a marejar.
- Só quero proteger vocês do mundo.
- Nós entendemos, mãe - diz Camille abraçando-a de um lado, praticamente me forçando a fazer isso do outro lado.
Depois de diversas orientações, incluindo alimentação saudável livre de qualquer tipo de carne animal. conseguimos ir embora.
Com as janelas abertas do carro, me despedia mentalmente do mar que se perdia de vista, enquanto era embalada com o cheiro da maresia.
Aquele era meu lugar favorito no mundo. Minhas raízes estavam enterradas ali e assim como Camille, sempre voltaria.
Aos poucos o mar e as montanhas ficavam para trás, deixando em evidência em cada quilômetro percorrido, os prédios ao longe.
O percurso para a casa de Camille em San Francisco, durou exatamente uma hora.
A primeira e última vez que estive ali, foi quando Camille se casou. Apesar de ter sido no cartório, seguido por uma oficialização simples na casa dos pais do noivo, ela fez questão da nossa presença.
Foi uma noite memorável, pelo fato de conseguir ver ela vestida em um vestido fino branco comprimido rendado, em homenagem à Maggie e pelos olhares estranhos que os pais de Conrad fazia para nós, principalmente para Maggie, que mesmo no casamento da filha, não viu motivo para disfarçar seus dreads ou suas roupas coloridas, muito menos seus discursos em prol a natureza.
Enfim, um dia bastante memorável. Principalmente pelo fato dos pais de Conrad serem conservadores e o fato da sogra de Conrad ser hippie e ainda por cima lésbica, era algo bastante...preocupante para eles, já que sem dúvida não era o quê estavam esperando.
Depois da lua de mel em Maui, os recém-casados se instalaram de uma vez no bairro de Filmore Street, num apartamento ótimo, aconchegante por sinal.
Camille mandou diversas fotos na época, mostrando cada canto do imóvel, mostrando o quanto a reforma ficará perfeita.
E ali estava eu novamente, depois de dois anos, de “férias”. Férias um tanto forçadas.
- O quê tem dentro dessas malas? Chumbo? - Camille questiona, enquanto subíamos mais um vão de escadas - Aquele seu furão não está aqui dentro, não é?
Rio baixo, com a mala menor.
- Abu com certeza morreria se o trouxesse aí dentro.
- Lembro muito bem de uma vez, que você quis dar um passeio com ele dentro da sua mochila.
- As pessoas vivem fazendo isso com gatos e até cachorros.
- Só que você não tem um gato ou um cachorro de estimação. Tem um furão!
Faltando alguns degraus para terminar a escada, paro, sentindo a exaustão em subir quatro vãos de escada.
- Abu não está na mala, Cami.
- É bom saber - diz ela, parada no topo da escada - Conrad não fica muito bem perto de animais - Ela coloca o cabelo cacheado atrás da orelha - Acho que ele tem alergia a pelos, eu acho - Dando de ombros, ela caminha até a segunda porta do corredor, pegando uma chave entre as demais que havia no chaveiro - Seja bem vinda - Praticamente canta, quando passo pela porta, olhando com atenção a decoração à moda Maggie.
- Pensei que não gostava da decoração colorida da Maggie.
Camille sorri, tocando com a ponta dos dedos o misto de flores em um jarro na mesinha de centro.
O lugar era todo decorado com as cores do arco-íris, sempre combinando de alguma forma, em pura sintonia.
- Sabe que acabei sentindo falta? - diz afofando uma almofada amarela - Quer dizer, a primeira vez que fui à casa dos pais do Conrad e vi todo aquele ambiente acinzentado, sem cor alguma, me vi imaginando quantas flores e cores colocaria ali - Ela fixa o olhar no vazio por um momento - Acho que foi por isso que escolhi decorar interiores - Em seguida ela sorri, colocando a almofada novamente no sofá.
- E então? - Cruzo os braços sob o peito - Você tem um quarto de hóspedes ou terei que dormir com você e Conrad?
- Ainda não sou adepta ao trisal - Ela gira parte do corpo - O quarto de hóspedes é por aqui.
Arrastando as duas malas, entro em um pequeno corredor com duas portas. A porta do lado esquerdo, era o quarto de hóspedes, enquanto a do lado direito, o quarto em que Camille dividia com Conrad.
O quarto não era tão grande quanto o meu, entretanto todos os móveis ali, estavam bem distribuídos e assim como a sala de estar, tinha cores vividas por toda parte.
- Este foi meu projeto pessoal nos últimos meses - Maggie olha com atenção a decoração - De manhã você vai se deslumbrar em como o sol entra pela janela e reflete nas paredes.
- Sério que estamos falando sobre luz e parede?
Camille fecha os olhos e sorri sem mostrar os dentes.
- A gente costumava falar sobre tudo.
- Quando tínhamos... 12 e 15 anos?
- Quero mostrar uma coisa pra você - Antes mesmo de eu responder, se queria ou não, ela sai rapidamente do quarto, entrando no quarto ao lado que, chegava a ser o oposto do restante da casa. Ficou evidente para mim, que Conrad não gostava de tanta cor no lugar que dormia.
Em cima do móvel ao lado da cama, havia uma maquete exata do avião Flyer III, um projeto posterior dos irmãos Wright, onde em 5 de outubro de 1905, Wilbur voou por 39 minutos sobre um campo em Dayton. Sendo definitivamente o primeiro avião do mundo e estava ali, a maquete minimalista que montei durante sete meses, completamente preservado após 15 anos.
- Você guardou - murmuro surpresa.
- Por que não guardaria? Lembro que você tinha o maior cuidado com essa maquete, mais do que as outras - Ao meu lado, ela observa a maquete - Do jeito que gostava de aviões, nunca pensei que trocaria por outra coisa. Quer dizer, aviões era sua cara, agora...saltos ornamentais?
Forço um sorriso, sem tirar os olhos da maquete.
Havia um fundo de verdade em suas palavras. Até para mim foi uma surpresa, quando me vi colocar em uma caixa tudo que mais gostava, substituindo por algo que não se encaixava dentro de mim.
Tudo por quê só queria agradar e me destacar. Não ser apenas a filha da diretora lésbica, que estava namorando com a treinadora.
Foi o jeito que encontrei para fugir do bullyng.
- Sabe do que lembrei agora? - Camille interrompe meus pensamentos. Olho para ela no mesmo instante - Você era apaixonada por um tal de...como era mesmo? - Por um breve momento fica pensativa.
- Camille. Já cheguei - A voz de Conrad chega em nossos ouvidos.
- Oi. Estamos aqui! - Ela responde, se virando para a porta, onde segundos depois Conrad aparece.
- Ah, não sabia que tínhamos visita - diz ele com os olhos recaindo sobre mim - Parece com aquela sua irmã...
- É a Robbie.
- Nossa. Parece que você cresceu - Ele encurta o espaço entre nós, estendendo a mão para mim que, não hesito em apertar.
Conrad havia assumido após o casamento a concessionária dos pais e trabalhava lá integralmente.
Sempre o via como o oposto de Camille, tanto fisicamente, quanto na personalidade e podia jurar que para ele namorar uma negra, era algo surpreendente e fora de qualquer padrão, já que volte e meia, dizia isso como se namorar com uma pessoa negra fosse algo incomum. Inacessível.
- Robbie vai passar alguns dias aqui com a gente - diz Camille - Ela se machucou ao pular da prancha e está precisando descansar.
- Nossa. Deve ter sido horrível. Sinto muito.
- Na hora não senti muita coisa, mas depois de ter cinco pontos na cabeça, foi horrível mesmo - Forço meu melhor sorriso e simpatia.
Um sorriso amarelo dura alguns instantes no rosto de Conrad, antes dele simplesmente passar a mão pelo cabelo loiro-claro e olhar para a esposa.
- O quê temos para o jantar?
- Pensei em comida japonesa.
O sorriso oscila.
- Achei que soubesse que não gosto de...
Camille morde o lábio inferior, notando a confusão que fizera.
- Me desculpa, tinha esquecido - diz andando para fora do quarto - Preparo alguma coisa em 20 minutos.
Conrad volta a me olhar, dessa vez estendendo a mão em frente ao corpo, dando a vez para mim sair do quarto. Agradeço com um breve sorriso e saio do quarto, sentando em uma das poltronas de madeira na sala, após Camille ligar a Tv.
Na cozinha, Camille estava a todo vapor, cozinhando entretida enquanto cantarolava algo baixo, até que o noticiário começou e sua atenção foi completamente puxada para uma notícia.
- É ele, Rob! - diz de repente, me assustando, quando o CEO de aviação aparece, após inaugurar mais um hangar de sua empresa de aviação - Victor Krum! - Ela olha para mim sorrindo - O cara que você era apaixonada quando era criança - Meu rosto começa a arder, não pela paixonite, mas por ela dizer isso na frente de Conrad com toda a naturalidade do mundo.
