Ruptura
Debruçada sobre o vaso sanitário, vomito minha quarta refeição daquele dia, concluindo o final de mais um dia que passei colocando tudo que comia para fora.
Três dias para ser exata.
No início quando precisava perder peso rápido e em pouco tempo, sempre optava em uma dieta de baixa calorias, dando prioridade a saladas.
Mas acabei percebendo que este método acabava sendo lento e que precisava de algo que fosse realmente eficaz. E o eficaz acabou surgindo no vestiário, quando ouvi duas garotas conversando e uma delas comentava algo sobre forçar o vômito depois das refeições e que isto de alguma forma, ajudava a uma perda drástica de peso.
Acabou que isto se tornou uma carta na manga, toda vez que precisava perder alguns quilos indesejados recorria para aquele método, até chegar um momento no qual se tornou recorrente e via como algo normal, uma necessidade que meu corpo impunha logo após as refeições, como se vomitar desse um certo alívio. E por parte, era o quê sentia.
Quando ficou notável a perda de peso excessiva, isto acabou chamando a atenção de Leah e acabei contra a parede. Ela me fez enxergar o quê não via, me fez ver o estado em que meu corpo estava, enquanto se degradava rapidamente.
Estava irreconhecível até para mim mesma, obcecada pelo peso e o físico ideal.
- As vezes temos que fazer alguns sacrifícios para conseguir o quê queremos. Você fez um - disse Leah, com ambas as mãos em meus ombros - Este vai ser nosso segredo. Mag não precisa saber - Naquele momento me apaguei à ela como se fosse um bóia e estreitei os laços que já existiam entre nós.
Leah guardou meu segredo e me ajudou a ganhar uma parte do peso, conseguindo não alarmar Maggie no processo.
Eu era uma atleta e isso requeria sacrifícios.
Aperto o botão da descarga, me envolvendo por alguns instantes com o breve barulho. Quando me vi novamente no silêncio do vestiário, saio do reservado, notando minha imagem refletida logo a frente no espelho.
As olheiras em baixo dos olhos estavam evidentes mesmo na pele negra, apesar do meu cabelo estar preso para trás perfeitamente, podia jurar que podia ver ainda alguns fios soltos e isto automáticamente me faz passar as mãos pelo cabelo, só então notando que as mesmas suavam.
Sento no banco de madeira ao lado, inclinando meu corpo para frente, inspirando e expirando longamente.
Aquela competição definitivamente decidiria meu futuro, diria se meus dias continuaria competindo ano após ano, presa naquela cidade ou se iria para outro patamar mais alto.
Dentro de mim em algum lugar, não importava. Não importava se iria para fora daquela cidade ou não, se me tornaria uma grande atleta ou não. Por que não era exatamente o quê eu queria desde o início.
Não era.
A porta abrindo faz com que erga a cabeça e olhe naquele direção. A treinadora Robert anda em passos largos até mim, colocando as mãos na cintura ao parar na minha frente.
- Em pé - diz autoritária. Obedeço, me colocando em sua frente. Ela me olha de cima a baixo, atentamente, me avaliando - Quantos quilos?
- Cinco - murmuro, notando que falar já era um esforço.
- Ótimo. Agora lembre-se... - Ela dá um passo na minha direção - braços erguidos acima da cabeça e concentração. Se concentra. Metade da cidade está aqui, junto com os melhores juízos - Assinto, forçando um sorriso, acreditando que tinha tudo sob controle.
Naquele dia, muitos atletas como eu, estariam disputando. Todos ali dariam seu melhor, o sangue, se fosse necessário, para ser notado.
Na fila ao pé da prancha, observava uma garota a minha frente se alongar e murmurar algo. O otimismo estava mais do que óbvio ali, entretanto, não achava que ela se sairia tão bem; era dessa forma que eu encarava a vida, sempre esperando o pior. Dessa forma, se algo desse ruim, já estaria parcialmente conformada.
Assim que foi chamada, ela subiu a escada até a prancha com um sorriso no rosto e diante de toda a plateia, se posicionou, jogando-se de lá de cima em um espiral em seguida.
Aplausos ecoaram e de onde estava, pude ver os juízes anotarem algo.
Quando meu nome soou por toda parte, hesitei antes de segurar o corrimão de ferro e começar a subir. Mas finalmente quando comecei a subir, pude sentir meu colo se tornando frio a cada degrau que eu avançava.
Estava completamente gélida quando me vi no começo da ponte, em frente de vários olhos atentos e curiosos.
Já havia feito aquilo antes, mas toda vez que subia ali, era como se fosse a primeira vez. Trazia as sensações da primeira vez.
Respirando pela boca, centralizo meu olhar num ponto invisível, até que após fechar os olhos por uma fração de segundo e abri-los novamente, encontro Maggie na platéia.
Maggie, a pessoa que nunca assistia os campeonatos, muito menos os treinos. Já que estava sempre ocupada com alguma coisa. Normalmente, aquela tarefa ficava responsável por Leah e não havia nenhum sinal dela por perto.
Baixando o olhar, engulo em seco, erguendo os braços acima da cabeça. Mesmo querendo, exigindo, que minha mente ficasse limpa para poder me concentrar no que estava prestes a fazer, não consegui. Foi impossível não pensar em três dias atrás, quando no 4 de Julho, Leah foi embora.
Então querendo fugir da corrente de lembranças e acabar logo com o quê estava prestes a fazer, me jogo de cima da prancha, sentindo um grande impacto atrás da minha cabeça em seguida, o quê me desnorteou antes de cair dentro da água.
Ainda dentro da água, encaro o fundo da piscina com os olhos semicerrados. Quando o ar começa a sumir dos meus pulmões, movo meus braços ao meu redor e me impulsiono para cima.
Com a visão turva, noto que havia pessoas em pé, murmurando, algumas com as expressões chocadas.
Será que meu salto foi tão perfeito que impressionou?, penso sentindo um incômodo na nuca.
Noto a treinadora Robert se aproximar rapidamente da beira da piscina, gesticulando e dizendo algo incoerente. Com um certo esforço, nado até ela, seguido praticamente puxada para fora da piscina, aonde rapidamente algumas pessoas se colocam ao meu redor e começam.
A treinadora volta a dizer alguma coisa e mesmo querendo entender o quê estava dizendo, não conseguia, já que minha atenção estava se voltando para a dor incômoda que só crescia.
Um enfermeiro ultrapassa a pequena multidão ao meu redor e se coloca na minha frente, abrindo rapidamente uma pequena maleta, de onde tira uma lanterna.
- Siga a luz - orienta, movendo a lanterna de um lado para o outro. Franzo o cenho, quando a luz machuca meus olhos - Vou ver sua cabeça.
- Por que? - questiono confusa.
Ele não responde, invés disso, vira um pouco minha cabeça na direção da piscina.
- Vamos ter que levá-la para o hospital - O enfermeiro informa a treinadora Robert - Será necessário alguns pontos.
- É melhor ir logo então - diz a treinadora rapidamente, assustada.
Só depois dessas palavras, que comecei a entender o quê havia acontecido. Na descida da prancha, devo ter batido a cabeça em alguma extremidade, isto explicava a dor latejante atrás da minha cabeça.
Fui colocada e levada por uma maca, até uma ambulância que esperava do lado de fora. Quando já estava acomodada no interior do veículo, Maggie se aproxima rapidamente com gotículas de suor pelo rosto negro, além de estar quase sem fôlego, por ter corrido até a ambulância.
- Estou aqui, girassol - diz se sentando ao lado, segurando minha mão - Vai ficar tudo bem.
Fecho os olhos, sentindo sua mão apertar a minha, sem conseguir absorver o otimismo.
Tinha tudo para dar tudo.
Tudo.
Só precisava dar um salto perfeito e conseguir a melhor nota.
E o peso de um salto não perfeito, estava começando a recair sobre mim.
- Robbie - Maggie murmura, com a expressão angustiada, se debruçando sobre mim, limpando as lágrimas que escorriam de meus olhos para o lado do meu rosto.
O choro se intensifica e sem saber muito o quê se fazer, ela me abraça ainda deitada, afagando o topo da minha cabeça.
Quando a ambulância para em frente ao hospital, as duas portas se abrem novamente e a maca é retirada do interior.
Em uma sala, uma enfermeira se aproxima e novamente me examina, trocando breves palavras com o enfermeiro anterior, antes de me ajudar a sentar e analisar minha cabeça.
- Parece que alguém vai ganhar um visual novo - diz ela em tom de brincadeira - Terei que raspar uma parte do seu cabelo, tá bom?
Inspiro profundamente, forçando um leve sorriso, antes de assentir, mexendo na ponta da minha orelha.
Havia aprendido a lidar com o medo da altura, mas nunca de agulhas. O medo de agulhas era algo persistente, talvez um trauma de criança, por Maggie não acreditar na veracidade das vacinas e acabar por não me dar nenhuma.
Acabou que um dia colocada contra a parede, praticamente fui furada algumas vezes para uma proteção futura. E isso de fato, me traumatizou.
Gentilmente a enfermeira raspa um pedaço da minha cabeça, aplicando em seguida um anestésico, para só então começar a sutura que, pareceu uma eternidade, já que seguida quando ela puxava a linha.
Segurava com força a maca, mantendo meus olhos também fechados, mas mesmo de olhos fechados, sabia que Maggie estava do lado de fora da sala sendo contra a todos os procedimentos.
- Prontinho - diz quando termina, pousando a mão em meu ombro - Não ficou tão ruim - Ela dá uma breve olhada na sutura que havia acabado de fazer. Soltando o ar dos pulmões, volta a me olhar - Vai ficar em observação, o.k? Só para garantir que...
- É necessário mesmo? - Maggie questiona da porta.
- Sim. É. Ela bateu a cabeça.
- Minha filha está bem.
- Só quero garantir que ela está bem mesmo - Ela começa a arrumar as coisas que havia tirado do lugar - A lanchonete do hospital tem um café ótimo. Devia dar uma passada lá - Maggie cruza os braços sob o peito impaciente.
