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Capítulo 3

Em algum lugar do Oceano Atlântico, junho de 1834

─ Estás a limpar o convés como te ensinei? ─ indagou Luís, depois de beber seu copo de água do dia.

Os tripulantes só tinham direito de beber um copo de água por dia. Estavam racionando havia três semanas. Depois de alguns ventos desfavoráveis, a viagem estava se mostrando mais demorada do que deveria e o navio estava ficando sem suprimentos e sem água doce.

─ Sim, senhor ─ respondeu João Miguel. Queria revirar os olhos, pois Luís vinha fazendo essa pergunta havia meses, logo após tê-lo ensinado os afazeres. Ao invés de lhe lançar uma carranca, apenas sorriu.

─ Deixa o gajo trabalhar, Luís ─ aconselhou Fred, o contramestre, rindo. ─ Ora pois, ele não tem medo de serviço, tu que és demasiado controlador!

─ Estou nervoso, isso sim ─ admitiu o outro. ─ O mar está a nos prejudicar e agora demoraremos eras para chegar às Índias.

─ É para lá que estamos a ir? ─ o garoto indagou baixinho. Tentava não chamar atenção.

─ Sim ─ respondeu Fred. ─ E com a comida quase a acabar, talvez tenhamos que jogar alguns ao mar. Ou ─ inspecionou o garoto dos pés a cabeça ─ alimentarmo-nos uns dos outros.

Luís deu uma sonora risada.

─ Estive a morar metade da minha vida nas ruas ─ anunciou João Miguel, dando de ombros. ─ Não tenho sustância para alimentar homens como vocês.

A brincadeira surpreendeu os dois homens mais velhos que deram risadas altas. João Miguel pegou um balde cheio de excrementos e urina e jogou todo o conteúdo ao mar, quase acertando um dos tripulantes que passava.

─ És caolho?

─ Mil perdões ─ expressou, com sinceridade, enquanto Fred e Luís davam mais risadas.

─ Então, ─ começou Fred, depois que pararam de rir ─ conta a tua história, João Miguel.

─ Sou bastardo ─ foi tudo o que disse, ficando em silêncio logo em seguida.

Fred esperou que ele continuasse, mas era tudo. João Miguel não disse mais nada.

─ E?

O menino suspirou.

─ Minha mãe, portuguesa, conheceu um inglês quando este veio a Portugal fazer sabe Deus o quê ─ começou. ─ Minha mãe se apaixonou, entregou-se a ele, engravidou. Ele fez parte de nossas vidas até os meus sete anos, ia e voltava todos os anos, passava um tempo conosco. Era casado, portanto, sempre voltava para Londres, para sua família oficial. Até que certa vez, um ano inteiro se passou e ele não veio. Eu via minha mãe lendo um pedaço de papel na nossa varanda, quase todos os dias. Eu sabia que ele tinha ido embora para sempre e, certa manhã, ainda com sete anos, acordei e minha mãe estava morta no chão da cozinha. Tinha reclamado de dores de cabeça na noite anterior. Mas foi só. Os vizinhos disseram que foi castigo de Deus por ser uma mulher assanhada. Eles criavam animais, galinhas e coisas do tipo ─ fez uma pausa, jogando a sujeira de outro balde no mar. ─ Pus fogo no celeiro deles. ─ Deu de ombros, recostando-se em uma parede. ─ Li o papel que minha mãe não largava em vida. Era uma carta de despedida do maldito. Fui para um orfanato, mas então fugi. Morei nas ruas desde então, até conseguir emprego aqui.

Fred sorriu.

─ Você é um sobrevivente, filho.

─ Mamãe dizia que o inglês era marinheiro. Edward Brighton ─ João Miguel olhou para os dois homens. ─ Serei um marinheiro melhor do que ele jamais foi.

Naquela noite não havia ninguém encostado ao timão, de olho no mar. Consequentemente, não viram o navio suspeito, de bandeira escura hasteada, balançando ao sabor do vento. Quando João Miguel percebeu que estavam prestes a ser atacados, saqueados e mortos, já era tarde demais. É claro que esse fato não o impediu de se embrenhar entre os corpos adormecidos, chamando a todos e indo acordar o capitão.

— Inimigos à vista! — gritou. — Acordem!

O capitão abriu os olhos, assustado e em estado defensivo. Não precisou que o rapaz lhe dissesse mais nada. Assim que viu a expressão no rosto do garoto, levantou-se de um pulo, esquadrinhando o local, agora com os olhos despertos.

— Preparar armas!

Mas já não havia tempo. Foi como se o capitão tivesse dado o comando para a embarcação inimiga, pois assim que gritou a ordem, o navio desconhecido atirou seu primeiro canhão. Quando atingiu a lateral do navio, João Miguel pegou um mosquete. Era grande e pesado. Nunca havia atirado em toda a sua vida, mas os homens do navio haviam lhe ensinado a teoria.

— Esquece isso! — Luís gritou. — Está muito escuro, não há como ter uma boa mira daqui e tu não tens tempo para colocar pólvora nisto — tirou a arma de sua mão. — Vamos encher os canhões e matar esses piratas malditos!

Constataram, no entanto, que os ventos estavam a favor do outro navio que, em pouco tempo, já havia coberto uma boa distância, aproximando-se deles. Em poucos minutos, os piratas já estavam pulando de uma embarcação para outra, prontos para um combate corpo a corpo.

— Aqui — Luís chamou sua atenção — Toma esta garrucha. Não pensa. Só atira!

João Miguel encarou a arma de pequeno porte em suas mãos e ergueu o olhar para Luís, testemunhando o exato momento em que um dos piratas surgiu e enfiou um punhal no pescoço do homem. Seus olhos reviraram dentro das órbitas e ele caiu no chão, rodeado por uma poça, que se formou rapidamente, de seu próprio sangue.

Assustado, o garoto correu para a direção contrária, com a arma em punho, e se escondeu nos fundos do navio. Não soube por quanto tempo ficou lá, mas embora colocasse as mãos nos ouvidos para não escutar o barulho da batalha, era impossível abafar os sons de lâminas cortando membros e punhais sendo cravados em corpos sólidos de forma brusca e sem piedade. Quando finalmente se fez silêncio, ponderou se os piratas iriam apenas saquear o local e deixar o navio. Não entendia nada de ladrões marítimos. Sua principal preocupação a bordo de um navio era não morrer de fome ou de alguma doença, como escorbuto ou varíola, nunca pensou na possibilidade de encontrar piratas e de repente se sentiu estúpido.

Já estava pensando em sair de seu esconderijo — não queria ver os corpos, mas talvez os piratas tivessem mesmo ido embora — e ver a situação do navio, quando a porta do armarinho em que se escondia se abriu com toda força e um braço o puxou para fora, fazendo seu corpo magro chocar-se contra o chão com um baque alto.

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