Capítulo 2
Rio de Janeiro, Véspera de Ano Novo de 1850
Estela estava cansada.
Desde quando acordou de manhã bem cedo, até aquele momento, bem depois de passada a hora do almoço, no meio da tarde alta, a moça já se sentia fatigada de ter que ouvir sua amiga reclamar incessantemente sobre a escassez de opções de roupas e joias para exibir no baile de réveillon.
— Tudo tem que sair perfeito, você sabe — enfatizou Rebeca pela quinta vez naquele dia, antes de continuar seus devaneios. — Quem sabe que aventuras podemos viver, que situações inusitadas podemos nos deparar…
— Defina aventuras, minha cara — pediu a outra, passando a mão sobre o tecido delicado de algumas faixas de cabelo. Estavam na loja de acessórios de Madame Bureau, uma francesa apaixonada pela “selvageria” dos trópicos, como sempre gostou de destacar.
— Talvez… o primeiro beijo — ela sorriu, em êxtase diante de tal pensamento. — Não seja uma estraga-prazeres, eu tenho quase certeza de que Peter estará lá.
Estela deu de ombros, aparentando indiferença por fora, mas por dentro se sentia feliz também. Não que ela quisesse pintar uma imagem gélida e de frigidez para Rebeca. Eram melhores amigas, afinal. Estela só não queria criar altas expectativas para um ato que provavelmente não duraria nem um minuto.
Ela tinha noção das coisas que lia em seus livros. Nos romances, tudo acontecia com tanta volúpia, luxúria e desejo. Ela não sabia de fato, mas fazia uma ideia do quão bom poderia ser envolver-se nas artimanhas da paixão. Ela até gostava de Peter. O rapaz era um verdadeiro gentleman, muito bem-apessoado e de figura distinta. De aparente bom caráter e sorriso fácil, ele era encantador e dono de muitas características que agradavam a moça. Talvez a firmeza de suas maneiras, a segurança de suas atitudes sem usar de arrogância nem parecer fingido. Parecia o candidato perfeito para o primeiro beijo.
— Talvez ele esteja — concordou ela, sem se alongar. — Mas você saberia dizer por quanto tempo?
— O que quer dizer com isso?
— Sabe que Peter é inglês de nascença. Embora esteja no Brasil há muitos anos, sei que sente falta de sua família no condado de Hertfordshire.
— Está tão apaixonada por ele assim? — Inquiriu a amiga, virando-se na direção da outra. As duas pararam abruptamente, quando Rebeca girou nos calcanhares, fazendo o vestido farfalhar, e ficaram frente a frente.
— Não é isso — Estela sorriu, um pouco constrangida de repente. — Talvez eu só esteja entediada diante de uma perspectiva tão corriqueira.
Rebeca a encarou, franzindo o cenho delicadamente. Às vezes achava muito difícil entender sua melhor amiga, a quem considerava uma irmã. Praticamente cresceram juntas, porém em realidades bem diferentes. Estela era uma rica dama da sociedade, debutante disputada, filha de um escritor brasileiro, homem de cor, famoso entre a classe alta, e mãe portuguesa, herdeira de uma pomposa fortuna deixada por seu falecido tio sem prole. Rebeca, por sua vez, era filha de comerciantes. Tinham dinheiro — eram burgueses bem aceitos — mas seus pais não tinham modos, infelizmente, e tal falta de finesse a deixava em uma situação delicada para realizar o plano de se infiltrar nos círculos de pessoas que almejava se encaixar.
— O que quer dizer com isso? — Repetiu, sem desistir de tentar entender.
— Quando você diz aventuras, você pensa em beijos roubados no terraço de mansões vitorianas chiques, piqueniques ao sabor do sol, viagens para a Europa e ver a neve. Quando eu penso em aventuras, eu me imagino em uma situação tão inesperada, tão vivaz e, quem sabe, com uma pitada de periculosidade, que o único sabor com o qual consigo me deleitar não é o sol, e sim algo apimentado.
Rebeca inclinou a cabeça para trás e riu delicada e intensamente.
— Você enlouqueceu! Está querendo viver uma fantasia, quando na verdade tudo o que você tem é a vida real!
Estela deu de ombros, dando a volta pela loja.
— Talvez. Já escolheu sua faixa?
Rebeca fez que sim. Era de cor azul turquesa, com brilhos nas laterais e nas pontas. Ficaria perfeito em seu cabelo preto liso e pele alva.
Estela decidiu-se por uma faixa preta com a qual decoraria as mechas que iria trançar. Seria uma boa escolha para quebrar a cor branca do vestido e as mechas de seu cabelo de fios grossos e castanhos, queimados do sol por conta dos longos dias em que passava no jardim, pintando seus quadros.
Saíram da loja, caminhando a passos lentos e cadenciados, os braços dados ao atravessar a rua. Para um dia de verão tropical, a temperatura não estava tão alta. Era suportável sentir a quantidade exagerada de anáguas por trás das saias do vestido e o corpete não estava tão apertado a ponto de fazer Estela perder o ar ou ficar com as costelas roxas. Do outro lado da calçada, cumprimentaram Geraldo, o cocheiro que estava levando as duas naquela tarde, e entraram na charrete. O homem chicoteou os cavalos, e logo estavam em movimento novamente.
— Para onde quer ir agora? — Indagou Estela, reprimindo um bocejo. Fazer compras sempre a deixava cansada e indisposta no final do dia, embora ainda não fossem nem quatro da tarde.
— Não quero ir para casa. A bem da verdade, você me faria um favor? Gostaria de passar o resto do dia na sua casa, me arrumar lá e de lá partir para o baile com você e com os seus pais. Lá desejo um feliz ano novo para papai e mamãe.
— E quanto às suas roupas? Não as trouxe.
— Geraldo poderia ir lá buscar? — Pediu ela, seus olhos suplicantes brilhando por compaixão e alento.
Estela suspirou e sorriu antes de concordar por fim.
— Tudo bem para você, Geraldo?
— Sem dúvida, dona Estela.
Quando chegaram à casa, seus pais estavam sentados na sala de estar. Sua mãe tinha nas mãos um bordado feito pela metade. As pontas das agulhas de tricô passavam pelos furos das linhas com precisão e maestria, guiados por seus dedos ligeiros. Ao lado dela, seu pai lia um livro de capa dura, seus óculos redondos bem firmes rente ao cabo do nariz a frente de seus olhos que iam de um lado para o outro nas páginas, absorto na leitura.
— Chegamos — anunciou a moça com Rebeca ao seu lado.
Honório e Cristina ergueram as respectivas cabeças diante da voz da filha.
— Divertiram-se? — Perguntou a mãe, pondo o tricô no colo.
— Foi fantástico, como sempre — respondeu Estela, sentando-se no sofá do outro lado da sala. — Rebeca comprou mais do que eu, é claro.
— Sinto-me abençoada por poder comprar as coisas que gosto, então comprá-las efetivamente é minha forma de demonstrar o quão grata eu sou pela dádiva — brincou, fazendo Cristina dar uma risadinha de seu sarcasmo.
— Estela, deixe a moça em paz. Cada um com seus hábitos.
— Sim, mamãe, concordo.
— Quer que Geraldo deixe você em casa, Rebeca? — Perguntou Honório, preocupado com o horário. O baile era dentro de poucas horas. — Não é trabalho nenhum para o nosso cocheiro.
— Na verdade, senhor…
— Rebeca vai ficar aqui até irmos para a festa. Na verdade, papai, já que ofereceu com tanta amabilidade, gostaríamos mesmo que Geraldo fosse até a casa dela pegar seu traje de noite. Ela irá se arrumar aqui.
— Tudo bem — o homem anuiu, sem se importar.
— Aconteceu alguma coisa? — Investigou Cristina.
Rebeca suspirou, alisando os pequenos vincos que se formaram nas saias de seu vestido quando ela se sentou.
— Gostaria de estender um pouco mais o "recreio" que tiro da presença dos meus pais. Os intervalos entre uma sessão e outra de suas loucuras são tão curtos, geralmente.
— Querida…
— Está tudo bem, mamãe.
— Não, Estela. Rebeca deveria ter a liberdade de conversar com os pais e não se sentir farta deles.
— Mas a senhora entende, não é mesmo? — A melhor amiga de Estela se inclinou no assento, ficando sentada na ponta do sofá, com as costas eretas de tensão. — Eu os amo, eles só são… demais para suportar numa base diária.
— Sim, meu bem, eu entendo. Sabe que pode sempre conversar conosco, não sabe? Somos sua família também.
— Obrigada, tia Cristina.
— Não olhe para mim — redarguiu Honório quando o silêncio tomou conta do local e Rebeca o mirou com olhos desejosos. — Sabe que me conquistou quando leu meu primeiro romance e fez críticas absurdamente sagazes.
Ela sorriu, sentindo a emoção aflorar em seu peito, à beira de transbordar, mas se conteve. Era maravilhoso saber que não estava sozinha.
Uma hora mais tarde, ficou ainda mais contente — e mais aliviada — quando Geraldo chegou com sua roupa.
— Pode usar minhas maquiagens — assegurou Estela. E tudo parecia tão certo.
— Seus pais são maravilhosos! — comentou, deitada na cama de Estela, no quarto da amiga.
— São muito compreensivos, realmente.
— E modernos! Tem noção da sorte que tem, Estela?
A moça sorriu, voltando-se para o espelho de sua penteadeira.
— Tenho, sim.
Mas aquele fato não a deixava menos desejosa de um pouco mais de emoção, a aventura que tanto ansiava viver, fosse ela qual fosse.
Ela só não esperava o tipo de aventura que estava por vir.