Capítulo 1
A chuva fina é o detalhe que faltava para aquele cenário melancólico que ocorria no cemitério. Ela não tardou a cair pegando todos os que estavam no enterro de surpresa. Mas Maria Luísa Braga de Almeida não se importava com a chuva, com as pessoas, nem com o fato do pai dela estar segurando em seu ombro, como se fosse uma pessoa presente em sua vida. Ela o afasta e se aproxima do caixão, com lírios em suas mãos, as flores favoritas de sua mãe. Seus cabelos pretos e compridos caíam como uma capa em seu rosto ao jogar as flores em cima do caixão, passando a mão por ele todo, até chegar onde estaria o rosto daquela a quem amava: Anna Braga, sua mãe. Lágrimas escorrem pelo rosto da jovem de dezesseis anos que não consegue imaginar como será sua vida, daquele momento em diante.
Você me prometeu, disse que jamais me abandonaria e agora? Por que me sinto tão sozinha? Por que não sinto você perto de mim? Por que está me deixando com ele? Diz algo! Reaja! Mostre que isso tudo é uma mentira! Levante–se daí! Dá–me um abraço! Cante para eu dormir! Faça algo! Você disse que éramos nós duas contra o mundo, mas me deixou sozinha! Pensa Malú fechando as mãos e batendo levemente no caixão enquanto chora com mais força. O pai a afasta de perto do caixão para que o mesmo pudesse ser finalmente enterrado.
Conforme o coveiro lançava a terra para dentro da vala, Malú sentia sua vida indo junto. A dor era insuportável , quando ele finalmente terminou , ela já não tinha mais forças para continuar de pé, sendo amparada por seu pai. As pessoas que acompanharam o enterro seguravam em sua mão, prestando condolências. Umas rápidas, outras demoradas, mas todas com a palavra pêsames no final. Malú não prestava atenção em nada daquilo, só queria sua mãe de volta.
— Vamos embora, Malú – ordena seu pai com a voz triste. Ele olha para o céu que está mais escuro, parecendo noite — Precisamos ir logo antes que a chuva piore.
Malú não responde, não sente a menor vontade de tomar nenhuma decisão a partir de agora. Por ela, ficaria ali para sempre, assim como sua mãe. Sem receber a resposta, ele a conduz para a saída do cemitério. Abre a porta de seu Maseratti Quattroporte preto estacionado na entrada, fazendo Malú sentar no banco do passageiro. Ele entra pela porta do motorista e liga o carro, dirigindo pelas ruas de Belo Horizonte.
— Para onde gostaria de ir? – pergunta o pai enquanto está parado no sinal.
— Para sete palmos do chão – responde Malú olhando pela janela. Ela o encara com seus grandes olhos azul — Ou para o mais longe possível de você, Thiago.
***
Thiago de Almeida, esse é o nome do pai de Maria Luísa, também conhecido pelas más línguas, como o playboy que fugiu ao descobrir a gravidez de sua namorada. Filho de um importante Juiz de Curitiba veio a Minas Gerais fazer o Curso de Direito na federal do estado. Lá conheceu a acadêmica de Letras, Anna Braga e desse amor, surgiu Maria Luísa. Rejeitada por seu pai antes de nascer, sendo criada por Anna, que parou a faculdade e foi trabalhar como recepcionista de um hotel para sustentar a filha, sozinha, pois seus pais já eram falecidos.
Apesar de tudo, Maria Luísa cresceu em um lar feliz, mesmo sem a presença paterna. Anna nunca falou dele para a filha, pois não achava necessário que ela soubesse o tipo de pessoa que seu pai era. Malú já sabia da história desde os sete anos , quando chegou da escola escutou a melhor amiga de Anna , Aline, falando a respeito de Thiago. Sabia que ele tinha sido um covarde e fugido na hora em que sua mãe mais precisou.
Além do fato dele enviar dinheiro mensalmente, como uma forma de impedir que Anna revelasse aquele segredo para a mídia, não tinha qualquer contato com ele. Só quando a mãe esquecia algum recorte de jornal de Curitiba mostrando que ele havia se candidatado a senador do estado, ou alguma revista falando do noivado dele com uma advogada, mas nada sobre ela. Malú sempre acreditou ser o segredo indesejado por seu pai, apesar dos esforços de sua mãe para fazer aquela ideia sair de sua cabeça. Anna usava o dinheiro para pagar uma boa escola para Maria Luísa, roupas, alimento e tudo mais o que a menina desejasse, que no caso, sempre teve vicio por livros. Influenciada fortemente por Ícaro que se tornou amigo de longa data de sua mãe e o "relacionamento complicado" de Aline.
Embora fosse uma figura presente na vida das três, nenhuma sabia muito da vida daquele homem misterioso, a não ser que seu trabalho exigia que viajasse toda semana. Com o passar dos anos aquilo deixou de ser importante, já que ele fazia de tudo por elas, incluindo conseguir emprego no hotel mais renomado de Belo Horizonte para as duas, entre outras coisas sempre que precisavam. Acabou se tornando a figura paterna que Malú precisava.
Os anos passaram tranquilamente, até a um ano atrás, quando Anna desmaiou no serviço , sendo levada ao médico, onde descobriu que tinha um tumor inoperável no cérebro e pouco tempo de vida. Quando contou a Malú, sabia que estava na hora de contar sobre o pai dela e acioná-lo.
— Você precisa ser forte – pede sua mãe — Por nós duas.
— Mas eu não quero ser forte – retruca Malú chorando — Eu quero que você fique comigo.
— Eu sempre estarei com você , minha querida – alega Anna abraçando a filha.
— Mas eu quero você, aqui comigo, viva – rebate Maria Luísa se afastando.
— Não será possível – nega Anna com um sorriso triste — Deus quis que eu tivesse de ir para que você possa conhecer seu pai e ficar com ele.
— Eu o odeio, prefiro que ele morra ao invés de você – esbraveja Malú revoltada.
— Nunca mais diga isso! – exclama Anna brava — Ele não é mau, como pensa. Assim que conhecê-lo, mudará de ideia. – Ela toca nos longos cabelos da filha —Você tem o mesmo tom de cabelo que seu pai, os mesmos olhos, a mesma boca e o mesmo temperamento. Não tenha raiva dele. Ame–o como eu, pois ele me deu você.
— Não posso – recusa Malú fechando os olhos.
— Faça isso por mim – pede Anna tocando no rosto da filha — Quando eu me for, quero que o ame como eu te amo, promete?
— Vou tentar – responde Malú abraçando a mãe novamente.
Thiago não apareceu nos primeiros meses de quimioterapia, nem na radioterapia. Muito menos quando Anna perdeu os cabelos loiros. Doía em Malú, ver sua mãe esperar ansiosa a cada vez que sua porta abria, ou quando um homem com as características de Thiago passava. Depois de um tempo, Ícaro lhes disse que precisava viajar, dessa vez não tinha certeza se voltaria.
— Adeus, meu querido amigo – despede–se Anna se esforçando para sorrir. Sua voz está cada vez mais fraca —Muito obrigada por tudo o que fez por nós.
— Eu quem agradeço Anna. Você é um anjo, tenho certeza que irá para um lugar melhor – fala Ícaro beijando as mãos dela — Me perdoe por tudo o que fiz... Perdoe–me por qualquer mal que eu tenha feito a sua família.
— Você que foi um anjo em minha vida – elogia Anna, deixando uma lágrima cair por seu rosto — E na vida da minha Malú. Você é um homem bom, Ícaro. Eu tenho certeza disso. Não tenho motivos para lhe perdoar, pois não há o que perdoar.
Ele solta as mãos de Anna e sai do quarto praticamente correndo. Ele se encosta–se à parede, chorando.
— Então você vai embora mesmo? – questiona Aline se aproximando daquele a quem entregou seu coração durante todos esses anos. Ela segura todas as suas lágrimas, pois não acha que ele mereça nenhuma delas — Deixará a Malú, quando ela mais precisa de você?
— É preciso. – Responde Ícaro se controlando — É mais difícil para mim do que qualquer uma de vocês possa imaginar. Se eu ficar, será pior. Mas acredite, eu sempre estarei de alguma forma ao lado da Malú.
— E quanto a mim? – pergunta Aline se aproximando — Quanto a nós? Você pensou nisso também?
— Aline – chama Ícaro a abraçando — Você é a melhor coisa que já me aconteceu, mas não poderemos ficar juntos. Um dia você entenderá o motivo e espero que compreenda as minhas razões... Espero que seu amor supere... Tudo...
— Não há razão quando se ama... Foi o que você me disse... Ou se esqueceu?
— Eu sinto muito. – Pede Ícaro.
Antes que Aline pudesse responder, ele se afasta indo em direção a Malú que acaba de chegar ao hospital, ainda está vestida com o uniforme da escola. Ele a abraça.
— Não vá – sussurra Malú encostando a cabeça no peito de Ícaro — Como vou conseguir passar por isso sem você?
— Você é mais forte do que parece – argumenta Ícaro. Ele abre seu terno, tirando um livro dele — Espero que goste.
— Espero um dia te reencontrar – comenta Malú triste.
— Isso acontecerá antes do que possa imaginar – comenta Ícaro, dando um beijo na testa de Malú. — Até mocinha
— Até – despede–se Malú vendo Ícaro se afastar. Ela corre até ele e o abraçando mais uma vez — Eu queria que você fosse meu pai, pois eu já o amo como se fosse.
— Eu te amo como se fosse minha filha, desde o primeiro dia – revela Ícaro emocionado. Depois de alguns minutos, ele afasta a jovem e caminha dizendo — Até breve.
***
Anna já não levantava da cama e mal ficava acordada, quando Thiago apareceu. Aquela semana tinha sido a mais alegre para Anna, fazendo Maria Luísa se esquecer da raiva que sentia por ele. Uma noite, Anna pediu que deixasse Thiago ficar a sós com ela, deixando Malú preocupada. Na manhã seguinte, Anna pediu para falar com Aline. Assim que a mulher entrou no quarto, sentiu que seria a despedida.
— Olá, minha irmã – cumprimenta Anna com sorriso fraco. — Vou sentir sua falta, minha grande companheira de vida.
— Olá minha querida irmã – retribui Aline segurando na mão daquela que foi sua amiga por mais de uma década — Eu sentirei falta de você muito mais do que imagina.
— É o fim – confessa Anna tristemente — Mas não posso ir embora sem antes lhe pedir um favor... Prometo que será o último.
— Eu nunca me importei em fazer nada por você. Eu faria tudo de novo, mil vezes – comenta Aline sentindo as lágrimas rolarem pelo seu rosto cansado. Não lembra a última vez que dormiu naquela semana.
— Eu sei, mas esse favor exigirá muito de você – alega Anna, enquanto se ajeita na cama. A morfina não fazia mais efeito àquela altura — Preciso que ajude Thiago a ser o pai da Malú.
— Não... Isso não Anna – recusa Aline inconformada — Ele não merece. Peça–me qualquer coisa, menos ajudar aquele crápula.
— Você não entende agora, mas uma hora... Saberá... Toda a verdade. Eu conversei... Com ele... E sei tudo... Sobre o Ícaro... Sobre ele... Sobre nós...
— O que você sabe? – pergunta Aline curiosa.
— Não poderei contar agora, pois temos companhia – explica Anna olhando para porta. Ela respira fundo e diz em voz alta — Entre Malú, precisamos conversar.
Malú entra no quarto, se perguntando como a mãe sabia que ela estava escutando perto da porta.
— Oi, meu amor – diz Anna tentando se arrumar na cama — Como você está linda.
— Obrigada – murmura Malú — Como à senhora está?
— Feliz – responde Anna com um sorriso fraco — Você sabe... Precisamos conversar.
— Não estou pronta, mamãe – revela Malú chorando.
— Não chore, meu bebê – pede Anna tentando não chorar — Chegou à hora. Você sabe que isso aconteceria... Eu preciso te falar uma coisa.
— Pode falar – diz Malú de cabeça baixa.
— Eu conversei com o Thiago – começa Anna devagar — Ele ficará com a sua guarda. Não me olhe assim... É o melhor a fazer... Sei que um dia entenderá... Ele precisará de você... Tanto quanto você precisará dele...
— Me deixa com a tia Aline, mãe – argumenta Malú, desesperada — Eu nem o conheço.
— Mas vai conhecer... Eu sei que se darão bem... – alega Anna segurando na mão de Malú. — Ele é sua família agora... Ele será um bom pai. Só quero que saiba que eu vou te amar eternamente e sempre estarei com você. Sempre que precisa de mim, estarei ao seu lado. E em nome desse amor, quero que prometa que será boazinha com ele... Promete...?
— Mamãe... Se eu prometer... A senhora vai embora – alega Malú nervosa chorando — Não quero que vá, eu não vou conseguir ser legal com ele.
— Por favor, meu anjo... – pede com a voz fraca — Por favor... Prometa... Prome...
O aparelho dispara ao lado de Malú, sua mãe estava sem batimentos cardíacos. Uma equipe rapidamente entra no quarto, tentando reanima-la, em vão. Anna tinha morrido. Maria Luísa atravessa o hospital atrás de Thiago quando o encontra esmurra seu peito.
— Você matou a minha mãe! Eu te odeio! Odeio você! Você deveria ter morrido! – explode sendo segurada por ele que a abraça.
***
Agora estão na casa de Maria Luísa, em sua sala de estar. Thiago se espreguiça tirando o terno preto e a encara sério.
— Amanhã cedo iremos para Curitiba, já falei com sua avó e ela já conseguiu uma vaga na melhor escola, além de providenciar que seu quarto seja o melhor. – Informa Thiago tentando puxar assunto. Ele sorri levemente apontando para o cabelo de sua filha e confessa — Você me lembra um pouco a sua mãe... Seu corte de cabelo... É o mesmo que ela usava...
— Quando você a abandonou? – interrompe Malú ríspida.
— Desculpa se fiquei longe todos esses anos – pede Thiago de cabeça baixa.
— Foram dezesseis anos, mais precisamente. – Corrige Malú irritada. — A minha vida sem pai, estava ótima. Eu não preciso de você! Faz um favor: Não fala comigo.
Antes que Thiago pudesse argumentar, Malú sobe as escadas correndo. Ela tranca a porta o quarto de sua mãe e olha para o espelho. Realmente lembrava um pouco a sua mãe, mas ao invés de ficar feliz, ela ficou com raiva da imagem. Pega a tesoura guardada dentro da gaveta da penteadeira e encara o espelho mais uma vez.
Ela segura uma mecha de seu cabelo e a corta, enquanto chora. Não queria lembrar–se de sua mãe... Pega mais um maço do seu cabelo e corta com raiva, sem se importar se ficaria desigual... Não queria que Thiago dissesse mais aquilo... Pega sua franja e a corta impiedosamente. Cada vez que lembra o dia que teve, sente mais vontade de cortar seu cabelo, sendo dominada pela raiva. Mecha, após mecha, cai no carpete do quarto, junto com as lágrimas da jovem. Quando terminou, seu cabelo estava muito curto e em alguns pontos apareciam seu coro cabeludo. Ela larga a tesoura na penteadeira e vai para a cama de sua mãe, onde chora até pegar no sono.
***
Malú acorda com batidas em sua porta, ela a abre deixando Aline entrar. Assim que sua tia a vê ficava perplexa.
— O que fez com seu cabelo, Malú? – pergunta Aline irritada. Ela toca na cabeça de Malú — Você estragou seu cabelo, menina. Por que fez isso?
Maria Luísa abre os lábios para responder a sua tia, mas algo está errado. Ela não escuta nada saindo de sua boca. Aline continua a encarando, deixando a jovem mais nervosa. Sua voz não saía a desesperando.
— Malú? Você está bem? – pergunta Aline nervosa, segurando Malú pelos ombros — Responda! Fale alguma coisa! Anda Malú.
Mas nada saía mesmo Maria Luísa tentando. Ela se esforça ao máximo, mas não sai nenhum grunhido, nada. Estava sem voz. Ela entra em pânico, respirando mais ofegante. A jovem começa a ver o quarto rodar cada vez mais. Sente suas forças sumirem e a última coisa que vê é o retrato de sua mãe no criado mudo.
— Thiago! Ajuda! – grita Aline segurando Malú já desfalecida. — A Malú não está bem! Ajude–me! Alguém me ajuda!