Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

CAPÍTULO 02

Saio da minha dolorosa recordação com Kalita falando algo.

— Sabe que na minha casa não é diferente. Minha mãe não faz as malas, mas é como se nunca estivesse lá. Ela nem sequer lembra que tem uma filha.

— Amiga, precisamos dar um rumo em nossas vidas.

— E se nós fôssemos trabalhar e morar sozinhas? — Faz um beicinho.

"Dou risada".

— Essa é a melhor ideia que já teve. Mas, trabalhar onde?

— Bom... Perdi meu trabalho na loja de sapados do seu Adamastor. Tudo porque dei um tapa no ouvido dele. Abusado! Onde já se viu me mandar embora por isso?

— Tadinha! Não fez nada demais.

— Hum! Ele me mandou subir a escada na frente dele, e eu fui. Quando vi, pelo enorme espelho, que o infeliz se abaixou para ver minha bunda, virei-me e acertei seu ouvido.

— Fez o certo, amiga. Bom... Eu também perdi o trabalho e Jacques gastou meu dinheiro com bebidas. O pouco que sobrou, minha mãe, além de me abandonar outra vez, pediu emprestado. Não tive como negar.

— O meu pobre dinheirinho, a minha mãe também gastou. Eu o escondi, mas, mesmo assim, ela achou. E só percebi que havia pego porque... Você sabe.

— Sei, amiga. O que interessa é que sua ideia é das boas.

— Por onde vamos começar? Quer dizer... Somos imigrantes. E... Lembrei! Anúncios e agências de trabalho! — gritou, empolgada, dando-me um susto. Ela até ri.

— Vamos procurar em classificados.

— Então, tá.

— Vamos, vaca! — brinquei.

Juntas saímos porta a fora.

Neste momento dou de cara com o bêbado do Jacques, o meu — infelizmente — padrasto. Maldita seja a minha triste vida! Ele me olha com nojo.

É triste ser sozinha neste mundo e não ter ninguém, nem proteção alguma. Estar ferrada é pouco. Temo a surra que esse homem possa me dar.

Observando Kalita, noto ela o encarando de baixo a cima. Gostaria de ter essa coragem.

Tento passar pelo bebum, mas ele segura meu braço com força, esmagando minha carne. Eu gemo de dor e seu sorriso é de satisfação.

— Vai aonde, sua puta?

Quase fiquei embriagada com o bafo de álcool que saiu de sua boca, que cuspiu ao falar. O que foi bem nojento. Pelo hálito forte, desconfio que o infeliz esteja bebendo em um posto de gasolina.

Olho firmemente para ele, sabendo que não vou sair dessa ilesa, tomo coragem e falo sem medo:

— Para a puta que te pariu, ver a senhora, sua mãe.

Eu levo uma bofetada, como sempre, e Kalita me dá a mão para que eu consiga ficar em pé novamente, já que caí devido à violência do tapa.

Ele ri debochado e minha amiga estreita os olhos em sua direção. Temo que ela abra a boca e piore as coisas. Quando fala, desafia tudo, sem medo.

Presto atenção no deplorável covarde antes que ele me bata novamente.

— Vá, vagabunda, ver se ganha algum dinheiro! E não volte tão cedo! Hoje vou trazer umas putas aqui, em casa, e irei fazer uma festinha, já que sua mamãezinha foi embora outra vez.

Saio chorando, seco as lágrimas e pego meu skate e minha mochila. Como nunca sei quando poderei dormir em casa, obrigo-me a sempre deixar algumas coisas dentro dela, para levar comigo.

Lembro-me o quanto é perigoso dormir nas ruas frias de Roma e de como sinto tanto medo quando a noite cai e eu tenho que ficar perambulando por aí.

Como preciso de um milagre! Não importa de qual senhor será, só sei que preciso de mudanças na minha vida. E logo, senão estarei perdida.

Kalita abre minha mochila e dá uma espiada nela. Depois me olha rapidamente. Sabendo o que ela viu, só suspiro.

— Sabe que isso é encrenca, né?

— Sei que poderá ser uma possível encrenca. Porém, vivo encrencada mesmo. — Dou de ombros. — Só o fato de morar com um padrasto bêbado e violento já é uma baita encrenca.

Ela se cala e nós seguimos para o centro de Roma.

O vento sopra forte contra meu rosto e nós começamos a nos mover lentamente. Aos poucos vou deixando as rodas do meu skate ganharem velocidade e passo livremente entre os carros, desejando voltar para a minha terra, para o meu país. É claro que levaria minha amiga junto.

Vejo ela e Yan ficarem para trás. Eles estão rindo e conversando.

O vento, embora frio, dá uma sensação de liberdade.

Observo o trânsito caótico da cidade grande. Roma é linda, mas até sua deslumbrante e rica arquitetura histórica não escapa do fluxo intenso de carros. Passo entre eles com cuidado, para não os arranhar, ou estaria bem ferrada, pois são luxuosos, caros, e eu estou desempregada. E, mesmo que estivesse trabalhando, teria que trabalhar a vida todinha para pagar a pintura de um desses.

Recordo-me que perdi meu trabalho na casa de uma boa família por causa de Jacques, que aparecia bêbado lá, pedindo-me dinheiro.

Como a maioria das pessoas é contra skate aqui, olham-me como se eu parecesse um E.T. “O E.T. Micaela Yeva”. Quase dou risada sozinha. Com certeza acabaria sendo chamada de louca.

Os italianos têm o sangue quente, e na minha terra não é muito diferente. Entretanto, lá não me olhavam torto. Bom... Como ando de skate e sou imigrante, as pessoas não me enxergam com bons olhos.

Nossa! Estou sofrendo muito mais aqui, na Itália, do que estava na Rússia. Vida triste esta minha! Espero que as coisas comecem a melhorar. Droga de vida! Meu lugar não é nesse país, morando com aquele свинья пьяна (porco bêbado).

Não suporto mais. Cadê minha mãe? Será que está bem? Sinto saudade dela, além de estar triste e preocupada com ela. Quando a coisa fica feia, some.

Desde que vim para este lugar, a desgraça só tem piorado. Primeiro tive que sair do meu país, do convívio com meus amigos, sem uma explicação. E não bastando, perdi o emprego. Agora não consigo mais pagar a faculdade que mal iniciei.

Terei que dizer adeus ao sonho de ser uma repórter investigativa que investigaria grandes crimes e tudo mais, com um futuro brilhante. Jamais o terei. Também tenho que me despedir de uma futura vida mais tranquila para mim e minha mãe. Não penso em dinheiro, e sim em uma realidade onde ela possa desempenhar seu papel de genitora e que eu não precise vê-la sendo espancada; onde eu também não vou ser agredida. Uma vida sem um covarde e ao lado dela já me deixaria feliz.

A saudade machuca e fica mais forte. “Merda” resume minha história agora.

Bom... Como uma boa ex futura repórter, de longe, meus ouvidos atentos escutam um chorinho de uma criança. Ando mais rápido na direção do amedrontado pranto, que fica mais alto à medida que avanço. Meu pé esquerdo vai para o asfalto, dando velocidade ao skate, e eu ando o mais rápido que posso. Um dia destes acabarei me matando, como mamãe fala. Até que não seria uma má ideia. Morrer me traria alívio para tanta dor e para tanta agonia da vida infame que estou levando. E como se não bastasse eu sofrer, minha única e melhor amiga, minha irmã do coração, também está passando por maus bocados. A mãe dela usa drogas e sai com vários homens. Na verdade, nós duas conseguiríamos viver no inferno. Acho que lá estaríamos melhor do que nas nossas casas.

Se o diabo encontrar Jacques, vai rejeitá-lo. O motivo? Se esse homem falar no inferno, causará uma explosão com seu hálito de quem está sempre bêbado. O pior é que eu vou para lá. Não quero correr o risco de encontrar meu padrasto carrasco explodindo tudo com o bafo dele. É esse o infeliz com quem minha mãe resolveu me deixar.

Maldito sejam os dezoito anos que nunca chegam! Não sendo suficiente tantos problemas, ainda tenho que aturar Ygor. O maldito não me dá folga. Eu lá tenho cara de quem quer um crápula desses? E ele ainda tem a mesma idade que eu. Fala sério!

— Porca miserável! — proferi alto ao ver uma linda boneca chorando, perdida.

Que stronzo deixou uma bambina no meio da rua? Que filho de uma égua!

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.