2. JÚLIO MUALI
Em meio às vastas terras da fazenda 'Pedaço do Céu', Júlio Muali, um fazendeiro imponente e determinado, enfrentava desafios que iam além das planícies e do horizonte. Negro, másculo e resoluto, Júlio havia assumido a responsabilidade de cuidar de suas irmãs gêmeas, Emma e Bella, após a trágica morte de seu pai. Além do amor fraternal, o legado deixado por seus progenitores incluía uma dívida colossal, uma sombra implacável que crescia a cada ano.
A hipoteca da casa estava vencida, e o banco havia estendido um prazo limitado para Júlio quitar a dívida. Contudo, a realidade era cruel: os bancos se recusavam a oferecer mais empréstimos, e as dívidas continuavam a se acumular, tornando as dificuldades cada vez mais insuperáveis. Determinado a proteger suas irmãs e manter a honra da família, Júlio decidiu entrar em um rodeio, onde o prêmio em dinheiro poderia salvar a fazenda e proporcionar um futuro mais seguro.
Júlio sabia que essa era uma aposta arriscada, mas não via outra saída. Cada dia que passava, a pressão aumentava, e ele sentia o peso da responsabilidade em seus ombros. Suas irmãs confiavam nele, e ele não podia decepcioná-las. O rodeio era sua chance de mudar o destino da família, de transformar desespero em esperança. E, com isso em mente, ele se preparava para enfrentar o desafio, pronto para lutar com todas as suas forças para salvar o 'Pedaço do Céu'.
Naquela noite, o destino preparava algo imprevisível para Júlio. Ele estava prestes a quebrar o recorde de seu oponente no rodeio, concentrado no touro à sua frente, quando algo inesperado aconteceu. No meio da multidão, a figura de sua irmã Emma surgiu à distância, como um lampejo.
Júlio piscou, desacreditando no que seus olhos viam. "Será que é ela?", pensou por um segundo, mas isso foi suficiente para que sua concentração fosse quebrada. Quando se deu conta, já era tarde demais. O touro, feroz e impiedoso, lançou-o ao chão com brutalidade. A dor na perna veio como um golpe seco, fazendo-o gemer. Sentiu o impacto do chão frio, enquanto o mundo ao seu redor parecia rodopiar.
— Júlio! — gritou Joaquim, correndo em sua direção, acompanhado por outros homens que também se apressavam para tirá-lo dali.
Júlio, com o rosto contorcido de dor, sentiu mãos fortes o levantando. Mas algo mais o inquietava além da lesão. Com a voz entrecortada, ele segurou o braço de Joaquim.
— Eu vi a Emma... — disse ofegante. — Ela estava ali, perdida no meio da multidão.
Joaquim parou por um segundo e soltou uma gargalhada incrédulo.
— Emma? — ele balançou a cabeça, descrente. — Você só pode estar delirando! Como a Emma ia chegar aqui? Você sabe que ela está longe, não tá?
A risada de Joaquim ecoou como um insulto para Júlio, que cerrou os punhos com força e, ignorando a dor na perna, levantou-se abruptamente. Mancar era difícil, mas sua determinação era mais forte que o sofrimento físico.
— Júlio, espera! — gritou Joaquim, correndo atrás dele. — Desculpa, eu achei que você estava brincando. Sério, vamos cuidar dessa sua perna.
Júlio mal olhou para o amigo. A raiva estampada em seu rosto estava clara como o céu estrelado sobre a serra gaúcha.
— Quando foi que brinquei com algo sobre as minhas irmãs, Joaquim? — disse, com a voz carregada de seriedade. — Ela está aqui, e eu vou encontrá-la, quer você acredite ou não.
Joaquim parou, sentindo o peso das palavras do amigo. Não era apenas a dor física que Júlio enfrentava; era o medo de algo acontecer à irmã. Vendo a determinação de Júlio, ele suspirou e correu ao seu lado.
— Tá bom, vamos juntos então. Se ela realmente tá aqui, a gente vai achar.
A cada passo, Júlio sentia a dor latejando em sua perna, mas ele não se deixava abater. A multidão ao redor, o som dos gritos e da música do rodeio, tudo parecia distante. Havia apenas um pensamento em sua mente: encontrar Emma. O destino, que antes parecia tão focado em lhe tirar a vitória do rodeio, agora colocava diante de Júlio um desafio muito mais pessoal e intenso.
Júlio continuava a avançar, ignorando a dor que latejava em sua perna com cada passo. Seus olhos estavam cravados nas duas figuras à frente: sua irmã Emma e uma mulher desconhecida que conversava com ela. "O que Emma faz aqui?", ele pensava, acelerando o máximo que seu corpo permitia. Ele sabia que aquele não era lugar para uma menina de 9 anos, especialmente em meio ao caos e à agitação do rodeio.
À medida que se aproximava, cada passo parecia uma batalha contra a dor, mas Júlio não vacilava. A segurança de Emma era tudo o que importava. Quando finalmente chegou perto, pôde observar a mulher de perto. Ela parecia calma, quase tranquila demais, mas isso não aliviava a tensão que dominava o semblante de Júlio.
Respirando fundo para controlar as emoções que ameaçavam transbordar, ele chamou por sua irmã com uma voz firme e séria:
— Emma! O que faz aqui? — Sua voz soou mais dura do que ele pretendia, mas a preocupação falava mais alto.
Nesse instante, a mulher ao lado de Emma, se virou lentamente na direção de Júlio. Seus olhares se encontraram, e algo indescritível aconteceu. Júlio percebeu que ela era a mulher em que ele trombara mais cedo.
Um arrepio percorreu o corpo de Linda Rocatti ao sentir os olhos de Júlio percorrer a sua pessoa. Havia uma força na presença de Júlio, uma aura intensa e imponente que a fez sentir o coração disparar. Ela não estava preparada para aquele encontro.
O ar parecia carregado de tensão, e Emma, confusa, olhava de um para o outro, sem compreender a profundidade do que estava acontecendo. Percebia que algo não estava certo, mas não sabia exatamente o quê. Júlio manteve-se sério, aguardando uma explicação, e Linda, ainda impactada pela intensidade do momento, tentava juntar as palavras.