2. Abandonada
Daniel saiu de cima de Lana e ela virou-se para o outro lado, de costas para ele e cobriu-se. Ele se sentou e permaneceu absorto por um tempo até deitar-se e abraçá-la. Ela se afastou dele, chorando.
— O que foi? Machuquei você?
— Não. — Ela respondeu.
— Se arrependeu?
— Não. O problema não é você. Sou eu. — Disse ela, sentando-se.
— Pode confiar em mim. Sabe disso. — Falou ele, sentando-se e tocando o ombro dela.
— Quando disse que você não foi o primeiro, não menti. Queria ficar com você, de verdade. Acredite? Mas é sempre assim. Não consigo sentir prazer. Quer dizer… Consigo, mas é raro. Digamos que sinto quando estou flertando apenas, mas não como agora… Entende? Me sinto culpada, suja. — Falou ela.
— Quem foi? O seu pai? — Disse Daniel sacando tudo. Aquele comportamento ora luxurioso, ora esquivo, era comum em vítimas de abuso sexual, que tentavam superar seu trauma. Uma parte dela queria acreditar que o ato sexual poderia ser bom se não fosse forçado, mas outra parte, insistia em se lembrar da violência que sofrera e, isso a travava na hora, impedindo-a de soltar.
— Não. Não importa quem foi. Eu não posso provar nada.— Falou ela chorando e abraçou suas pernas.
— Compreendo. Uma parte sua quer superar o que houve, mas outra, não deixa e te faz lembrar sempre. Não é assim? — Falou Daniel abraçando-a.
— Sim, mais ou menos. — Ela respondeu.
— E essa pessoa que fez isso continua por perto? — Perguntou Daniel suspeitando de outra pessoa.
— Infelizmente, sim. — Lana respondeu.
— Aquele desgraçado ainda faz isso? — Falou Daniel, revoltado.
— Não. Foi só… Não. — Lana respondeu.
— Espere só até eu falar com o Abel e nós dois vamos matar esse infeliz! Eu juro! — Falou Daniel.
— Não! Me prometa que nunca contará isso a ninguém. Por favor? Ninguém acreditaria em mim! — Falou Lana.
— Mas isso não pode ficar assim! Ele tem de pagar por isso! — Falou Daniel.
— E ele vai pagar, na hora certa. Acredite? — Falou Lana, com ódio.
— Me perdoe? Se soubesse não teria insistido. — Falou Daniel abaixando a cabeça, chateado.
— Você não sabia. — Falou Lana.
— Não fica brava comigo, tá? — Ele pegou a mão dela. — Agora que sei, não vou insistir mais. Juro que quando disser não, paro no mesmo instante.
— Jura? — Perguntou Lana.
— Juro. — Respondeu ele. — Vou até para o meu saco de dormir para provar que estou falando sério.
— Não. Fica. Por favor? — Pediu ela, o abraçando.
† † †
O arlequim parou de assobiar e quando passava por um corredor foi acertado em cheio por uma pancada em sua cabeça e caiu, inconsciente, no chão. Anzhelika se aproximou dele, respirando de forma ofegante. Quem era a pessoa por trás da máscara? Ela aproximou sua mão do rosto dele, mas, no último instante, desistiu. Não importava quem era. Ela precisava fugir e, rápido. Anzhelika soltou o pedaço de madeira e correu.
Quando ele retomou a consciência, sentiu uma pontada em sua cabeça.
— Ah, vadia! — Falou, levantando-se e puxou sua máscara, passando a mão em sua cabeleira ruiva. Pegou o celular em seu bolso e ligou para Talya. — Onde você está? Aquela vaca me acertou na cabeça. Eu não faço a mínima ideia! Tô saindo do colégio! Vê se não demora? Droga. — Abel desligou e saiu do colégio.
Poucos minutos depois, Talya e Veronika vieram ao seu encontro.
— Você foi descuidado! Ela poderia ter matado você, se quisesse. — Falou Veronika.
— Gente? Estava pensando e… Acho que é melhor pararmos. Já fomos longe demais. — Falou Talya.
— Onde será que a Anzhelika se meteu? — Falou Veronika e percebeu que a cabeça de Abel estava sangrando. — Nossa! Foi feio! Melhor voltar para o acampamento e dar um jeito nisso.
— Sim. — Disse Abel tocando em sua ferida.
— Não podemos ir embora sem encontrar a Anzhelika! — Falou Talya.
— Vamos voltar e procurá-la com o carro e, com ajuda da Lana e do Daniel. Ok? — Falou Veronika.
— Então, vamos logo! Estamos perdendo tempo! — Disse Talya, ansiosa.
Eles voltaram para o acampamento e enquanto Talya fazia um curativo na cabeça do irmão, Veronika foi até a barraca de Lana e puxou o zíper.
— Ei, pombinhos? Acordem! Anzhelika sumiu! — Falou Veronika.
— O quê? — Disse Lana abrindo os olhos, confusa.
— Como assim? Anzhelika sumiu? O que vocês aprontaram? — Perguntou Daniel, desconfiado.
— Nada. O que é isso? Até parece que a gente aprontaria alguma coisa. Eu, hein? — Veronika se fez de ofendida e se afastou.
Lana e Daniel se vestiram e saíram da barraca.
Todos procuraram por Anzhelika, chamando por ela, mas amanheceu e nada dela aparecer. Eles voltaram para o acampamento, exaustos.
— Que merda vocês fizeram… — Disse Daniel, bravo.
— Foi só um trote. — Falou Abel.
— Dessa vez, passaram dos limites. — Falou Lana.
— Droga! Ela deve ter se perdido! — Falou Talya, preocupada. — Se alguma coisa acontecer a ela, não vou me perdoar nunca.
— A gente devia chamar a polícia! — Falou Lana.
— E dizer o quê? Não! Ficou maluca? — Disse Abel.
— Eu vou voltar a procurar por ela. — Disse Daniel pegando a chave do carro do avô de Abel.
— Vou com você! — Falou Talya levantando-se.
— Eu vou junto. — Disse Veronika.
— Vou ficar… Talvez, ela volte. — Falou Lana.
— É melhor mesmo. — Disse Daniel olhando torto para Abel.
Assim que os outros se foram, Abel deitou-se em sua rede e fechou os olhos.
Lana acendeu um cigarro. Ela sempre fumava quando ficava nervosa. Esperava que encontrassem Anzhelika sã e salva, ou, então, que ela voltasse ao acampamento.
† † †
Daniel dirigia pelas ruas de Kadykchan quando Talya gritou, o fazendo frear bruscamente.
— Ali! Anzhelika foi por ali! Eu vi!
— Onde? — Veronika desceu do carro.
— Ali! Eu a vi indo naquela direção! — Talya apontou e desceu do carro.
— Tem certeza que era mesmo ela? — Perguntou Daniel descendo do carro.
Veronika e Talya foram correndo na frente e entraram na mata, avistando Anzhelika, parada de costas, no topo de um barranco. Gritaram por ela. Anzhelika se virou e quando as viu, se assustou, porque achava que elas estavam mortas. Quis correr, mas escorregou em umas pedrinhas e caiu, rolando rapidamente. Ao fim de sua queda, bateu a cabeça no tronco de uma árvore e perdeu a consciência.
Daniel finalmente alcançou as garotas e as encontrou gritando e chorando.
— O que aconteceu? — Ele perguntou.
— Anzhelika… Ela… — Talya só conseguiu apontar para o lugar de onde ela havia caído.
Daniel se aproximou e quando viu Anzhelika inconsciente, recuou.
— Meu deus! — Disse Daniel.
Anzhelika despertou em um hospital, confusa, e não reconheceu ninguém. Ficou repetindo o tempo todo que o Tordo estava vindo atrás dela e que precisava fugir. Os enfermeiros tentaram acalmá-la e ela ficou agressiva. Precisou ser sedada.
Talya, Abel e os outros combinaram de contar que Anzhelika não se sentira a vontade e teria tentado voltar sozinha para a casa e se perdera. Uma história absurda, mas que não seria contestada se todos a confirmassem. Pelo menos, não, enquanto Anzhelika estivesse confusa, e quando ela acordasse, Talya ou Veronika a convenceria a ficar de bico calado.
Quase uma semana se passou e Anzhelika não apresentou melhoras. Continuou aterrorizada, acreditando que um arlequim viria atrás dela. Não conseguia dormir sem ter pesadelos horríveis e quando estava acordada, tinha alucinações. Quando via Talya e Veronika, ficava assustada, pensando que elas eram fantasmas.
No meio de uma dessas crises, ela atacou uma enfermeira e tentou fugir do hospital. Seus pais tiveram de concordar com o médico e mandarem-na para um hospital psiquiátrico, na capital.
Talya se sentiu culpada e aceitou o convite de uma tia, indo morar com ela, deixando seu irmão e seu avô. Ela sabia que era culpada, mas não conseguia olhar na cara de Abel, já, que a ideia partira dele.
† † †
Anzhelika despertou e viu uma garota, com olhos e cabelos castanhos claros, afagando sua cabeça e cantando uma canção para ela.
— Quem é você? E onde estou? — Anzhelika perguntou, não reconhecendo nem aquela garota nem aquele quarto.
— Sou Anastasiya Dubrov, mas pode me chamar de Stacie. — Respondeu a garota. — Você está no lugar onde todas as pessoas incompreendidas pela sociedade são enviadas. Mas não se preocupe? Aqui não é ruim como nos filmes. Temos comida e um teto e, o mais importante, podemos ser nós mesmas. Vai se sentir em casa, aqui.
— Mas o que estou fazendo aqui? Eu não sou louca! — Falou Anzhelika sentando-se na cama. — Sem ofensas…
Anastasiya riu.
— Sabia que não precisa comer capim, queimar uma casa ou matar alguém para ser considerado maluco? — Disse Anastasiya. — Basta amar ou temer demais algo. No meu caso, amo demais algo. E você?
— O que você ama? — Perguntou Anastasiya, curiosa.
— Bonecas! Sou fascinada por elas. Não importa o tipo, podem ser de plástico, borracha, pano ou porcelana. Amo todas e meu sonho é criar a boneca mais perfeita que o mundo já viu. Ousado? Eu sei. — Falou Anastasiya.
— O seu nome… Dubrov… É por isso que tem esse nome? Te chamam assim porque te comparam com o maluco do Yvan Dubrov? — Perguntou Anastasiya.
— Acontece que… Esse “maluco” do Yvan é meu tio. — Falou Anastasiya sem se ofender.
Anzhelika ficou muda.
— O meu tio não é maluco! É apenas um gênio incompreendido, e um homem com um grande coração, que só queria de volta a filha. Então, ele tentou revivê-la, mas nunca machucou ninguém. Quando perceberam meu fascínio por bonecas, meus pais ficaram com medo de eu surtar como ele e me mandaram para cá. Mas nunca machuquei ninguém, juro. — Falou Anastasiya. — Agora que meu tio está livre, prometeu me tirar daqui, e nós vamos morar juntos.
— Talvez, eu esteja mais segura aqui que lá fora. — Falou Anzhelika. — Acho que o Tordo não pode me pegar aqui.
— Tordo? O pássaro? — Anastasiya riu.
— Não, um arlequim com esse nome. — Falou Anzhelika.
— É um nome estranho para um arlequim. — Disse Anastasiya.
— Tem certeza que é seguro? — Perguntou Anzhelika.
— Sim, eu tenho. Nenhum arlequim entra aqui. Confie em mim?— Falou Anastasiya.
Anzhelika e Anastasiya se tornaram amigas, e Anastasiya apresentou Merverine Skrlová a ela. Merverine era uma garota linda, de pele branca como porcelana, olhos azuis e cabelos louros platinados. Ela sofria com esquizofrenia catatônica, e passava a maior parte do tempo, parada, imóvel. Era Anastasiya quem cuidava dela, penteava seus cabelos e a maquiava. Para Anastasiya, ela era como uma boneca humana, ao menos, era o que Anzhelika achava.
Anastasiya estava sempre agarrada a um ursinho de pelúcia que, às vezes, dividia com Merverine. Ela quase não falava quando estava consciente, mas podia abraçar, sorrir ou mover a cabeça. E, uma vez, ela abraçou Anzhelika, o que significava que gostava dela.
Anzhelika começou a desenhar, não com lápis – os enfermeiros não permitiam porque eles tinham pontas e era perigoso Anzhelika se machucar ou machucar alguém durante um surto –, mas com giz de cera. Ela fazia desenhos lindos.
Anastasiya costurava, uma das enfermeiras gostava muito dela e sempre dava um jeito de satisfazer algumas vontades dela, por exemplo, arranjando agulha, tecidos e linhas para ela. Anastasiya escondia a agulha e as linhas dentro do ursinho de Merverine.
Yvan vinha visitar a sobrinha vez ou outra e sempre lhe trazia uma boneca de presente. Anzhelika o viu duas vezes e ele lhe pareceu calmo e inteligente, embora, falasse rápido. Bem, louco ou não, ele visitava Anastasiya mais vezes que os pais dela, e era amigável com Merverine e ela.
Anastasiya contou a Anzhelika que seu tio a estava ensinando como dar vida a uma boneca; segundo ela, ele estava estudando outros métodos que não envolvessem o rapto de um cadáver.
Isso motivou Anastasiya a começar sua própria experiência. Primeiro, ela criou uma boneca de pano, igual à Merverine. Depois, criou um saquinho de veludo, contendo algumas ervas que ela conseguiu com a ajuda da enfermeira, uma mecha do cabelo de Merverine e algumas gotas de seu sangue.
— Mas ela não deveria estar morta para funcionar? — Anzhelika perguntou a Anastasiya. — Ou você pretende manipulá-la como uma boneca de vodu?
— Não sei. Meu tio não explicou a segunda parte, nem disse se ela tinha de estar morta ou viva, mas, de qualquer forma… Merverine é uma morta viva. — Falou Anastasiya.
— Contanto que você não a machuque… — Disse Anzhelika.
— Eu nunca faria isso. — Falou Anastasiya. — Merverine é como uma irmã para mim. Se um dia, sair daqui, vou levá-la comigo.
— E os pais dela? — Anzhelika perguntou.
— Eles a abandonaram aqui. Pelo que a Lena me contou, parece que a Merverine matou o irmão caçula porque o confundiu com um monstro. Ela confunde a realidade com a fantasia de seus sonhos, muitas vezes… O ursinho que ela carrega era do irmãozinho dela. Ela tentou se matar duas vezes quando lembrou o que fez. Coitada! Sei que o que ela fez foi horrível, mas ela é doente… Mais do que você ou eu. — Falou Anastasiya.
Anzhelika abaixou a cabeça e soltou um suspiro. Ainda não entendia porque estava ali se era uma vítima, mas quanto mais o tempo passava, mais se acostumava àquele lugar e sentia-se em casa. Todos, ali, eram sua família, desde os médicos e enfermeiros que cuidavam dela aos outros pacientes. Não importava se alguns eram doidos demais, de certa forma, compreendia-os, porque todos eram reféns do medo, e muitos, foram esquecidos pelos amigos e pela própria família como ela.
Seis longos meses, trancafiada naquele lugar e Anzhelika não recebera sequer um cartão de seus pais. Quando os outros iam até a sala de visitas, Anzhelika ficava parada do outro lado da janela de vidro, apenas observando mães, pais, tios, avós e irmãos abraçando e beijando seus parentes. Ela ficava triste porque sempre alimentava a esperança de que alguém viria vê-la… Ninguém nunca viera.
Certa manhã, Anzhelika viu Yvan conversando com Anastasiya e Merverine – mesmo que Merverine não respondesse nem mexesse a cabeça – e estranhou quando Anastasiya saiu por um minuto e Yvan sussurrou algo no ouvido de Merverine. Quando Anastasiya voltou com um livro velho e entregou a Yvan, ele disfarçou rápido. Guardou o livro no bolso interno de seu sobretudo e ficou sério.
À noite, Merverine teve uma crise, arrancou a tela de proteção da janela, quebrou o vidro, batendo os braços e as mãos contra ele, e pegou um caco grande e cortou a garganta. Os enfermeiros ficaram desesperados porque nunca tinham visto aquilo acontecer antes naquele hospital e, também, Merverine costumava ser tão calma, na maioria das vezes, e mesmo, em suas crises nervosas, nunca fizera algo semelhante.
Anzhelika e Anastasiya quiseram acompanhar Merverine até a enfermaria, mas os enfermeiros não permitiram e as levaram de volta até seus quartos.
Três dias se passaram e tanto Anzhelika quanto Anastasiya tiveram certeza que Merverine estava morta porque os enfermeiros não respondiam quando elas perguntavam por ela. Para piorar Anastasiya perdeu sua boneca e o urso de Merverine e ficou muito nervosa. Agrediu uma paciente que riu dela enquanto procurava pelos brinquedos e foi para a solitária. Sim, como numa prisão, ali tinha uma solitária que basicamente era um quarto pequeno e escuro. Não era tão ruim. Anzhelika estivera lá uma vez quando ofendera uma enfermeira chata que tentou forçá-la a sair de seu quarto para ir ao pátio, se juntar aos outros. Anzhelika gostara da solitária. Achara calma, segura e tranquila. Mas claro que não disse nada. A ideia era que fosse um castigo, e se ela não fingisse que detestara, os enfermeiros seriam mais criativos na próxima.
Quando Anastasiya deixou a solitária e voltou para seu quarto, teve uma surpresa. Foi correndo até o quarto de Anzhelika e insistiu para que ela fosse com ela. Anzhelika foi. Anastasiya apontou para a cama, feliz, e disse:
— Olhe só! Merverine está viva!
Anastasiya foi até onde Merverine estava e abraçou forte. Anzhelika encarou Anastasiya com pena e deixou o quarto de cabeça baixa. Aquela foi a última vez que as duas se viram no hospital. Anzhelika ficou sabendo que Anastasiya foi embora com os pais, e, algum tempo depois, foi a vez de Anzhelika ir também.