Capítulo 1. Maioridade
O tempo foi passando, a menina crescendo e aprendendo que não podia esperar nada de bom de seus pais. Se não fossem as autoridades, ela não estudaria e se não fosse à escola, não tomaria as vacinas e nem iria ao médico. Na escola, ela comia as únicas refeições do dia, pois o colégio em que estudava era integral. Café da manhã, almoço e lanche da tarde eram garantidos, mas os fins de semana eram de jejum obrigatório ou os restos de comida que seus pais deixavam no prato.
Desde pequenina, assim que conseguiu empunhar uma vassoura, era dela a limpeza da casa. Também fazia as refeições e por conta de tantos afazeres, dificilmente dormia antes da meia noite. Depois que completou o ensino médio, as coisas pioraram, pois ficava mais tempo em casa e não tinha o que comer. Era raro o dia em que não levasse uma surra, por esses motivos, estava aquém do peso normal para sua altura e seu corpo possui muitas cicatrizes.
Sua mãe lhe arrumou um emprego de meio expediente na mercearia, mas ficava com todo seu salário. Seu empregador, vendo sua magreza, sempre lhe dava biscoitos, chocolates e sanduíches com refresco, assim ela não morreu de fome por mais um ano, depois da escola. As outras crianças nem chegavam perto dela e os mais agressivos, lhe tocavam bolas de papel e lixo. Nunca soube o que era um amigo, namorar então, nem pensar.
Todos os anos, dois dias antes de seu aniversário, sua mãe decretou um jejum. Dizia que era em homenagem ao sofrimento dela no fatídico dia de seu nascimento. Só Betânia jejuava e ao findar os dois dias, a menina estava exausta e mal se mantinha de pé. Era o único dia que sua mãe permitia que comece algo no café da manhã, normalmente era um ovo e uma caneca de café com leite. Só para que ela tivesse energia para cuidar da casa e das refeições.
Betânia já tinha percebido que seus pais a tratavam diferente dos outros pais, que mesmo brigando e castigando seus filhos, não lhes deixavam faltar nada, inclusive abraços e beijos. Não entendia o comportamento dos pais para com ela e parou de questioná-los, desde o dia que quis saber porque não gostavam dela e levou um murro de seu pai, tão forte, que lhe arrancou os dentes de leite.
Para não esmorecer, Betânia criava mil histórias em sua mente. O bairro em que morava, era cercado de montanhas e para visitar outro bairro, ou mesmo quando ia com os pais a algum lugar, por não poder ficar só em casa, passavam por um vale entre elas. Ela adorava a floresta que via passar pela janela do veículo. Imaginava-se entrando pela mata adentro e achando um lugar secreto, com casas simples, pessoas simples e simpáticas, onde cultivam seu próprio alimento e todos dividiam tudo. Queria poder correr desenfreada por dentro da mata, assustar os bichinhos e tomar banho de rio. Que tal então não precisar de roupas? Não, isso não seria certo não.
Voltando ao tempo real, este é o dia de mais um aniversário. Como nos outros, Betânia está jejuando a quase três dias. Na mercearia, o patrão lhe deu um ovo de presente, queria lhe dar uma dúzia inteira, mas ela só aceitou um. Sabia que daria confusão se chegasse em casa com um presente desses. Um ovo só daria para esconder. Foi isso que fez e quando terminou seus afazeres e o relógios quase completava a meia-noite, ela verificou se os pais estavam dormindo e pôs seu ovo para cozinhar em uma panelinha com água. Fez o mínimo de barulho possível e quando deu o tempo, tirou o ovo da panela e esperou esfriar. Quando bateu e quebrou a casca descascando o ovo, sua mãe apareceu na cozinha.
-Mas o que está acontecendo aqui? Acaso você está comendo escondido? Deixe-me ver. - perguntou gritando.
-É só um ovo - mostrei a ela o ovo sobre a pia.
-Sua ladra, além de quebrar o jejum, ainda me rouba um ovo?
K
- Não mamãe, foi o patrão que deu.
-Pior ainda sua vagabunda, anda se vendendo por um ovo? Espera aí que vou te ensinar.
Essa mãe enlouquecida olhou à sua volta e encontrou um fio de ferro de passar roupa, que fora jogado pelo marido sobre a bancada do armário e sem dó nem piedade, surrou a jovem. Surrava e falava:
-Vagabunda, eu devia ter te matado quando te encontrei, quis me vingar e só trouxe desgosto pra mim mesma. Você merecia ter morrido junto com a miserável de sua mãe e fazer seu pai sofrer bastante. Só um ovo né?
Cansada de tanto bater, parou e foi até o fogão, colocou novamente o ovo na panelinha pra esquentar. A jovem que completava dezoito anos, se encolhia no chão, toda lanhada e sangrando, cheia de dor. A mulher vendo que a água fervia, tirou o ovo da água com uma colher, se abaixou na frente da jovem e mandou-a abrir a boca.
-O que vai fazer senhora?- não a chamaria mais de mãe, decidiu.
- Você quer ovo? Ovo você vai comer!
Apertou as bochechas dela para que abrisse a boca e mesmo a menina lutando, conseguiu pôr o ovo em sua boca. Tapou com a mão para que ela não expelisse o ovo.
-Mastiga infeliz, mastiga e engole, anda…
A jovem esperneava e tentava se livrar da mulher, mas não conseguia.
-Anda logo, mastiga e engole ou vou te fazer comer outro.
Com muito sacrifício, ela mastigou e engoliu, sentindo sua língua, gengivas, garganta e toda sua traqueia queimarem. A mulher a soltou e ela puxou o ar pela boca, tentando aliviar a dor, mas não adiantou.
De repente ela começou a sentir outra dor que consumia todo seu corpo, a mulher olhava para ela e gargalhava. A dor era terrível e seus ossos começaram a se quebrar. Aquela que se dizia sua mãe, mas não era, começou a se assustar, mas não saiu de perto, curiosa com o que estava acontecendo com a jovem.
Betânia sentiu seu corpo se transformando e não entendeu o que estava acontecendo. Quando tudo terminou, não era mais uma jovem magrela, era uma loba de pelos dourados, embora sujos de sangue e com falhas nos pêlos, nas áreas em que fora ferida. A mulher pegou a panelinha do ovo, vazia, para tentar se proteger do imenso animal que via em sua frente, mas não conseguiu, num salto, a loba pulou e fincou as presas em seu pescoço, arrancando um pedaço. A mulher caiu no chão sangrando, sem a sua jugular e a loba correu, pulando pela janela.