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Quatro

O jantar se iniciou de maneira silenciosa. Minhas damas trataram de nos servir no lugar das serventes do palácio para poder dar mais descrição ao encontro, após deixar nossos pratos na mesa, ambas saíram rapidamente. Provavelmente Moho que havia tomado essa iniciativa, pois Anika era a pessoa mais curiosa da fase da terra.

As comidas de Chogo eram em sua maioria, especiarias do mar. Eles exploravam bastante cereais também, pois era a única coisa que sua terra árida conseguia reproduzir. Os demais alimentos como frutas e verduras cresciam em situações não muito boas e em sua maioria não eram comestíveis. A terra do império era rica para a produção de pedras de jade, mas comidas suculentas morriam facilmente ali e por isso eram trazidas de Gogh.

Naquele jantar, por exemplo, tínhamos uma farta mesa de mariscos e um delicioso cheiro de molho de camarão se alastrando por todo ambiente. O arroz, que era um dos mais produzidos nas cidades de Chogo, tinha sido feito com diversos legumes para colorir o prato e as frutas exportadas do Selo que já estavam cortadas para depois da comida. O morango, que era nossa fruta mais querida, estava aos montes em minha frente.

— Parece que alguém se empolgou na cozinha. — Brincou o imperador ao abrir a primeira bandeja e encontrar a merluza fatiada com cebolas e a alface decorando aquele prato. Deixei um riso escapar e ousei abrir a bandeja que estava próxima de mim. — Ele se empolgou mesmo.

Concluiu ele quando a sopa de macarrão cheia de verduras surgiu ali

— Parece que o jantar para dois pode alimentar uma família. — Brinquei e ele concordou. — Bom vamos comer antes que a comida nos coma.

— Pela quantidade, eu acho que essa é uma grande possibilidade.

Tadaki estava se divertindo bastante com os trocadilhos o que me deixava mais contente, visto que horas atrás ele estava tão tenso, era bom poder nos descontrair um pouco.

Observei-o explorar os pratos, colocando uma quantidade mínima de comida em seu prato. Quantidade essa que não sustentaria nem a mim, ele olhou meu franzir de sobrancelhas com curiosidade.

— O que foi?

— Vai comer só isso ou vai pegar uma coisa de cada vez? — Ele tornou a olhar para seu prato, arqueou os ombros com um sorriso simplório em face e um olhar desanimado. Como se quisesse dizer que não tinha tanta fome. — Nem pensar!

Me levantei pegando o prato que estava em minha frente para caminhar pela grande mesa e me dirigi a cadeira próxima a dele. Então retirei suas mãos da pequena louça de porcelana suja com merrecas de comida, tomando-a para poder encher com mais. Observei bem as delicias que havia ali e qual seria mais saudável para o imperador e antes que pudesse abarrotar o prato de arroz, ele segurou uma de minhas mãos.

— Eu não estou com tanta fome. — Dei um estalo com a língua nos dentes, dizendo com aquele gesto que suas palavras eram mera cordialidade.

— Minha avó acredita que precisamos comer o tamanho de prato equivalente ao nosso tamanho. — Coloquei duas colheres cheias de arroz no prato, seguindo para o molho de camarão em seguida. — Levando em consideração que você está da altura de uma estante, suponho que deva comer essa quantidade.

Ao finalizar minha tentativa de preparar seu prato, coloquei o amontoado de comida em frente ao rapaz que arregalou seus olhos para o pequeno monte. Um monstro de comida pronto para ser devorado, ou como havíamos brincado antes, pronto para devorar alguém.

— Você acha mesmo que eu vou conseguir comer tudo isso? — O imperador esticou um de seus braços e usou sua outra mão para dar um peteleco indicando que não tinha porte físico para tantos nutrientes, eu apenas ignorei o gesto e assenti para sua pergunta completamente satisfeita com aquele prato. Tratei de preparar o meu logo depois.

Explorei o máximo de legumes que pude, pois estava faminta e o cheiro delicioso das coisas se mesclando no ar, faziam meu estômago roncar ainda mais. Concluí outro prato enorme e tratei de começar a comer.

Tadaki parecia ainda mais surpreso do que antes e em seus olhos tinha aquele costumeiro brilho divertido que ele tentava esconder com a face quase dura.

— Que foi? — Perguntei ao perceber que ele me observava demais.

— Você quer me tornar um dragãozinho. — Disse de maneira brincalhona e eu corri os olhos para seu prato e sorri. — Obrigado.

Falou ele por fim, pegando seus talheres para começar a comer também. Tivemos um tempo de silêncio enquanto degustávamos as delícias espalhadas pela mesa. Como eu havia imaginado, ele estava morrendo de fome, pois atacava seu preto com vontade mesmo que ainda mantivesse a etiqueta. Dei um largo sorriso vendo aquela cena. Tadaki nunca havia comido tanto em minha frente e eu tinha certeza que durante os dias de reuniões com o conselho, ele não havia se alimentado bem.

O cansaço realmente já estava aparecendo nele, pois a postura ereta que tinha o costume de manter, estava ligeiramente alterada. Seus olhos tinham uma cor mais escura que antes, pois começavam a ficar fundos, indicando que ele dormia pouco e os cabelos pareciam terem sidos amarrados para esconder os poucos cuidados que estava recebendo. Havia pequenas pontas de frizz pelo caminho do couro, assim como o preto havia também perdido um pouco de tonalidade.

Era estranho vê-lo daquela forma. Desde pequena eu via os imperadores como homens tão belos que era impossível perderem aquilo por qualquer razão. Tzuki poderia ser umas das pessoas que eu menos gostava, mas não poderia negar que era o homem mais bonito que já vira. Sempre com os longos cabelos sedosos e brilhantes, roupas exuberantes de um exagerado líder, pele limpa com a aparência de pêssegos recém colhidos e uma postura que o deixava quase intocável.

Ao saber do novo imperador pensei que veria apenas uma cópia fiel de Tzuki, porém Tadaki era ligeiramente diferente. Parecia mais humano e isso o deixava ainda mais belo.

Seu rosto era arredondado com as janelas da alma ligeiramente inclinadas para baixo e o tom amarelado da pele típico de um nativo de Chogo. Os cabelos desciam pelas costas em direção ao fim de suas costelas e, na maioria das vezes, tinha uma pequena quantidade no alto de sua cabeça presa ao adorno arredondado de cor prata com uma minúscula jóia de jade em seu centro e ainda que tudo o deixassem com uma aparência quase intocável, ele estava tentava se tornar mais simples usando menos apetrechos e extravagâncias. No entanto, o cansaço estava tornando sua aparência mais real e o distanciando de qualquer semelhança com o antigo mestre do império.

— Norman, pare de me encarar. — Ele me chamou atenção e percebi que estava fazendo aquilo há muito tempo, balancei a cabeça para tentar me concentrar no jantar, pois estávamos ali para nos conhecer de verdade com palavras e ele deu um sorriso sutil vendo essa reação de mim. — O que foi?

Agitei as mãos no ar pedindo ao imperador que esquecesse aquilo e tratei de pensar em algo para iniciar uma boa conversa.

— Foi por causa de Néfler. — Soltei as palavras após me lembrar de sua pergunta horas antes. Ele franziu suas sobrancelhas tentando captar aquele assunto e eu suspirei. — Sempre achei mais interessante brincar com os pés no chão, correr atrás de Perrie e desenhar em suas pipas. Néfler era a filha perfeita. Desde pequena fazia exatamente o que nossa mãe dizia e aceitava tudo sem questionar, fosse lá qual decisão seria tomada para o seu futuro. — Tadaki soltou seus talheres e recostou na cadeira prestando plena atenção em minhas palavras. — Enquanto isso eu queria brincar e por minha mãe ser tão rigorosa com uma filha, meu pai não a deixava me privar de tudo. A pressão em cima de Néfler era maior, pois ela era a primogênita e não era um rapaz, então lhe cobravam o dobro de esforço. Quando ela fez quatorze anos começaram a procurar um marido e pela primeira vez em toda minha vida eu a vi apavorada.

Precisei fazer uma pausa ao recordar daquilo. Imaginar minha irmã com medo de seu futuro depois de ser domesticada para tudo aquilo, me fez sentir novamente a angústia daquela época. Tadaki se mantinha calado, estava digerindo cada palavra e tentando entender meus motivos para fugir daquele destino por tantos anos.

— Por mais que fossemos diferentes éramos inseparáveis e eu sabia que o medo dela era por conta da partida. Enquanto isso minha mãe já estava treinando as gêmeas com apenas oito anos e eu só conseguia detestar esses ensinamentos, porque ela estava separando a família, assustando Néfler e domesticando duas crianças. — Senti a dor de Néfler naquele momento e a gota escorreu por meu rosto. — Eu entendia muito pouco quando era pequena, mas quando meu pai começou a me ensinar certas coisas que eu não deveria saber, eu comecei a ver o mundo de uma maneira diferente e aquilo tudo se tornou um absurdo para mim. Comecei a ver defeito em tudo e principalmente nas garotas que queriam um marido, porque elas não sabiam o real significado. Para mim aquilo era como se autoflagelar.

— Otto começou a te ensinar na época que Néfler estava noiva? — Perguntou-me ele afinal e eu assenti. — Então você passou a você tudo com valores.

— Eu passei a ver tudo como problemas. — Continuei. — Quando encontraram um noivo, ela chorou duas noites seguidas escondida comigo e Perrie, porque queria continuar sendo a filha perfeita para nossa mãe e Gaya só dizia que seria uma ótima aliança. Acordos...era tudo o que importava... — Engoli em seco e respirei fundo. — Por sorte Néfler se apaixonou, mas eu já estava com tanto ódio daquilo que não soube deixar todas as cenas de desespero dela passarem. Eu era uma criança, ela era uma e quando vemos alguém no estado que ela estava, isso nos corrói.

— Você jurou que não iria passar por isso. — Ele concluiu e novamente assenti.

— Eu não posso negar que já era levada, mas depois disso comecei a piorar. Em um momento me perguntei se toda criança era só isso, uma moeda... Quando completei treze anos e minhas regras vieram, eu sabia que Gaya faria de tudo para ter outro acordo. — Tadaki apoiou seus cotovelos na mesa. Seu corpo estava tão agitado quanto o meu e era evidente seu desconforto com aquele assunto. Pensei em Mariko sendo criada da mesma forma e seu irmão vendo tudo. — Passei uma semana inteira esconde minhas roupas, eu trocava e lavava meus lençóis de madrugada no banheiro para que ninguém visse a mancha e pretendia fazer isso todos os meses, mas no segundo meu vestido sujou no meio de uma aula e quem viu foi ela... Tive certeza que era apenas uma moeda para ela.

Deixei outro longo suspiro escapar. Me lembrava com clareza os olhos que minha mãe fazia sempre que via aquela mancha. Parecia que havia ganho uma nova fonte de fortunas de tão ambiciosos que seus olhos ficavam. Era assustador.

— No dia seguinte eu estava prometida ao príncipe de Savian. Ele tinha a idade que Perrie tem hoje e eu era uma criança.

— Muitos reinos tem interesse em Gogh, a quantidade de filhas de Otto e Gaya são bem vistos pelo mundo. — O imperador seguiu dali. — É por isso que o conselho tem me enchido a paciência. Eles acreditam que Mariko possa ser uma boa aposta para outros reinos, já que temos você. Se Perrie puder fazer aliança com um reino maior, Chogo teria um novo vínculo.

— Outro acordo. — Sussurrei. Tadaki pousou sua mão sobre minha e a acariciou com doçura. Esse gesto me levou a olhá-lo nos olhos e perceber a cumplicidade ali. — O que estou dizendo, só estou aqui por causa de mais um contrato estupido.

— Você está aqui por um acordo que fez para si mesma. — Ele voltou a postura anterior e apertou gentilmente meus dedos. — Para se livrar desse ciclo que odeia e não vejo problema se for por isso. Até porque vamos mudar o que pudermos em nós e ao nosso redor. Todos evoluem.

Eu gostava das esperanças de Tadaki e de sua forma de ver nossa situação. Muito semelhante ao que meu pai e Perrie sonhavam para o mundo e era aquilo que estava nos aproximando cada vez mais. Era o que me fazia olhá-lo de uma forma diferente.

Dei um sorriso doce a ele e o imperador levou minha mão até seus lábios para pousar um beijo.

— Obrigada por se abrir comigo. — Ele sussurrou. Sua mão livre passeou pelo ar até meu rosto, onde acariciou para limpar a lágrima teimosa, essa ação prendeu nossos olhares e eu conseguia ver o brilho de esperança fluir de dentro do imperador. — Doce primavera.

Foram as palavras que se soltaram de seus lábios. Então tivemos uma interrupção de duas damas curiosas invadindo o salão para trazer as sobremesas e quase pegarem as mãos do mestre imperial em mim.

Nos arrumamos nas cadeiras rapidamente e ainda sim fomos encarados de maneira desconfiada, por estarmos sentados tão próximos.

Depois de diversos casos de estupro nos trinta vinte anos, as cidades de Chogo pediram medidas mais rígidas para o cuidado com as pessoas e com isso vieram algumas normas para o matrimonio também.

Todos os reinos concordaram e então tínhamos a regra vital no império. Alguns reinos como Gogh, havia abraçado a norma de maneira mais sutil, mas em Chogo ele não poderia me tocar intimamente antes de subir ao altar.

Se Chogo soubesse...

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