Cinco
Bati o garfo contra a borda do prato durante meus pensamentos. Eu estava começando a me preocupar com a dedicação do imperador, pois nossa amizade começou a se tornar algo bem maior e mais perigoso. Primeiro de tudo por todo desejo absurdo que meu corpo tinha só por estar perto de Tadaki e em segundo lugar, ele era impossível de se parar. Estava o tempo todo arrumando formas de me agradar e, droga, estava funcionando. Eu me repreendia dizendo a mim mesma que precisava me manter um pouco mais focada em meu principal objetivo ali, mas eu já não me lembrava qual era.
A cada instante que me aproximava mais do imperador, que o conhecia mais a fundo, começava a reparar melhor na pessoa que ele era. Algo naqueles olhos escuros me atraia profundamente e pensar que já não era mais o seu poder, me assustava. Ainda assim aquilo estava destruindo meu orgulho e mesmo sentindo medo, eu também me sentia bem.
Era como se ele estivesse tirando um enorme peso de meus ombros.
— Alteza? — Meus olhos saíram do prato em minha frente para encontrar com o rosto do soldado nas portas de entrada do salão. Pisquei algumas vezes para processar o dia ao meu redor e me lembrar o que havia ocorrido até onde eu estava. Observei a comida em minha frente e a luz forte invadindo a janela, depois voltei para o guarda que havia chamado por mim.
— Sim...
— Me desculpe incomodá-la, mas chegou uma carta de Gogh para a madame. — Sacudi uma vez mais a cabeça ouvindo as palavras do homem, e vi a pequena folha em sua mão que ele não hesitou em entregar. — A princesa está bem?
Passei os dedos da mão livre pelos olhos para tentar acordar completamente minha consciência e assenti em seguida ao homem. Ainda que ele não tivesse certeza de minhas palavras, me deixou ali para tomar o seu posto ao lado das portas de entrada.
Fazia tempo que não recebia notícias de casa.
O brasão de minha família havia sido marcado nela com a cera quente para fechar o objeto. A face da coruja com seu bico marcado estava entalhada no pequeno sinete de madeira que meu pai utilizava para selar as cartas, suas asas se mostravam logo atrás dando um pouco de graça ao desenho. Eu estava com tanta sede das palavras de papai que abri às pressas o papel para matar a saudade.
O desespero veio me tomar logo em seguida com aquele recado, deixando-me ainda mais dispersa do que já estava. A carta de meu pai vinha com péssimas notícias. Cármen havia conhecido um lorde e estava pronta para aceitar a proposta do rapaz, mas como de costume entre adolescentes a flor da pele eles não conseguiram aguardar até o dia do casamento e concretizou o relacionamento. Ambos acabaram sucumbindo ao desejo.
A família do lorde descobriu a travessura das crianças e ao invés de agilizar o casamento, estavam acusando minha irmã de imoralidade. Como se ele tivesse sido persuadido a se deitar com uma mulher que já era impura, quem iria dizer o contrário?
Meu pai deveria ter escrito aquele bilhete de forma desesperada, pois havia pequenos riscos em palavras ao decorrer das frases e eu imaginava o quanto deveria estar sendo terrível para ele.
Por mais que Otto não concordasse com a maioria das regras que giravam em torno de nosso mundo, ele era o tipo de pessoa que simplesmente acatava. Então ter uma das regras quebradas pelo rei, uma regra primordial, deveria estar consumindo-o por completo.
Ele me pedia uma luz, pois não tinha forças para pensar sozinho. Mesmo que eu fosse a última pessoa que pudesse ou soubesse ajudar naquela questão, a carta era mais um desabafo do que um pedido real.
Tadaki entrou pelas portas da sala de jantar, após bater à porta e ter a passagem liberada pelo guarda que me entregara a carta anteriormente. Seu olhar parecia empolgado, porém ao notar a minha mão sobre minha boca e uma expressão sombria em meu rosto, o sorriso curto do rapaz deu lugar a preocupação.
— Norman, está pálida. O que aconteceu? — Ele perguntou, mas eu não conseguia dizer nada e tudo que fiz foi lhe entregar a carta de meu pai enquanto iniciava uma caminhada de um lado ao outro.
O imperador leu atentamente cada linha. A expressão que era de preocupação antes se tornou indignação, uma ruga se formou em sua testa enquanto ele pensava no que havia acabado de ler olhando em minha direção. Em alguns momentos ele tentou dizer algo, contudo era uma história tão estranha que nem ele conseguiu encontrar as palavras.
As poucas pessoas que conviveram com Cármen em sua vida, fosse de maneira passageira, saberiam que minha irmã nunca seria do tipo de mulher influenciadora e sim a influenciada. O próprio Imperador havia ficado tempo suficiente com ela, para entender isso. Ainda que vivesse discutindo com sua cópia sobre rapazes e casamentos, ela nunca havia descido tão baixo.
Tadaki estalou o dedo ao guarda que se aproximou com agilidade, ele cochichou algo no ouvido do homem que após assentir ao seu superior, saiu dali o mais rápido que pôde, deixando-nos a sós. Havia um desespero tão grande em meu corpo que depois de a tensão ter me paralisado, a adrenalina se alastrou por completo fazendo-me começar uma caminhada mais nervosa pela sala pensando em milhões de maneiras de xingar aquela garota estúpida.
— Minha...
— Eu dizia o tempo todo para elas não se iludirem com as firulas! — Chutei o pé da cadeira falando aquilo, sentindo uma pequena dor na ponta de meus dedos por conta dos baques. No entanto, a fúria era tão grande que eu só conseguia ignorar e continuava batendo. — Dizia para não se deixarem levar como várias amigas delas já fizeram e sofreram! — Continuei depositando o ódio que estava sentido no objeto. — Um egoísta! E uma estúpida!
Arrastei o objeto lançando-o para trás, não sabia se a cadeira era leve o suficiente para ser erguida por mim ou se a raiva era tão grande que eu não havia sentido o seu peso. Minhas mãos se arrastaram pela mesa com tanta ira que todo o meu almoço acabou no chão.
O imperador tinha as mãos estendidas e me dizia algo que eu não conseguia ouvir, era como se a adrenalina se mesclasse ao ódio dentro de meu corpo me deixando completamente surda e com uma vontade terrível de destruir tudo à nossa volta.
Parei somente quando senti a fúria se esvair em meio a respiração pesada. O vestido de espartilho apertado me sufocava até o pescoço naquele instante e levei as mãos ao seu centro aberto, transpassado com laços, para poder puxar fortemente até ouvi-lo ser rasgado. A peça não se abriu por inteira, mas afrouxou me deixando respirar finalmente.
Minha audição se tornou mais clara, levando-me a realidade do salão onde um imperador surpreso dominou a distância entre nós para segurar meus ombros massageando-os. Seu olhar de comoção tentou acariciar meu coração enquanto o senti tocar a testa na minha, ainda que me faltasse ar depois de tanta energia gasta, eu não conseguia deixar de me hipnotizar nele.
— Sente-se. — Sussurrou de maneira carinhosa fazendo-me franzir a sobrancelha. — Quando parou de agredir a cadeira e se endireitou, sua perna falhou. Está pisando apenas com a ponta dos dedos. Me deixe ver se machucou.
Eu não sentia nada com tanta fervura correndo por dentro de mim, mas meus olhos foram ao encontro do chão para terem a confirmação das palavras do imperador. Foi só então que recordei da dor no início e a senti se intensificar.
Tadaki puxou a cadeira ao seu lado para que eu pudesse me sentar ali, e delicadamente tomou meu tornozelo em suas mãos. Seus dedos deslizaram a sapatilha o mais suave que poderiam, mas ainda assim a ardência foi sentida por meu corpo reagindo bruscamente me fazendo sacudir a perna.
— Me desculpe. — Ele disse, ainda concentrado em meu tornozelo.
Eu só conseguia observar o rosto do imperador iluminado pela luz do sol invadindo a sala. Tentei me concentrar naquilo para poder me acalmar e funcionou. Tratei de desenhá-lo com a mente para que pudesse relaxar de verdade enquanto era cuidada.
Observei sua pele amarelada e limpa que tinha uma aparência de porcelana, os lábios bem desenhados como de uma pintura e avermelhados. Seus olhos — diferentes dos do ocidente — tinham um formato menor e pequenas linhas desenhando seu contorno, puxando por alguns mínimos centímetros como se demonstrasse um rasgo. Seus cílios médios eram tão escuros quanto suas sobrancelhas, nem tão grossas, nem tão finas. Os cabelos negros e brilhantes deslizavam por seu corpo desenhando as linhas de seu traje, havia mechas sendo puxadas de ambos os lados, amarradas no meio das madeixas para sustentar a sútil peça de metal brilhante que girava em torno da cabeça do imperador. Algumas linhas de seus fios se soltaram para frente do corpo ajoelhado para mim, levemente inclinado.
Seus dedos percorriam toda a pele de meu dorso do pé, apertando a região em busca de ferimentos ocultos. No entanto, o único que me incomodava era o dedo com as manchas de sangue se aglomerando no pequeno corte. Ele pegou o tecido do guardanapo para limpar aquela região e banhou meu pé com o resquício de vinho que sobrara do copo tombado na mesa. Outra vibração percorreu minha perna, mas nada que tirasse a atenção de cuidar daquela região.
Os pensamentos de preocupação me inundaram novamente, pois me recordei que Cármen poderia estar em meu lugar sendo cuidado por Tadaki e nada teria acontecido entre ela e o lorde. Me culpei por tomar sua vida daquela forma e pensei em como me redimir.
— Posso te pedir algo? — Perguntei fixamente ainda mais nele que ergueu seu olhar podendo encontrar o meu. — Você se...
— Não vou me casar com Cármen. — Algumas lágrimas se aglomeraram em mim, pois dali em diante aquelas seriam as palavras que minha irmã escutaria. Não conseguia sentir raiva por Tadaki julgá-la. Então ele suspirou e trouxe seus dedos para limpar a lágrima teimosa que se soltara. — Vamos trazê-la para cá. Aqui a maioria dos homens não se importa mais com uma mulher pura, muitas viúvas se casam novamente e diremos que o marido de sua irmã faleceu no dia seguinte à noite de núpcias.
— Vão acreditar nisso? E quando os rumores chegarem?
— Não vão chegar. — O imperador se levantou do chão para sacudir a veste e se endireitar. Estendeu a mão para me ajudar a levantar da cadeira podendo ver se eu conseguiria andar, no entanto meu pé falhou outra vez e naquele momento foi meu tornozelo que doeu. — Como imaginei. Você o torceu como baque.
Pensei brevemente em suas primeiras palavras, imaginando que o imperador iria acobertar toda a irresponsabilidade de Cármen, para que ela pudesse manter sua índole e fiquei realmente agradecida com sua dedicação em um momento tão delicado.
Durante meus pensamentos ele fez menção em se inclinar novamente para passar o braço por minhas pernas e outro por minha cintura, mas ergui as mãos em negação e o mesmo revirou os olhos.
— Norman, seu quarto está longe e não vai conseguir andar até lá. Além do mais está muito abatida, então deixe-me cuidar de minha futura imperatriz. — Não foi uma pergunta, ele havia usado sua voz de autoridade como vinha fazendo para me repreender. Então me tomou nos braços e caminhou pelo salão até a porta.
— Você está fazendo de novo — falei sorrindo sem graça.
Eu nunca havia sido carregada por um homem daquela forma, nem os deixava chegar perto. Tadaki tinha realmente um efeito forte sobre mim. Ele apontou em direção a maçaneta que girei para abrir a porta, e os olhos escuros do homem cravaram em seu caminho pelo corredor.
— Fazendo o que?
O guarda fez menção em ajudar seu senhor, mas ele negou continuando seus passos.
— Sendo bom para mim.
— Se fosse com Mariko... teria tido a mesma reação. — Ele me revelou. — Se tivesse escolhido uma de suas irmãs e soubesse que alguém fizera isso com você, teria mandado matá-lo.
— Teria? — Olhei perplexa para o imperador que apenas assentiu sorrindo de maneira cansada. Porém, balancei a cabeça para afastar o pensamento. — Mas não aconteceria comigo. Eu iria presa por cortar as bolas dele se me acusasse.
Tadaki parou no meio do corredor com o olhar arregalado para mim, ainda mantinha seu sorriso, no entanto estava mais descontraído que o anterior. Ele bufou para espantar o pensamento que se passou dentro de si e continuou caminhando.
— Obrigada por cuidar dos meus problemas.
— São nossos problemas agora, meu amor. — Não consegui deixar de constranger por sua frase. Ouvi-lo me chamar daquela forma, aqueceu meu peito.
Finalmente estávamos de frente para a porta do meu quarto e novamente abri o objeto auxiliando o imperador. Moho e Anika conversavam em um canto do local e ao notarem nossa presença correram para ajudar fazendo reverências rápidas. Tadaki me carregou até a cama onde me deitou.
— Ela se feriu. — Ele avisou as duas. — Talvez precise repousar por uns dias.
Ele usou um dos travesseiros para colocar meu pé no alto e as damas ajeitaram os de minha cabeça. O imperador trouxe seus lábios até mim logo depois que as meninas começaram a procurar mais coisas pelo quarto para amenizar a dor, enquanto ele deixava um pequeno gesto de carinho em minha testa não esquecendo de acariciar minha bochecha.
— Vou chamar o mestre Hao para ver esse tornozelo.
Pela expressão usada, ele chamaria o especialista para analisar minha ferida, pois o imperador só chamava seus curandeiros e mentores dessa forma.
Antes que ele partisse recordei-me da pergunta que vinha esquecendo todas as vezes de lhe fazer e me apressei para chamá-lo.
— Tadaki — Segurei sua mão impedindo-o de se afastar. — Sobre o casamento...
— Cuidaremos disso depois. — Calou-me ele, dessa vez deixando um beijo em meus dedos para soltá-los e caminhar pelo quarto, deixando-me com duas damas preocupadas.