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♥ | quatro

Sobre o extenso sofá macio de cor cinza-escuro, no centro da sala bem planejada do apartamento de Sérgio, me encontrei encolhida, com os joelhos contra meu peito e cabeça sobre eles, estava naquela posição desde que viemos da faculdade, quando meu namorado supôs que eu não estava bem para enfrentar mais três aulas que nos aguardava pela frente, e bem, ele como na maioria das vezes, tinha razão.

 

Eu não conseguia processar muito bem, as palavras da mulher na ligação que deveria ser atendida pelo meu pai, embora eu soubesse que, tudo estava mais claro do que água cristalina, meu pai havia nos abandonados, nos trocados por uma família mais digna do que eu, minha mãe e irmã… Quero rir outra vez… dignas… o que nos torna dignas ou não? Meu Deus, isso é tão fodid*… Tão… inexplicavelmente inexplicável.

 

Existe uma parte boba minha que quer acreditar que tudo isso não passa de uma mal-entendido, que talvez aquela seja sim, uma amante de papai, mas que ele não tenha conhecimento do que ela faz… isso melhora a situação? Obviamente não, embora mamãe suspeitasse há muito tempo que ele tinha outra, nunca foi confirmado, então nas melhor das hipóteses, minha mãe paranoica era só uma mulher sofrendo pela ausência do marido, mas agora, isso mostra que na verdade, essa mulher não é paranoica, e que seu marido é um cretino, mas put.a que pariu, se ele não soubesse como fui tratada, se ele ainda mantivesse a pose de bom homem trabalhador… seria mil vezes melhor… viver uma mentira pode não ser uma boa opção, mas sinceramente, viver a verdade escancarada em minha cara poderá ser devastador para minha família ou melhor, para o que restou dela, e eu não quero presenciar isso! 

 

 

— Aqui, esquentei para você — Sérgio se sentou ao meu lado e me esticou um prato de macarronada, fiz uma careta.

 

 

— E você lá sabe fazer isso? — Gracejei, não querendo sobrecarregá-lo com minha bagunça… ele riu. Sérgio ia contra qualquer padrão, por mais que viesse de uma boa família de condições financeiras no mínimo maravilhosa, como a filha da mãe nomeava… digna… ele conseguia se virar bem por aqui, sozinho, longe de toda proteção. Havia uma senhora que vinha uma vez por semana para fazer uma limpeza geral, mas de resto, meu namorado se virava. Houve uma vez que ele me convidou para morar com ele, por um segundo ponderei, não serei hipócrita em dizer não considerei, considerando como nossa relação era boa, como Sérgio me tratava, e a beleza que seu imóvel tinha, me visualizei muito bem aqui, vivendo em um lugar que desde muito nova almejei, no entanto, havia uma enorme carga sobre mim, desde meu anseio de conseguir sozinha algo assim, como minha família, que por mais que senti muitas vezes que precisava desesperadamente me afastar, era minha família, e não parecia justo virar as costas, ir viver sobre as custas do meu namorado rico… dessa maneira, recusei e prometi-me, que se um dia fossemos morar juntos, eu contribuiria tanto quanto ele para nossa vida, eu não poderia depender, eu não poderia ser uma nova versão de mamãe… Tudo, menos isso!

 

 

— Vamos lá, coma só um pouco… — Resmungou, pairando outra vez o prato em minha frente, neguei, não me sentindo capaz de fazer uma refeição agora, o bolo formado em minha garganta a algumas horas, permanecia ali, era difícil engolir até mesmo a saliva.

 

 

— Não estou com fome — Forcei um sorriso e levei a palma de minhas mãos em sua face e a alisei. — Mas obrigada, mesmo.

 

— Ellie, estou ficando preocupado… — Deixou o prato de lado, então puxou as minhas pernas, pondo-as sobre as suas, nosso olhar se encontrou — Deixe-me te ajudar, meu bem… — Sua mão fechou como uma concha em minha bochecha, pisquei algumas vezes, muito tentada a dizer tudo que ouvi, todos os meus receios desde então… mas esse é Sérgio, o cara com a necessidade de ajudar, de tentar consertar as coisas, e tudo que menos preciso, é que ele se constate na obrigação de amparar minha família e eu, não é justo, eu não posso deixar que ele faça isso… Minhas mãos envolvem seus ombros, e tomando como um impulso, me sentei sobre suas pernas,  aninhei-me contra seu peito, lutei bravamente com as lágrimas, eu precisava ser forte, eu precisava voltar para casa e encarar a nova realidade de minha família, mas não posso fazer isso agora, não posso encarar mamãe, Lia… — Ellie, eu realmente…

 

 

— Eu estou bem — O interrompi, afastando minha cabeça de seu peito, encarando-o no fundo de seus olhos, forcei um sorriso — Eu estou bem, não precisa se preocupar… — Afaguei seu rosto outra vez — Só preciso que me abrace, pode fazer isso? — O olhei em súplica, ele sorriu, mesmo que seu semblante brilhasse em confusão, preocupação, então seus braços me puxaram para ele outra vez, assim, me apertou como se pudesse juntar cada caquinho meu.

 

 

— Sabe que pode contar comigo, não sabe? — Questionou, me balançando como uma criança desolada em seu colo, e bem, por esse momento, talvez fosse. Suspiro.

 

 

— Eu sei, e sou grata por ter você… — Levantei a cabeça ainda colada em seu peito, seu olhar encontrou o meu, meu coração apertou, eu o amava… com tudo de mim, mas infelizmente, eu não podia dizer o que se passava, eu não podia deixá-lo bancar o príncipe encantado, por que eu não era a droga de uma princesa em apuros, era apenas um dos muitos filhos abandonados por aí, e eu sobreviveria, eu daria meu jeito… — Eu te amo. — Murmurei com um meio sorriso.

 

 

— Eu também te amo… — Selou nossos lábios em um selinho rápido — Só… não deixe de pedir ajuda se assim precisar — Fala, eu assinto — Estou falando sério, Ellie, não deixe que seu orgulho a impeça de pedir ajuda, eu te amo, e tudo que puder fazer por você, farei… farei por amor, entendeu? — Seu semblante tornou-se sério, firme… e mesmo que eu sentisse muito, menti.

 

 

— Não deixarei, não se preocupe. — Afundei-me outra vez contra o seu peito, assim, o silêncio nos envolveu, e eu me permiti passar algumas horas a mais dentro daquela bolha de proteção.

 

 

♥♥♥

 

 

Quando tomei coragem de voltar para casa, já passava de meu horário de costume, o céu já começava a escurecer. Sérgio fez questão de me trazer e eu sinceramente não neguei, só de imaginar pegando vários ônibus de volta para casa, subir a metade do morro a pé, já sentia minha cabeça latejar, dessa maneira, ele me deixou na frente de casa e esperou que entrasse, atrás do portão de grade, forcei um sorriso e abanei a mão em despedida, não demorou muito para que ele arrancasse com o carro, e eu, bem, em passos de tartaruga me movesse para o interior de minha casa.

 

Que ela não esteja na sala…

Que ela não esteja na sala…

Que ela não… Internalizei, eu só precisava de um banho gelado antes de lidar com minha mãe, meu Deus…

Que ela não esteja na sala… Voltei a repetir, empurrando a porta de entrada, como se costume, minha irmã está jogada sobre o sofá da sala, digitando algo em seu celular, nosso olhar se encontra.

 

 

— Onde esteve? Mamãe ficou o dia todo perguntando de você… e você nem para responder minhas mensagens.— Revirou os olhos, suspirei.

 

 

— Estava com Sérgio… — Digo simplesmente, fechando a porta. 

 

 

— É claro que estava com ele, logo vai se mudar para lá! — Me alfineta, bufo, não é a primeira vez que faz tal suposição, não depois que deixei escapara a proposta do meu namorado.

 

 

— Não diga besteira, Lia, não estou com paciência para lidar com você hoje. Cadê a mamãe? — Questiono, ela encolhe os ombros.

 

 

— Onde mais estaria? E papai ainda não chegou… — É claro que ele não chegou… Penso, mas não verbalizo. Inspeciono minha irmã por um longo segundo, me perguntando como ela vai lidar com a partida de meu pai… Certamente, melhor que mamãe.

 

 

— Certo… Faça a janta hoje… — Demando, já seguindo em direção as escadas.

 

 

— O quê? Eu fiz ontem, Ellie, nem vem… — Reclamou, massageei minha têmpora.

 

 

— Lia… — Elevo o tom de minha voz, volto-me para ela — Por favor, para de reclamar e faça o que estou mandando, pelo amor de Deus! — Vociferei, fazendo-a franzir o cenho e se recuar brevemente… não era o tipo de pessoa que perdia a paciência facilmente, ainda mais com Lia… sempre fomos muito amigas, parceiras… e embora ela vivesse tentando se encaixar nos padrões de sua escola, ela ainda tinha os pés no chão, e sabia viver a nossa realidade… o que tornava nossa relação fácil, mas eu sinceramente me sinto na beira de uma combustão, não sei até onde consigo ir sem surtar por completo.

 

 

— O que está acontecendo, Ellie? — Perguntou, deixando finalmente o celular de lado — É o papai? Mamãe sem querer deixou escapar que ele ainda não voltou para casa desde anteontem… Algo grave aconteceu? — Ela se levantou e veio em minha direção, engulo seco.

 

 

— Não, nada grave aconteceu, Lia, só… faça o jantar, sim? — Forcei um sorriso para ela, então, sem dizer mais nada, comecei a subir as escadas.

 

 

♥♥♥

 

 

— Mãe? — Bati na porta de seu quarto, adentrando em seguida — Mãe? — A chamei outra vez, ela se levantou em um pulo, arrumando os cabelos bagunçados.

 

 

— Ellie, seu pai? Falou com ele? — Ela me olhou com ansiedade, isso quebrou meu coração de todas as formas possíveis. Neguei, permanecendo parada na entrada do quarto — Como não? Você não foi no serviço dele? — Me olhou confusa.

 

 

— Não, eu não fui…

 

 

— Ellie, por Deus, porque não foi? E se algo grave aconteceu com seu pai? E se… se acontecer algo com ele e a gente não saber, será sua culpa, Ellie. — Me acusa com o dedo indicador em riste… meus lábios franzem, antes fosse isso, mamãe, antes fosse isso…

 

 

— Mamãe, acalme-se por favor, pode passar mal… — Resmunguei, me aproximando.

 

 

— Não me mande me acalmar! Tudo que você precisava era ir com seu namorado até o serviço do seu pai, era só isso, Ellie… custava alguma coisa? Deus, o quão ingrata você é? — Continuou me acusando, mas permaneci calma, a olhando, pensando o quão deprimente é o seu estado… não posso ser com ela… eu nunca serei como ela.

 

 

— Não aconteceu nada com o papai, mãe… — Não o que temíamos… 

 

 

— E como você pode saber? — Perguntou de forma ríspida, eu suspirei.

 

 

— Por que eu liguei para ele…

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