♥ | dois
— Mamãe… — Bato na porta do quarto dos meus pais, antes de empurrar a velha madeira. Mamãe está no quarto escuro, emaranhada em seu edredom, eu suspiro — Lia disse que não sai a horas daqui… — Resmungo.
— Lia deveria se preocupar com os estudos, não com o tempo que fico em meu quarto. — Murmura de mal-humor, eu suspiro.
— Estamos preocupadas com a senhora… — Sento-me na beirada de sua cama, olhando seu perfil. Mamãe é uma mulher jovem, tem apenas quarenta e um anos, mas o sofrimento lhe dá quase dez anos a mais… os cabelos que um dia eu me lembrava ser cheios de cachos definidos, virara um coque embaraçado… a pele negra tão sedosa, lisa… hoje em dia era apenas uma vaga lembrança atrás das várias machinhas sob elas… poderia culpar seu problema nas costas, as dores intermináveis… mas vai além.
No auge de seus vinte anos, mamãe brigou com os pais para ficar com meu pai, fugiu com ele do interior e veio para capital, achando que viveria uma linda história de amor, mas chegando aqui, a realidade a assolou, mas já era tarde demais, eu já crescia em seu ventre, e seu amor por meu pai falava mais alto do que qualquer coisa… ela virou uma dona de casa dedicada, e esperava que eu me tornasse maior para arrumar um trabalho, e eu cresci, mas logo veio a notícia que Lia estava a caminho, embora papai tenha surtado para mais gastos, eles ocasionalmente a amaram com tudo de si… mamãe adiou a busca do trabalho, e quando eu e Lia finalmente tivemos idade para ir a escolinha, ela encontrou um trabalho, o primeiro ano embora exaustivo, mamãe narra como o melhor de sua vida desde que deixou sua família para trás… isso é, até o acidente acontecer… acho que foi ali que sua vida começou a definitivamente andar, ou melhor rolar a ladeira abaixo… e ela começou a envelhecer vários anos a cada um ano… Ela nunca jogou sobre meus ombros ou de Lia suas frustrações, ela sempre foi uma ótima mãe, apesar de tudo…
— Devem se preocupar com a escola, seu pai investe muito em vocês… — Me repreende, eu suspiro uma vez a mais.
— Estamos indo bem, mãe… Sérgio mandou um abraço… — Digo, o olhar de mamãe encontra o meu pela primeira vez, há insegurança neles, acho que no fundo, suas escolhas a assola até hoje, ela me olha e pensa que farei o mesmo que ela… que os deixarei. Não posso mentir, por muitas vezes ponderei, mas eu sei, nunca seria capaz disso. Na primeira oportunidade certamente mudaria, mas eu não iria sozinha.
— Você deveria focar mais em estudar do que namorar… — Assinto, não querendo brigar — E o seu pai? Chegou? — Inquire, eu maneio a cabeça em negação. Papai geralmente chegava antes de mim, já que a faculdade é em tempo integral, e ela fica do outro lado do bairro em que moramos. Mas conforme o tempo foi passando, seus atrasos tornaram-se uma rotina, eu chegava, passava várias horas da minha chegada, então ele chegava… quando minha irmã já tinha lavado a louça da janta, e nós nos aprontávamos para dormir.
— Talvez tenha tido um imprevisto… — Tento neutralizar a situação, mamãe aceita minhas desculpas. Alguns dias são assim, ela aceita acreditar que o serviço exigiu mais dele, e como um trabalhador esforçado que era, ficou… mas tinha outros, os quais ela chorava em meu colo e dizia com toda certeza de si, que ele tinha outra… dou graças a Deus, por hoje não ser esse dia — A senhora quer alguma coisa? Remédio, ajuda com algo? — Ofereço, ela nega.
— Apenas me deixe descansar… — Fecha os olhos, eu assinto, então sigo para fora do quarto, sentindo-me de inúmeras formas exausta.
♥♥♥
Pela primeira vez, papai não voltou para casa nem mesmo pela madrugada adendo, eu sabia disso por que minha irmã e eu não acordamos no meio da noite com uma breve discussão no quarto ao lado do nosso, e por que quando me levantei às cinco e meia da manhã e espiei o quarto deles, mamãe adormecia sozinha, abraçando as cobertas. A preocupação me invadiu, mas não alarmei a casa, apenas segui com a minha rotina.
Escovei os dentes e cabelos, vesti um conjunto de roupas que comprei para exclusivamente ir a faculdade, então desci e iniciei o preparo do nosso café da manhã, de olho na porta, esperando que papai chegasse, mas isso não aconteceu… acordei minha irmã, que como de rotina levou um terço do tempo que tínhamos até irmos a parada de ônibus, a quase meia hora do nosso bairro. Tinha opção de esperar um ônibus que nos levava a essa segunda parada, no entanto, isso resultaria um atraso de quase uma hora, dessa forma, caminhávamos todo dia por meia hora até o segundo ponto de ônibus, então ali pegamos a linha que nos levaria ao nosso destino… Lia descia primeiro que eu, em vinte minutos de circulação, já eu descia vinte e cinco minutos mais tarde…
— Lia, pelo amor de Deus, se arrume logo! — Demando a minha irmã. Ela não saia sem maquiagem, mas também não levantava mais cedo para fazer isso, e sempre era um sufoco para não perdermos o ônibus… no fundo ela fazia isso de propósito para fazer com que eu recorresse a Sérgio, mas isso nunca acontecia.
— Para de gritar pelo amor de Deus, minha cabeça está explodindo. — Reclama, eu reviro os olhos.
— Não estou gritando, estou apenas falando… — Suspiro — Se até o horário não estiver pronta, irei sem você. — Aviso seguindo em direção ao quarto de minha mãe, ela continua adormecida, provavelmente sob efeito de algum remédio, a deixo dormir, não querendo ter que dar a notícia que papai passou a noite fora.
— Cadê papai? Bem que ele poderia nos dar uma carona até o ponto hoje, estou exausta. — Minha irmã sai do banheiro com a boca cheia de pasta, faço uma careta. Papai tinha um UNO antigo, fazia mais barulho que o baile que acontecia todo final de semana na ponta superior do morro, qual nunca ponderei ir, e minha irmã também não. Papai em raras vezes nos levava a parada de ônibus, mas hoje obviamente não seria um desses dias raros.
— Termine de se arrumar, precisamos ir em dez minutos. — A ignoro, partindo de volta para a cozinha. Como um pedaço do bolo que fiz na manhã anterior, é de coco, e está uma delícia. Olho pela janela da cozinha, podendo ver o pequeno quintal de casa, ele está uma sujeira só, preciso limpar, mas isso vai acontecer apenas no final de semana…
— Seu pai foi à padaria? — Mamãe questiona no pé da escada, levemente curvada, eu me levanto em sobressalto para ajudá-la, pondero mentir, afinal papai provavelmente chegará em breve… mas o que acontecerá caso ele chegue sem pão ou melhor, demore mais do que o tempo previsto para chegar a padaria a apenas duas casas da nossa, suspiro.
— Acho que dobraram o turno dele… — Murmuro, me perguntando quantas desculpas a mais, terei que inventar para minha mãe.
— Não me faça de idiota, Ellie… apenas… diga que ele não chegou… —Empurra minha mão e se ajeita na cadeira.
— Desculpa, eu só… — Engulo seco, desviando meu olhar para Lia descendo as escadas.
— Vamos apressadinha? — Chama, eu assinto.
— Pegue um pedaço de bolo — Demando, Lia odiava comer pela manhã, mas sempre obrigava a morder alguma coisa — Tchau, mamãe, tenha um ótimo dia. — Deposito um beijo em sua bochecha, um sorriso ligeiro curva seus lábios. Lia faz o mesmo, logo estamos seguindo para o início de nossos respectivos dias, espero que por hoje eu não perca tanto conteúdo quanto ontem….