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♥ | um

Não confie no amor industrial, cheio de padrões e patrões. Cada amor é único, cada amor é um artesanato do coração.

— Zack Magiezi

♥♥♥

Tento focar nos slides passados no telão, e no que o professor de Direito Tributário diz no palanque do auditório da faculdade, mas é impossível, minha mente embola, e das várias coisas que ele diz, se eu pego duas palavras é muito, e não é só isso, minha mente simplesmente viaja diversas vezes para as discussões que tenho presenciado com mais frequência desde o início da semana. Meus pais têm brigado praticamente todos os dias… 

Mamãe reclama da demora dele em voltar para casa após o serviço, do dinheiro que mal dá para as contas, já que uma boa parte da quantia some misteriosamente, sem explicação… papai finge não escutá-la, e até mesmo tenta ignorá-la, mas eventualmente devido a insistência de minha genitora em busca de explicações, ele a ataca verbalmente, fala do quão sanguessuga ela é, e das piores coisas possíveis… eu sempre arrisco intermediar um acordo pacífico, diminuir a gritaria que sempre é desencadeada, mas ela pede que eu fique fora da discussão, e ele acaba por me mandar calar a boca, então joga em minha cara o dinheiro que tem que desembolsar para os meus livros, refeições e ônibus da faculdade… e ainda tem a minha irmã, que para ela não ter que ir para a escola precária nas redondezas periferia onde moramos desde que me entendo por gente, mamãe a matriculou no colégio do centro… embora ambas, tanto eu quanto a minha irmã tenhamos bolsas de estudo integral, eles realmente tem que desembolsar uma nota para nos enviar e termos tudo que é preciso para as aulas, então no final de tudo, minha cabeça se abaixa, minha voz morre e quando papai dorme ou parte para o trabalho na usina que fica a quase duas horas de distância, eu tento consolar minha mãe desolada, chorosa… que tem quase certeza que papai tem vive um caso extraconjugal… ela se culpa, o defende… diz que com o problema na coluna não pode ajudar em nada, tão pouco dar a atenção que meu pai como homem, seu marido precisa… nunca me senti tão impotente quanto tenho me sentido nos últimos dias, odeio papai por fazer tão mal para ela, odeio por depender tanto dele e a caridade que parece nos fazer… mas odeio mais, por não conseguir odiar a ponto de deixar de amá-lo… ele é meu pai, e antes de toda essa bagunça ter se instalado, eu me lembrava dele como um bom pai, um bom marido… hoje ele não é o pior, mas deixa muito a desejar.

— Então? — A voz de Sérgio me tira do transe, pisco algumas vezes para focá-lo.

— O que disse? — Questiono, ele arqueia a sobrancelha. 

— Cê quer ir lá para casa… — A voz dele ainda parece distante, pisco algumas vezes para voltar para mim, Sérgio franze o cenho — Em que planeta você está hoje? — Ri, eu forço um riso também.

Sérgio é meu namorado desde o primeiro ano da faculdade, embora haja um mundo de diferença entre nós, o amo muito, e é recíproco. Ele mora a dois quarteirões da faculdade, em um condomínio universitário, herdeiro de uma rede de advocacia no interior, veio à capital a exatos três anos, para formar-se na faculdade que tanto seu pai quanto avô formaram… Tradição familiar, ele dizia.

— A aula já acabou? — Questiono confusa, piscando algumas vezes, olhando na direção do professor que sentava na mesa, mexendo em algo do computador, postura rotineira para tirar dúvidas dos alunos… Eu geralmente passava por ele com uma ou duas perguntas, hoje certamente não o farei, afinal, não faço a mínima ideia do que se tratou sua aula hoje, talvez tenha dado continuidade a matéria da semana passada, eu não sei…

— O que está acontecendo com você? — Meu namorado questiona com uma expressão confusa, desconfiada. Por viver uma realidade bem diferente da dele, eu o poupava o máximo que podia do drama que me cercava. Dos quase três anos que estávamos juntos, foram rara as vezes que ele foi até minha casa, não me leve a mal, eu não tinha vergonha da minha família, da casa simples onde morávamos ou algo assim… eu apenas tinha conhecimento de que Sérgio vivia em um mundo muito paralelo do meu, a minha realidade seria um baque para ele, eu sabia… Enquanto ele ganhou um mustang por terminar o ensino médio, eu nem tirei carta… Seu pai era dono de uma rede de advocacia, meu pai era auxiliar de produção em uma usina… Minha mãe dependia de formas inimagináveis do meu pai desde sempre, já a mãe dele é uma cirurgiã plástica renomada, reconhecida… Estava escancarado, com todas as letras, os fatos pelos quais nossos mundos não se encaixavam, os motivos que não daríamos certo… mas eu era teimosa demais para terminar com ele… e ele bom… por algum motivo me amava… — Ellie? — Ele novamente chama a minha atenção…

— Enxaqueca… Acordei sentindo essas pontadas insuportáveis na cabeça, e não consigo focar em nada… — Minto, ele acredita no mesmo instante. Por mais que Sérgio fosse um homem muito inteligente e meticuloso, ele era a pessoa mais fácil que já lidei em minha vida.

—Por que não ficou em casa? Não me falou nada? — Faço uma careta, ele força um riso — Estou falando de mais… Desculpa, meu bem! — Faço uma nova careta, me sentindo mal por mentir assim para ele, mas está fora de cogitação dizer qualquer coisa a respeito da briga dos meus pais… do jeito prestativo que ele é, tentaria ajudar… e se soubesse da situação financeira da minha família, certamente tentaria me enfiar dinheiro, assim como já fez quando minha irmã ficou doente e o salário de meu pai não saiu… eu neguei com tudo de mim, mas quando percebi, ele apareceu em frente a minha casa com inúmeras coisas… isso era um dos fatores cruciais de mantê-lo bem alheio de tudo que me cercava, eu não queria por um segundo me aproveitar dele — Vamos dar um pulo na farmácia, então vamos para minha casa, vou cuidar de você… — Beijou minha bochecha, eu sorri.

— Quero muito isso, muito mesmo, mas tenho que ir para casa… — Resmungo, apertando a sua mão. Ele torce os lábios, visivelmente encabulado, mas não me pressiona.

— Deixe-me levá-la para casa então, só hoje… — Pede como se esse fosse mais um favor para ele do que para mim, eu suspiro assentindo, não querendo dar motivos para que ele apareça aleatoriamente por lá.

— Só tenho que passar na diretoria para carimbar o passe do ônibus. — Aviso, ele assente. Logo arrumamos nossas coisas e partimos.

♥♥♥

— Promete que vai se cuidar? — Questiona Sérgio já estacionado diante da minha casa. É um sobrado de dois andares na cor amarela desgastada, descascada, não é de longe a pior casa do bairro, mas já foi uma das melhores. 

— Prometo — Sorrio para ele e aperto o botão que destrava as portas — Me liga ou manda mensagem quando chegar em casa. — Demando, ele assente, em seguida roça os nossos lábios em um beijo cálido, logo desço do automóvel, ele acena, ligando o carro em seguida.

— Dá um abraço na sua família por mim. — Pede, forço um sorriso e aceno, então ele arranca com o carro. 

Com um suspiro profundo, ergo meu queixo, podendo notar os olhares rotineiros julgadores sobre mim. Por algum motivo, eram poucas as pessoas que gostava de mim e minha família, acho que por que nós sempre buscamos além da periferia, além do comodismo de viver uma vida medíocre… meus pais nem tanto, acho que conforme o tempo foram se acomodando, então conformaram-se morar ali por toda uma vida… ainda assim, eles sempre buscaram o melhor para minha irmã e eu, mamãe principalmente… ela nem sempre morou aqui… veio de família classe média alta, mas se apaixonou pela pessoa errada, não que se apaixonar por alguém de nível econômico diferente do seu, seja um erro… e se fosse, eu não poderia julgar… mas papai em si era um erro… desde sempre foi acomodado, ele vivia pensando unicamente no momento, e por isso muitas vezes julgava tanto eu e minha irmã por sonharmos em desmedida… mas ele ao menos, embora pensasse de maneira diferente, nunca foi um empecilho para nós… suspiro, me perguntando para que caminho minha família estava traçando, se algum dia papai se separaria de minha mãe, e se ele o fizesse, ela se recuperaria?  Eram questionamentos simples, mas com respostas imprevisíveis assustadoras.

Passo pelo portão de grade de minha casa sem sorrisos familiares, então sigo para dentro, a primeira que vejo largada no sofá é minha irmã, ela parece estar vendo algo relacionado a biologia no youtube da TV, já que não tem um computador. Usamos juntas o meu notebook de segunda mão, ele trava que é uma beleza, mas tem suprido nossas necessidades acadêmicas.

— Cadê a mãe? — Inquiro, seu olhar encontra o meu.

— Oi querida irmã Lia, como você está? A Ellie, estou muito bem, obrigada por perguntar. — Minha irmã parafraseia cheia de ironia, reviro os olhos.

— É sério, Lia, estou preocupada com ela e papai… — Confesso meu receio com minha irmã. Temos uma diferença de três anos, nossa proximidade de idade nos torna bem próximas,  não a tenho como minha maior confidente, mas a tenho como uma amiga, assim como ela me tem. Mas diferente de mim, que tem um círculo de amizade quase nulo, minha irmã é bem popular na escola. Já eu me limito em sua amizade, a Alicia que conheço-a desde o jardim de infância,  ela mora na periferia também, mais precisamente logo no início do bairro. Joana e Sérgio da faculdade. Consigo conversar muito bem, mas sempre preferi um ciclo pequeno…

—Está trancada no quarto desde que cheguei da escola. Levei almoço, mas ela mal tocou… — Minha irmã suspira, ela tenta se fazer de dura, indiferente sobre a relação dos nossos pais, mas nitidamente a afeta, assim como me afeta— Quando eles vão se acertar de vez? — Minha irmã questiona, eu ergo os ombros.

— Não sei, Lia, só espero que em breve, o estresse a deixa mais debilitada… — Digo com chateação. Minha mãe desde muito tempo tem problema nas costas devido um acidente que sofreu no tempo em que ela trabalhava em um restaurante… ela na maioria dos dias embora uma dorzinha aqui, outra ali, estava muito bem… mas a situação com meu pai tem desencadeado quadro de dores fortes e constantes, que vez e outra nos faz recorrer ao médico que tem a acompanhado desde então, ele não é nada barato, é mais um dos custos de nossa lista de despesas… ela até costumava ir em um do SUS, mas geralmente o retorno levava tanto tempo, que mamãe não conseguia esperar… após eu insistir muito, papai ativou o plano médico da empresa, mas eles cobram apenas cinquenta por cento dos custos.

— As vezes espero que eles se separem…

— Lia! Pelo amor de Deus… — A repreendo, mesmo que tenha pensamentos muitos semelhantes aos dela, minha irmã encolhe os ombros.

— Onde está o notebook? Preciso fazer um trabalho. — Eu suspiro, indicando minha bolsa no sofá.

— Vou olhar mamãe… — Aviso, ela assente, assim, sigo as escadas que levam aos dois quartos do andar de cima da casa.

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