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Capítulo 2

Isla

O Café Social, um nome ridículo para uma cafeteria tão esnobe quanto o título, é o local onde trabalho como atendente de balcão, barra garçonete, barra faxineira, que é frequentado por clientes ainda mais ridículos e mesquinhos do que a mente humana pode suportar em um turno que dura entre dez a onze horas, isso quando não há horas extras a serem feitas, seis dias por semana.

É um verdadeiro teste de fé e sanidade ter que manter um sorriso ensaiado no rosto enquanto faço um malabarismo servindo tortas, café e chás gelado, para a nata da sociedade que pode pagar uma pequena fortuna nessas refeições e aproveitar o momento para tirar o pouco do meu sossego com seus dramas e chiliques.

-Saindo o pedido da mesa cinco! -Paris, o chefe da casa grita da cozinha, a sineta é tocada em seguida e sei que sou quem deve levar o pedido.

-Estou indo. -me apresso em pegar a bandeja com o pedido e no caminho observo o que a mesma contém.

As pessoas tem a mania dizer que você é o que você come, que o que você ingere mandando para dentro do próprio corpo diz um pouco sobre você. Baseando-me nessas baboseiras sem sentido, gosto de pensar que conheço em parte o cliente a ser atendido simplesmente pelo fato de observar seu prato.

Olho para a que está em minhas mãos e checo: Torta de limão com raspas de chocolate, café preto, forte com pouco açúcar... uma escolha sóbria, sem frescuras e de sustância. Um homem talvez? Na casa dos trinta a quarenta anos de idade, provavelmente.

-Boa tarde, seu pedido, senhor. -anuncio minha presença aproximando-me pelas costas do cliente, que como eu supunha é um homem.

Paro ao seu lado e começo a tarefa distribuir a refeição sobre a mesa sem fitar seu rosto, concentrada em não derrubar nada durante o processo.

-Boa tarde, mocinha. -ele responde.

Sua voz grave quase me faz perder o equilíbrio da xícara contendo o café, porém com uma agilidade impressionante, o homem me ajuda a evitar o desastre ao firmar minhas mãos vacilantes até que eu deposite a louça cara e refinada sobre a mesa em segurança.

-Desculpe, não quis assustá-la. -ele ri, contrariando minhas expectativas anteriores de que levaria uma bronca pelo deslize, e eu olho para seu rosto imediatamente tendo um sobressalto no mesmo instante.

-Professor Blake! -exclamo surpresa ao notar o professor de literatura em trajes tão atípicos como a jaqueta de couro preta que usa no momento, e a falta dos fiéis e inseparáveis óculos de grau de armação quadrada.

-Acho que está se dirigindo ao Blake errado, mocinha. -ele responde em um tom brincalhão e pisca um de seus olhos verdes para mim.

Fito-o confusa. Por que de repente o senhor Blake está agindo de forma tão estranha e me olhando desse jeito esquisito? Como se estivesse se divertindo com a situação ou talvez interessado em me constranger.

-Imagino que deve estar confusa. -ele prossegue, um meio sorriso nos lábios. -Muito prazer, sou Andrew Blake, irmão gêmeo e três minutos mais novo do professor Blake. Muitas pessoas costumam nos confundir, e Derek quase tem uma síncope toda vez que isso acontece. -ele ri. -Você tem que ver um dia, mocinha, é hilário. -ele comenta de maneira displicente enquanto sorve um gole do líquido negro e corta uma fatia de torta ocupando temporariamente a boca.

Muitos pensamentos se mesclam em minha mente cansada e perdida nesse momento, entretanto duas coisas é que mais se sobressaem as outras. A primeira delas é, como eu não sabia que o professor Blake tem um irmão, ainda por cima gêmeo, e em segundo lugar, por que esse mesmo irmão, que agora está invadindo meu espaço de trabalho, adquiriu dentro de poucos minutos de interação, a irritante mania de me chamar de mocinha. Nós nem nos conhecemos direito para ter tamanha intimidade e troca de apelidos.

-Hum... certo. Deseja mais alguma coisa, senhor Blake? -pergunto escondendo a bandeja a minhas costas e implorando intimamente para que ele dispense logo meus serviços para que possa me refugiar atrás do balcão, onde tenho ciência de que estarei segura de cometer qualquer gafe e ter o salário descontado no final do mês por causa disso.

-Só Andrew, por favor. -ele pede após mais uma garfada na torta e tudo o que eu quero é sair correndo. -Isso está maravilhoso. Para mim já chega. Estou satisfeito por enquanto, mocinha. -ele diz e quando respiro aliviada fazendo menção de me mandar, Andrew retorna a falar, obrigando-me assim a permanecer por mais algum tempo a ouvi-lo. -Sabe, olhando bem para o seu rosto você me parece um pouco familiar. -ele pondera por alguns segundos, examinando meu rosto atenciosamente e eu resisto bravamente contra a vontade de esboçar uma careta mediante o comentário sem noção.

É claro que um homem metido a rico e provavelmente muito conhecido na cidade devido ao sobrenome de peso que carrega, não teria cruzado comigo ou com alguém que conheço em seu círculo social nenhuma vez na vida. Era meio ridículo pensar em uma situação em que isso pudesse ter acontecido, é o que digo para mim mesma, tendo o cuidado de não reproduzir esse pensamento em voz alta e ele me ouça.

-Acredito que não, senhor. -é o que me limito a responder, aguardando por sua dispensa.

-Não sei não, hein. -ele parece desconfiado ou tentando puxar da memória algo que não faço a mínima noção. -Seu rosto, seus cabelos, sua aparência como um todo... tem algo de diferente. Posso não estar me lembrando agora, mas em algum momento eu irei me lembrar de onde a conheço. Pode ter certeza disso.

Andrew afirma tão convicto que tenho a impressão de que ele está determinado mesmo com esse lance, e que isso não é apenas uma brincadeira.

-Bom, acho que estou falando muito e tomando do seu tempo mais do que deveria. -ele bebe o restante do café preto e coloca a xícara sobre a mesa, afastando-a um pouco mais para longe. -Não quero atrapalha-la em seu horário de expediente. -ele diz enquanto finaliza a torta em seu prato e eu me mantenho impassível até que termine. -Agradeço por ter me feito companhia e escutado meu blá blá blá sem fim, é que eu gosto bastante de tagarelar, se é que você já não percebeu esse detalhe. -ele gargalha. -Quem sabe um dia a gente possa conversar de verdade acompanhados de uma boa xícara de café e mais torta?

-Pode ser. -respondo apenas para não ser mal educada com o cliente, porque nunca que eu teria grana para comer num lugar como esse e ainda conseguir equilibrar as contas com os gastos do mês.

-Vamos marcar, qualquer dia da semana em que você não esteja de serviço. -dia nenhum então, penso comigo.

-É claro. -sorrio de maneira polida.

-Pode me trazer a conta, por favor. -Andrew pede e em poucos segundos eu estou de volta. Ele mal olha o valor da nota e passa o cartão na maquininha sem o menor esforço, como se aquela quantia não fizesse a menor diferença em seu bolso.

E certamento não faz mesmo. Essa é a realidade.

-Tenha uma boa tarde...? -ele se levanta deixando o assento.

-Isla. -digo sanando sua dúvida implícita.

-Isla. -ele repete gravando o nome. -Bonito nome, Isla.

-Obrigada, senhor Blake.

-Andrew. -ele me corrige. -Tchau, Isla. Espero que tenha um ótimo de dia de trabalho. -e com isso ele se despede finalmente me deixando livre para prosseguir com meu serviço.

*

Às dez e meia da noite meu turno chega ao fim. Tiro apressadamente o uniforme da cafeteria, dobro com cuidado para não amassa-lo e o guardo em minha mochila. Já vestida com a roupa para voltar para casa, desfaço o rabo de cavalo obrigatório que tenho de usar durante o horário de expediente e espalho meus cabelos pelo pescoço na tentativa de me aquecer, já que hoje é mais uma dessas típicas noites geladas de cidade serrana.

-Já está de saída, Tibuco? -Paris aparece com seu rosto redondo e muito sério como de costume, através do batente que separa a cozinha do balcão de atendimento.

-Sim, estou indo embora antes que fique muito tarde. -me viro em sua direção, meus dedos a segurarem a maçaneta da porta de saída com força. -Precisa de algo? -questiono mesmo que não tenha a intenção de me demorar nem mais um minuto aqui.

-Não, não. Está tudo sobre controle, eu me viro. Só... tenha cuidado ao voltar para casa. Essas ruas estão muito perigosas para uma menina da sua idade ficar dando bobeira essas horas. -ele diz com sua carranca, mesmo que a seu modo rústico e seco, sei que Paris se preocupa comigo.

-Eu terei. Boa noite, Paris. Até amanhã. -abro a porta após digitar a senha que a destrava.

-Até amanhã, Tibuco. Não se atrase.

Eu nunca me atraso, penso em dizer mas desisto. Não faria a menor diferença mesmo. Com meus tênis all star vermelhos um tanto surrados pelo uso, sigo pelas ruas silenciosas e desertas do bairro nobre onde a cafeteria se localiza e aperto mais o casaco de lã em volta do corpo quando uma corrente de ar frio me atinge e eu tremo. Faço em vinte minutos o trajeto que separa o bairro dos absurdamente ricos até chegar a parte da cidade em que vivem os relativamente pobres, que é o meu caso, claro. Ainda tenho mais vinte minutos de caminhada até minha casa, por isso aperto o passo, não quero ser surpreendida por algum marginal mal intencionado ou talvez por outra situação ainda pior.

Não chego a percorrer cinco metros, quando estou atravessando a rua vejo de longe dois rapazes bem vestidos com suas roupas de grife, alunos do segundo ano do Potossin Honório, percebo quando um deles se vira mostrando o rosto. Nenhum dos dois me nota, é claro, chapados do jeito que estão não perceberiam nem se tivesse um camelo bem diante dos olhos. Peço a Deus que continuem assim, distraídos em seus próprios mundos enquanto tento passar alheia, se possível invisível. Não é nenhuma novidade ver gente assim aqui nessa parte da cidade. Pessoas ricas, filhinhos de papai tem a tendência em serem inconsequentes, vivem se arriscando nos becos e subúrbios sempre em busca de nova aventura.

-Ei Sebastian, aquela garota ali não é aquela do café? -me encolho ao sentir seus olhares sobre mim, mas não desacelero, continuo a caminhar sem fazer questão de olha-los de volta.

-Quem? -Sebastian ri da pergunta, muito fora de si devido as substâncias que consumira. -Você tá falando daquela que trabalha? A garçonete que é bolsista no nosso colégio? -o outro pergunta em dúvida, mas com um tom de deboche nas palavras.

-Essa mesma. -ele concorda e então ambos vêm em minha direção.

Os olhares de maluco me deixa assustada. Eu não perco tempo, praticamente corro, colocando distância entre nós o tanto que minhas pernas e pulmões permitem.

-Ei, calma aí, garçonete. Você até que é bem bonitinha, porque não vem cá servir um cafezinho pra gente? Mostra pra elite o que você sabe fazer de melhor. -Sebastian sugere maliciosamente e eu sinto o medo se infiltrando em cada poro do meu ser.

Eu não desisto, corro mais, consigo avançar um total de uma quadra e meia antes de acabar tropeçando em um buraco no asfalto esburacado que existe nessa rua. Caio com tudo no chão, e para proteger a cabeça da eminente pancada, ponho as mãos em frente ao rosto. A primeira ardência que me acerta é a das mãos sendo raladas em carne viva, depois através do rasgo que agora é parte da calça jeans que visto, vejo os joelhos arranhados com um filete de sangue a escorrer.

Mas o pior de tudo não são as dores físicas, o mais horrível é o pânico que me assola quando aqueles dois imbecis chapados por fim me alcançam. Não tenho mais forças para me levantar e fugir. E mesmo que tivesse, seria facilmente alcançada novamente. Eles são atletas, estão em boa forma e eu estou exausta de um dia inteiro de trabalho em pé e machucada.

-Te encontramos, garçonete. -Sebastian diz ofegante pela corrida.

Viro o rosto, não quero olhar naquela cara de idiota dele e não poder bater bem no meio dela com toda a força que possuo.

-Aí, gracinha, por que não vem dar uma voltinha com a gente? Vai ser divertido. -ele se agacha ao meu lado, enrola uma mecha do meu cabelo no dedo indicador e eu tenho vontade de vomitar. -Você não vai... -então de repente um farol alto nos cega e um carro, de grande porte de onde vejo, avança sobre nós em alta velocidade.

-Mas que merda, é essa?

Ouço Sebastian gritar desesperado enquanto cubro o rosto esperando a morte passar por cima de mim em forma de automóvel. Mas isso não acontece. O que ocorre em seguida é o som de pneus cantando em uma freada brusca parando tão perto de mim, que sinto o calor do motor daquela máquina praticamente colado ao meu rosto.

-Sobe. -a ordem vem acompanhada com a abertura da porta do carona para mim. -Agora!

E eu tenho duas opções e apenas uma escolha. Ficar e sofrer nas mãos desses dois malucos ou entrar no carro de um desconhecido correndo um risco tão grande quanto ficar. Nas duas possibilidades posso me dar mal de qualquer forma, porém tempo é algo que não tenho para pensar muito a respeito. Então faço uma escolha. Rápida e cega. Eu assino meu destino ao entrar naquele carro, bater a porta e sumir pelas ruas a fora na companhia de um total estranho em alta velocidade.

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