Quem sou?
Beatrice Costello
Mas queria estar ali e em nenhum outro lugar do mundo, ver aquele que por um único momento foi o ar que respirava, o dominador do meu demônio se transformar em cinzas é como gozar sem transar. E por mais que ninguém pudesse ocupar o seu lugar, ainda na morte ele é minha dor mais profunda, minha cicatriz mais aberta e mais exposta ao sol.
O sonho de uma vida feliz e de construir um amor puro junto a uma família grande, é o meu sonho de comercial de margarina que acabou de virar fumaça.
Esperei que em algum momento o arrependimento atingisse, que a dor me deixasse entorpecida, que o ar faltasse. Ainda assim, por alguma piada do destino senti os pulmões puxando o ar de maneira confortável pela primeira vez, senti o prazer enchendo as veias. Revirei os olhos para a bagunça, esse foi o único momento de desconforto que senti.
Me beba, me alimente e me deixe te mostrar a luz.
Meu demônio parecia finalmente livre de seus grilhões e por alguma loucura, isso é reconfortante.
Peguei o álcool na prateleira ao lado e caminhei em direção ao machado sujo na mesa, com uma flanela nova, comecei a limpar o sangue, sentindo o cheiro da ferrugem e observando o brilho do machado aparecer.
Continuei o mesmo processo em cada faca, cada gilete, cada agulha e em cada alicate, todas as últimas vinte e quatro horas que passei aqui valeram. Cada grito de dor presente dentro da memória guardado especialmente num lugar em que o passado não possa ser esquecido.
E agora cada pedaço de mim cobrou um preço para se manter, respirei o mais profundo que consegui apoiando na parede, peguei o celular na prateleira desligando o som e abrindo a porta. A escuridão abraçou como uma velha amiga, subindo cada degrau esperei sentir qualquer remorso e tudo o que senti foi um imenso nada.
Caminhando pela casa escura, tateando pelas paredes algum apoio para as pernas cansadas consegui chegar ao quarto, e como em uma prece silenciosa conectei o celular ao sistema de som, joguei na cama sem me importar com a quantidade de ligações ou mensagens perdidas.
Suspirei, perdendo da realidade sentindo o sangue encher a boca depois de cortar os lábios mordendo.
Poderia ter perdido a sanidade e mesmo assim, não importava.
Sangue, fogo, cinzas.
O sussurro na mente trouxe o primeiro sorriso aos lábios e essa pequena sensação nunca mais iria embora. Dentro do banheiro percebi que o som já havia se desligado por talvez o celular ter finalmente descarregado, com a cabeça lívida caminhei para fora do banheiro de toalha segurando a sacola em que coloquei todas as provas que pudessem incriminar e sujando a casa toda de sangue, deixei a sacola do lado da porta da entrada para que não esquecesse de tirar o lixo mesmo sem saber se era dia de coleta ou qual dia é.
Caminhei até a bancada da cozinha em que costumava deixar o carregador e o conectei na tomada sentindo um pequeno choque na mão e uma bolinha vermelha aparecer instantaneamente na ponta do meu dedo.
A dor não incomodava mais, talvez ela tenha sido a única companheira verdadeira em todos esses anos. Me movi um pouco para a esquerda abrindo a porta da geladeira e pegando o suco de laranja, o leite e dois ovos. Preparei a frigideira e quebrei os ovos, pegando uma chaleira para passar um café coado e a colocando no fogo, peguei um copo e enchi de suco, observando os ovos estalando dentro da frigideira enquanto o estalo dos ossos se quebrando enchia minha mente e meus ouvidos.
A chaleira apitou e o cheiro dos ovos começou a queimar, fechei o fogo e coloquei os ovos em um prato raso, passei o café com a maior calma e precisão como a arte que é. Pegando minha maior xícara enchi de café e cobri com leite até respingar fora ao levantá-la do balcão, tomei um gole sentindo o estômago agradecer o alimento que tinha sido roubado de si. Olhei para o copo ainda cheio de suco, jogando o conteúdo pela cozinha se misturando com os pingos de sangue de cada machucado aberto.
O som de um carro do lado de fora não me surpreendeu, e quando uma das poucas pessoas com a chave da minha casa entrou, o silêncio pesou e o ar que entrava pela porta esfriou a casa.
Seus olhos revistaram a casa procurando algo que nunca mais estaria lá, o entendimento pareceu atingir seus pensamentos, observando meu pequeno café da manhã. Sua proximidade em passos lentos não surpreendia, mas o seu silêncio pela primeira vez na vida incomodava.
Os olhos tão escuros quanto os meus, o cabelo alinhado e a barba bem cortada marcando a pele clara, pela primeira vez na vida entendi a escuridão nos olhos do meu irmão.
Talvez os piores monstros não sejam aqueles que criamos, talvez os piores monstros sejam apenas nós mesmos.
Puxando a baqueta se sentando na minha frente num silêncio ensurdecedor, respirei fundo e voltei a xícara de café, não me incomodei com a porta da entrada aberta os passos daqueles entravam foram enchendo o pequeno cômodo entre um sofá e a cozinha.
Stefano fez questão de dizer que não era merecedora de uma casa grande, que o corpo ficaria deformado se engravidasse, a casa pequena que aprendi a odiar por ser uma prisão, as paredes com uma cor ridícula de verde, sem ter a menor opção de redecorar ou qualquer merda.
Levantei a cabeça e observei quieta, sentindo uma calmaria incrível dentro de mim.
Cada olhar carregado com uma interrogação que não poderia responder até a fome ter acabado, e o pior de tudo, é que essa fome não cessava a vontade de rebobinar cada momento como um filme sentindo cada sensação fechando os olhos, ao abrir me vi refletida nos olhos escuros, dei um pequeno sorriso de canto sentindo o desejo do monstro em se vangloriar.
Frente a frente com meu irmão sem nenhuma desilusão quanto ao destino do homem que foi meu marido, ele entendeu todas as entrelinhas do olhar, palavras eram desnecessárias e o suspiro ao segurar minha mão foi a sua forma de perguntar ‘você está bem?’ o aumento do meu sorriso se juntando ao seu igual ao meu, não poderia dar outra resposta.
Meus irmãos estavam ali por mim, o primeiro a falar sempre era Hunter
— Precisa de ajuda com a limpeza? – Seu olhar é cuidadoso, preocupado.
Os olhos verdes analisando cada parte minha exposta fazendo a raiva preencher o rosto esculpido de maxilar quadrado e boca cheia.
A decisão que tomei vai repercutir sobre todos nós de alguma maneira e esse é o seu jeito de dar seu apoio.
— Apenas a sacola de lixo ao lado da porta.
Ele se virou e caminhou até a porta pegando a sacola saindo fora da casa, todos nós observamos em silêncio a movimentação de ida e volta. Até estar parado novamente ao lado da bancada como se esperasse uma ordem ou um pedido.
— Certo, qual o plano? – Jack se virou de lado sentado no sofá agora com o corpo virado na nossa direção perguntando o que se passava pela cabeça de todos.
Os cabelos escuros em contraste com os nossos loiros, o rosto bem-feito, de lábios cheios e dentes perfeitos, o nariz um pouquinho torto e a expressão sarcástica de sempre estampada.
— Precisamos de uma história – Hunter respondeu sem desviar seus olhos dos meus.
— Forjamos a morte delas – Giácomo disse e pela primeira vez olhei para todos ali percebendo a falta de Bianca.