Doutora Relógio
27/06/2008
Alice Lopes
Estávamos nos dirigindo para a tal sala de lazer que o Lupa tinha mencionado. Seu corredor era um pouco assustador, já que tinha uma aparência quase sem cores. A maior parte da casa do Lupa tinha uma pintura que parecia ser de madeira, mas eu sei que não era desse material.
Entramos na sala de lazer. Ficava na última porta, que pelo visto era a última acessada da casa, no meio de tantas portas que o corredor apresentava. Lupa abriu a porta e permitiu que eu entrasse primeiro.
— Primeiro as damas. — Ele disse e eu adentrei o cômodo.
Fiquei encantada com o quanto tinha para oferecer aquela sala. No meio da parede oposta à porta, estava um piano preto e muito bem lustroso. Ao lado, tinha um conjunto de bateria e também um violão cor de madeira. Ao lado oposto da bateria e do violão tinha um violino também de cor madeira, mas de uma tonalidade mais escura se for comparar com o violão.
Fora esses quatro instrumentos, tinha à minha direita um monte de quadros que eram guardados com maior cuidado. Havia uma aquarela que estava em uma estante junto com poucos livros e também tinha pincéis e potes de tinta corante. Pelo visto, Lupa também pintava, além de tocar aqueles instrumentos.
À minha esquerda tinha mais uma estante, mas ela estava recheada de livros grossos e velhos. Eram poucos os novos que tinham. Lupa foi até a estante e colocou o livro que eu dei para ele no canto superior esquerdo da estante.
Estava encantada com o quanto que tinha dessa sala de lazer. De fato, Lupa era uma pessoa que conservava a cultura humana. Tocar um instrumento, realizar pinturas, ler livros, de fato era um lazer para ele e também um meio de se expressar. Confesso que ele ganhou meu respeito ao compartilhar um pouco de sua vida pessoal.
— Venha. Fique ao meu lado. — Ele disse, caminhando até o piano.
— Você vai tocar para mim? — Indaguei corada.
— Isso mesmo. Irei tocar piano e violino. Depois vou mostrar o que já pintei. — Ele disse. — Depois que eu tocar as duas músicas que eu mais gosto de escutar, poderá levar uma de minhas pinturas como presente.
— Sério? — Indaguei, erguendo a sobrancelha.
— Isso mesmo. Será um presente de gratidão por ter me dado o livro que eu tanto quis ler, ao mesmo tempo que me recompensou pelo meu trabalho com este gesto de abrir mão. De fato eu não confio nas pessoas, mas quando alguém demonstra se importar comigo, merece todo meu crédito. Por isso, a pintura que você tirar daquele monte de quadros, será sua.
Abri um sorriso para ele. Não esperava ter de ganhar um presente vindo de Lupa. Parece que esse cabeça-dura finalmente entendeu que eu queria ser amiga dele e consegui.
— Toque para mim uma de suas músicas favoritas. — Disse, juntando as mãos e apertando contra o meu peito. Estava encantada com o que poderia ouvir do soar do piano, com o Lupa tocando.
— Pode deixar. — Ele começou a tocar a música que gostava.
Lupa pressionou duas teclas brancas que estavam longe uma da outra, mas estavam um pouco perto do meio. Ele as pressionou por dois segundos, em seguida, mudou rapidamente para três teclas depois em relação à ambas que ele apertou e ficou durante dois segundos. Depois ele voltou para as que ele tinha pressionado e agora estava às duas teclas depois. Em seguida, ele volta mais duas teclas e assim foi fazendo, até que começou a apertar quatro teclas, mas demorava menos tempo para pressioná-las. As outras duas novas teclas eram duas depois das que ele ia apertando, para que a melodia do piano fosse mais forte, ao mesmo tempo gostosa de ouvir.
Conforme Lupa ia apertando as teclas do piano, podia-se ouvir o som do mesmo ecoando pela sala, na calada da noite. Já nem me importava mais se era meia-noite ou não. Queria escutar Lupa tocando aquele piano que tinha uma melodia tão bela e notável de se ouvir.
Agora ele apertava três teclas, mas de vez em quando ele apertava em uma tecla preta, para dar mais ênfase à melodia que saía do piano. Estava tentando decifrar aquela música que ele estava tocando. Já escutei ela em algum lugar alguma vez, mas não me lembro onde foi. Parei para pensar um pouco, enquanto Lupa continuava tocando.
Agora ele alternava em uma tecla preta e branca, para gerar um ritmo mais animado no piano, que produzia aquela bela e habitual melodia que vinha.
Chegou um momento em que ele foi apertando nas teclas devagar e curtindo a música. Estava de olhos fechados e balançava o corpo, que estava respondendo à melodia do piano. Aquilo estava me deixando encantada também, até que veio o momento em que me recordei da canção que ele estava tocando. Agora faz sentido. Essa canção era mesmo familiar para mim. Minha mãe adorava esse compositor. Minha família tinha pianista na família, meu primo e ele tocava em um grupo de orquestra.
Depois que Lupa deu uma última pressionada em uma tecla branca, ele se virou para mim e indagou:
— O que achou?
— Lupa, você toca tão bem… — Respondi para ele encantada. — Eu cheguei a viajar no tempo, enquanto você tocava.
Ele sorriu para mim e indagou:
— Você sabe de quem é essa música?
— Não. Nem o nome, mas eu já ouvi ela algumas vezes.
— Interessante como é o ser humano. Ele não consegue decifrar certos assuntos, certas melodias, certos sinais de lógica, mas compreende sua utilidade ou sua estrutura. — De repente ele disse aquilo, embaralhando minha mente. Depois de alguns segundos, ele conclui. — Essa música que toquei se chama Canon D. O compositor é o Johan Pachebell. Se eu não me engano, ele é italiano. Se for, é incrível como os italianos e até os lituanos adoram a música clássica. Eu confesso que amo, mesmo não sendo italiano.
Sorri para ele e depois olhei para o violino. Estava curiosa para saber como ele é tocando o violino. Lupa entendeu a mensagem. Ele se levantou do banquinho do piano e pegou o violino.
— Sente-se. — Ele disse, apontando para o banquinho onde ele tinha ficado e me sentei no mesmo.
Ele se preparava para tocar o violino e assim ele começa. Tocou moderadamente bem. Não foi tão rápido e nem tão devagar, até que ele foi desacelerando mais. Na hora percebi qual era a música. Mas infelizmente eu não lembrava o nome também. Era tão bonita. Meu primo tocava para a minha mãe, que é católica.
Lupa às vezes tocava mais rápido, mas como ele tinha começado e depois desacelerava de novo. Ele fazia isso para dar maior ênfase à música e explorar o quão bom pode ser o violino. Ele novamente toca o violino de um jeito mais suave do que antes, mas volta a dar mais uma acelerada leve e depois desacelera novamente.
Ele ficava nesse revezamento várias vezes para poder dar a impressão de que ele estava tocando corretamente a música e de fato estava. Incrível como o Lupa toca bem o violino. Mas eu acho que ele fica melhor no piano, mas é só minha opinião.
Derramei uma lágrima porque era muito bonito como ele estava tocando o violino. Ele dá mais uma acelerada a ponto de deixar o som do violino mais agudo e era notável isso. Aquele som do violino tocando era muito lindo. Na calada da noite, o detetive mais misterioso da cidade estava na minha frente mostrando um de seus talentos, que era tocar violino e piano. Era muito lindo. Estava amando tudo isso.
Lupa agora toca mais devagar para introduzir a parte principal da música, até que ele finalmente termina. Estava sorrindo para mim e fez reverência.
— Espero que tenha gostado dessa música. A maioria das pessoas conhecem, especialmente católicos, mas ninguém sabe o nome do compositor. — Disse Lupa.
— Mas eu não sei o nome da música. — Respondi sinceramente para ele.
O detetive me olha espantado, mas depois ele retoma o ar calmo e sereno dele e me responde:
— Esta música foi composta por Franz Schubert, mas não lembro agora se ele era alemão. Enfim, o nome da música é Ave Maria.
— Isso! Ave Maria! — Juntei as mãos e os meus olhos azuis brilhavam, encantada com o nome que Lupa me dera. — Minha mãe adora essa música.
— Mesmo? Quem sabe eu não vá tocar para ela um dia.
Comecei a rir e se escutava o sino da igreja. Era meia-noite. Incrível como o tempo passa, mas não estávamos com sono (ainda). Só em ouvir Lupa tocar piano e violino, já me deixava bem alerta.
Ele estava mirando para a sua estante de livros. Parece que ele queria ler. Deixou o violino ali mesmo e puxou uma caixa quadriculada.
Franzi a testa e indaguei:
— O que tem nessa caixa?
Ele puxou um baralho e tinha cartas daquele jogo que as crianças de hoje (2008) gostam de jogar: Uno. Não acredito nisso. Quer dizer que o Detetive Lupa gosta de jogar Uno? Pensei que era Pôquer ou algum outro tipo de jogo desse tipo.
— Eu joguei uma vez com um menino quando fui passar minhas férias em Porto Alegre. — Ele disse. — Fiquei encantado com o jogo e comprei um para mim. No entanto, lembrei que não tinha com quem jogar. Aquele menino também se mudou. Foi morar em Santa Catarina e eu nunca mais o vi.
— Que pena. Então você tinha um amigo?
— Ele não era meu amigo. Só um conhecido. Só vi ele uma vez, mas você sabe como sou rude para considerar alguém como amigo, não sabe?
— Sim, eu sei.
Lupa me chamou para sentar em uma mesa que tinha no canto da sala. Ela ficava ao lado da estante e indicou que eu ficasse no banquinho mesmo.
Agora eu irei testar a estratégia do Lupa. Ele se sentou em uma cadeira que estava oposta de onde eu estava e ali começamos a jogar o famoso Uno.
Lupa me dá nove cartas viradas para baixo, após ter embaralhado e pega nove cartas para ele também. Colocou o bolinho na lateral da mesa e pegou suas cartas.
Como eu não sabia quais cartas ele teria, só saberia as minhas e compartilharei com o leitor. Três cartas vermelhas, de número 1, 3 e uma de 2; quatro cartas amarelas de números 2, 4, 6 e uma de reverso e por último, uma carta verde de bloqueio e a outra azul que era um número 7.
Ele tirou uma carta do monte e era um 5 vermelho.
— Primeiro as damas. — Ele disse.
Soltei o número 1 primeiro. Iria fazer ele comprar mais duas, caso ele tenha apenas uma carta. Ele solta um 4 vermelho. Bem, pelo visto estávamos igualados. Soltei meu 3 vermelho e ele comprou uma carta. Pelo visto, vou ganhar.
Ele abre um sorriso e fala:
— Parece que tenho sorte.
Era um 4. Arregalei os olhos e escuto ele falar:
— Quero a cor verde.
Abri um sorriso. Tinha uma carta verde e era de bloqueio. Após ter comprado minhas cartas, vi que era um 4 também, um 2, uma reversa e um bloqueio de cores vermelha, verde e amarela. Pelo visto, estava com sorte até aqui. Tinha tudo para vencer o Lupa no Uno.
Eu baixei minha carta verde de bloqueio e escolhi a cor vermelha, depois de ter baixado um 4.
Ele compra as cartas e baixa um bloqueio vermelho. Não acredito nisso. Estávamos com 12 cartas cada um, ele agora estava com 11. Em seguida, ele lança um reverso vermelho, agora tinha 10. Fiquei chocada com isso e por último, ele lança um 2 vermelho agora.
Mas que droga! Antes estávamos empatados, agora está com apenas 9 cartas e eu com 12 e agora vai me fazer comprar mais 14 cartas. Fiz o que o jogo mandava e me veio uma carta de mudança de cor e outra era um 5 amarelo. Estava cheia de cartas e não queria mudar a cor ainda. Vou me livrar das vermelhas, mas agora ele embaralhou minha mente que nem sei mais minha estratégia.
Lancei minha carta de número 3 e ele lança um 4 agora. Está de brincadeira comigo. Ele está com 8 e eu ficarei com 18.
— Quero a cor verde. — Ele disse.
Por que ele insiste tanto em verde? Estou desconfiada disso. Comprei as quatro cartas, mas não me veio nenhuma sorte. Somente um número 5, 7, 8 e 9 da mesma cor: verde. Joguei a número 5 e ele lança um 2 verde.
— Está de brincadeira, Lupa. — Reclamei.
Ele começa a rir e agora ele estava com 7 cartas e eu com 20 agora. Eram agora um 5 vermelho e um 6 verde. Lancei o 6 e ele lança um bloqueio, um reverso e um 2 verde, tudo junto. Ele está com 5 cartas e eu ficarei com 22.
Comprei e só tinha um 7 e um 3,vermelho e azul.
Decidi trocar a cor da jogada e escolhi a cor vermelha novamente. Tinha que ganhar no vermelho. Lancei uma carta reversa, comprei outra e me veio um 6 amarelo. Que raiva. Passei a jogada e o Lupa lança novamente e mesma jogada. Um bloqueio vermelho, um reverso e mais duas cartas. Ele já estava com duas e eu congelei na hora. Estava com 24 cartas. Como me livrar disso tudo? Joguei uma carta com uma numeração e ele compra uma carta. Ele joga um bloqueio um vermelho e fala:
— Parece que venci.
— O quê? — Indaguei, espantada.
Ele joga uma carta de mudança de cor e fala que quer azul. Em seguida, ele grita Uno. Joguei meu 3 azul e ele bateu a carta dele. Um 2 azul. Nossa, bati o recorde de ter comprado muitas cartas.
Lupa abre uma barra de chocolate e come satisfeito.
— Até que foi divertido. — Ele comentou.
Em seguida, Lupa olha para os quadros, enquanto eu estava tentando entender as jogadas que ele fez. Foi tudo tão rápido. Cheguei a me confundir inclusive no que tinha que fazer.
— Alice, pode escolher a pintura que você quer levar. — Ele comenta, voltando eu voltar para a realidade.
Voltei para o meu estado normal e assenti com a cabeça. Levantei-me do banquinho e fui até os quadros. Puxei um e me encantei com o que tinha nela.
— Bem, Alice, esta pintura revela o símbolo de esperança na confiança na humanidade. Espero que você a leve, entendendo o que sinto.
Quem estava no quadro era… Eu!
×××
30/06/2008
Detetive Lupa
Sim, meu caro leitor. Eu fiz uma pintura de Alice Lopes. O motivo era que um dia eu me peguei pensando em algo que seja a última esperança para que eu pudesse recuperar a confiança nos humanos e encontrei. Era a minha colega de trabalho. Era a mais carismática da nossa equipe. Bela, gentil, extrovertida e muito popular, Alice Lopes conquistou em mim novamente a confiança, mas esta apenas era mostrada perante ela, nada mais disso.
Na pintura, ela estava de braços cruzados com o seu terno de trabalho e sorrindo abertamente. Era um fundo cor de vinho onde ela se situava na pintura e bem no canto inferior direito estava minha assinatura. Temi que era ali que revelava meu nome, mas como eu confio muito na minha colega, sei que ela vai dizer que fosse um outro amigo dela que pintou ou então nem mostrar a pintura que fiz dela para ninguém.
Sem mais delongas, vamos para o dia de hoje e este dia, meu caro leitor, é um dos mais marcantes para mim e talvez para a minha equipe. Vou contar o que houve, por isso estou narrando esta estória momentaneamente.
Estava andando de bicicleta indo para o departamento de polícia. Sim, eu não tenho e nem gosto de carros. Eles poluem o meio ambiente, além de favorecer o sedentarismo, mas isto é apenas uma opinião minha. Saudade do tempo das carroças ou quando as pessoas andavam a cavalo, a camelo ou iam a pé mesmo.
Deixei minha bicicleta presa em um cano que tinha na frente do departamento onde circulava o sistema de água, com um cadeado e quando eu ia adentrar o local de trabalho, escuto alguém gritar meu nome:
— Lupa!
Eu parei na hora. Aquele dia azulado com um sol não muito forte e com um pouco de vento estava me fazendo sentir um pouco de frio, mas eu congelei por completo ao ouvir aquela voz feminina familiar para mim, que gritava meu nome. Fui me virando para ver a autora daquele grito e não podia imaginar. Era ela mesmo. Aquela mulher negra de cabelos curtos, platinados e penteados para o lado, de olhos verdes, usando óculos vermelhos e um terno cinza feminino, com calça social e sapatos de salto, acompanhados de meia de nylon, estava me chamando.
Arregalei os olhos surpreso, pois aquela mulher, meu leitor, era uma pessoa na qual eu desejei nunca ter cruzado o caminho, nunca ter conhecido e feito o bem para ela. Fui caminhando devagar até ela, que estava escorada, com os braços cruzados sobre o mesmo modelo de carro de Alice Lopes, mas a cor era branca. Ela estava sorrindo para mim, como se tivesse gostado de me ver.
Chegando perto dela, arqueei a sobrancelha e apertei forte o punho.
— Há quanto tempo, Detetive Lupa? De fato faz cinco anos, oito meses, nove dias, sete horas, dez minutos e cinco segundos que não o vejo. — Ela disse calmamente e saindo de perto do carro.
— Dentre tantas pessoas. — Eu disse, sorrindo. — Você foi a última que eu queria ver na vida. Mas estou surpreso que esteja aqui em Colina Verde, Doutora Relógio.
Sim, era ela mesma. Doutora Relógio, 38 anos. Ela cresceu junto comigo durante nossa jornada nos estudos. Ela era muito mais inteligente do que eu, mas era mais tecnológica, mais revolucionária, enquanto eu era mais conservador. Ela estava sempre contando o tempo, por isso o apelido de Relógio. Ela foi admitida como advogada para trabalhar na fronteira com a Argentina, mas agora ela está em Colina Verde. Pelo visto ela foi transferida novamente.
— O que a traz aqui, Doutora Relógio? — Indaguei para ela. Nasceu em São Paulo, mas veio para o Rio Grande do Sul ganhar a vida.
— Bem, a Ordem dos Advogados me transferiu para Colina Verde substituir um advogado afastado por esquema de corrupção. — Ela respondeu. — Estou dentre as melhores advogadas do país, enquanto você está dentre os melhores policiais. Não acha que depois de tanto tempo, nos encontramos de repente por acaso, Detetive Lupa?
Ela estava se aproximando de mim, com intenção de querer me beijar. Já nos relacionamos antes e ela foi quem mais me usou e me criticou pelo meu perfil. O motivo de nossa rivalidade será explicado mais tarde.
Coloquei a mão no ombro dela e disse:
— Pare. Se você está trabalhando na Ordem dos Advogados, a junta fica oposta onde fica o departamento de polícia.
Ela sorriu maliciosamente e respondeu:
— Era de se esperar do Detetive Lupa.
Ela tira do bolso uma caixinha de cigarro, pega um e começa a acendê-lo. Pelo visto ela não se curou do vício do cigarro. Desde os 18 anos ela vem fumando.
— Você não perdeu esse vício pelo visto. — Falei para ela, depois de pegar um chocolate.
Ela dá uma baforada para o lado e depois olha para mim, enquanto comia o meu vício.
— Se o meu mal é o cigarro, o seu é o chocolate. Se eu pegar um câncer, você vai pegar uma diabete. E então? Como fica? — Ela dá mais uma tragada no cigarro e eu uma mordida no meu chocolate.
— Entenda, Doutora Relógio. O meu vício é mais aliviado do que o seu.
— Bem, eu não consigo uma porra de homem nesse mundo. Então para mim, tanto faz. — Ela dá outra baforada para o lado e faz uma expressão mais cansada.
— Tem o Eduardo Mendes.
— Aquele caolho? Nem pensar. Não gosto dele. Muito bagaceiro.
— Posso não gostar de sua pessoa, mas disso eu concordo.
— Então temos algo em comum.
Dou mais uma mordida no meu chocolate e guardo a embalagem no bolso. Ela dá um suspiro de risada e depois uma leve tosse, jogando e pisando no cigarro, que já estava no chão.
— Você é muito correto, Detetive Lupa. Mas uma coisa eu digo. Não cruze a minha área que eu não cruzo a sua.
— Lamento, mas não posso evitar isso, Doutora Relógio. — Respondia sem mostrar medo para uma suposta ameaça dela. — Posso passar na Ordem dos Advogados, mas não porque quero e sim porque estou a trabalho.
Ela vira o rosto debochando e em seguida, ela volta a me encarar.
— Então não passe ali que não seja a trabalho. Senão eu acabo com você.
Ainda não demonstrava nenhuma emoção, mas depois respondi:
— Faça o que quiser comigo, Doutora Relógio. Mas se eu quiser posso passar ali.
— É mesmo? Então você é valentão com as mulheres?
— Já derrubei um homem com dois metros de altura, só para salvar meus amigos.
— E onde está a prova?
— Na internet. Procure por lá e saberá.
Ela olha para o lado com ares de deboche ainda e parecia pensar em algo.
— Faça o que quiser então. Não perderei mais meu tempo em tentar atazaná-lo, já que o meu tempo é precioso.
Ela entra no carro e baixa o vidro, dizendo:
— Você tem três minutos para entrar no seu local de trabalho. Não se atrase. Que eu saiba, o Detetive Lupa consegue ser até mais pontual que a Doutora Relógio.
— Eu sei priorizar meu tempo muito melhor do que você, Doutora Relógio. — Rsspondi para ela.
Ela coloca mais um cigarro na boca e responde, depois de ter baforado um pouco:
— Faça o que quiser. O tempo é seu. Irei voltar ao meu trabalho agora. Tenho três minutos, trinta segundos e cinco décimos para chegar lá. Até uma próxima, Detetive Lupa.
Ela liga o carro e o arranca, saindo em seguida.
— Não acredito. Aquela era a Doutora Relógio? — Escuto uma voz masculina falar, enquanto se aproximava. Era Eduardo Mendes.
— Sim. Doutora Relógio está em Colina Verde. — Respondi para ele.
— Nunca gostei daquela mulher. Ela é muito exibida. Confesso que entre você é ela, prefiro você, até para casar.
Achei estranho o jeito que ele mencionou isso, mas voltei a olhar o carro da Doutora Relógio, que sumia aos poucos.
— Parece que a minha dor de cabeça só tende a aumentar. — Comentei com Eduardo Mendes, onde este largou uma tremenda risada.
— São coisas da vida. Vamos. Senão a Marple fica me incomodando e hoje quero mandar todo mundo à…
— Eu já entendi, Mendes. Vamos. — Respondi para ele.
Detestava palavrão e sei muito bem que a Doutora Relógio também deve odiar.
×××
30 de junho de 2008
Alice Lopes
Estávamos todos trabalhando agora. Cada um realizava a sua função, depois de um fim de semana bacana. Amei o quadro que ganhei de Lupa, confesso, mas não revelarei para ninguém, até para não comprometer sua identidade verdadeira.
Lupa estava ajudando Marple nas partes administrativas. Eduardo Mendes estava mexendo no computador, preenchendo alguns boletins. Eu estava mandando e-mails para as pessoas que registravam suas queixas. Bruno Jalkh e Ketlin Mahoney estavam analisando um corpo que deixaram para fazer no fim de semana.
Todos trabalhavam, até que se ouviam gritos vindo do corredor. Isso chamou atenção de todos e Eduardo Mendes se levantou para ver o que era.
— Eu não acredito que não vão resolver meu caso! Que merda mesmo! — Aquela voz era familiar para nós. Parecia estar mais cansada, ao mesmo tempo que bem espontânea. Só podia ser o Bill Esteves, conhecido como o bêbado da cidade.
Ele era gordo, tinha cabelos pretos, que lhe cobriam as laterais da cabeça, a barba sempre por fazer e usava das roupas mais informais que tinha. Sempre de chinelas de dedo, mesmo no frio. Estava usando um casaco pretp desta vez, mas as roupas eram sempre as mesmas. As pessoas às vezes o confundiam com um morador de rua.
— Ei! Ô Bill! Faz menos escândalo! — Grita Eduardo Mendes, para ajudar.
Dois malucos gritando agora. Ninguém merece. Ambos se davam bem, Bill não gostava do Lupa, mas o respeitava, não era que nem aquela mulher que agora é advogada. Tinha até um apelido, mas não lembro o nome dela agora.
Bill chegava até Eduardo Mendes e dizia:
— Esses seus colegas, misericórdia! Negaram minha reclamação!
— Que reclamação? — Indaga Eduardo Mendes.
Todos nós estávamos olhando os três conversarem. Lupa era o que parecia ficar maia entediado.
— Tem um filho da puta que fica tocando aqueles rock brega dele e eu tenho que aguentar? Ah, por favor, nem pensar! Vim aqui reclamar, mas não quiserem me atender porque disseram que da última vez eu estava mentindo. Era só uma senhora limpando a casa e gritando com o cachorro porque tinha cagado no chão.
— Olha o linguajar, Senhora Jane. — Murmura Lupa para a Jane Marple.
— Ah, mas nem me fale nisso, Bill. Acredita que eu tenho um vizinho que é funkeiro? Ele fica tocando aquele funk bem alto! Isso me dá uma raiva! A vontade que eu tenho e fazer ele comer aquele som dele! Aquele desgraçado!
— É bem assim mesmo, Mendes! Ou então são aquelas música de hip hep hip hap hip hop, ah, sei lá qual o nome dessa bagaça! Toda hora tocando alto aquela desgraça! Eu não tenho saco para aturar isso! Prefiro ficar ali com a minha cervejinha! Não estou fazendo mal a ninguém.
Lupa revirava os olhos. Odiava gritaria ainda mais no ambiente de trabalho. Palavrão e jeito informal ele não gostava também. Eu até achei engraçado os dois conversarem. Confesso que acho o Eduardo Mendes engraçado às vezes.
— Daí eles ficam. ONE! TWO! THREE! ONW, TWO, THREE, FOUR! AAAAAAHHHHHH!
— AAAAAAAAHHHHHH!
ficaram os dois gritando agora. Os policiais que vinham passando ficaram um pouco assustados e saíram de lá, continuando a seguirem seus destinos.
— Eu não entendo para que aquela gritaria? Pelo amor de Deus! Não dá para entender!
Bruno Jalkh estava se chacoalhando, com o rosto vermelho, enquanto se segurava para não rir alto, mas era nítida a sua vontade. Até eu estou com vontade de rir.
— Ou então aqueles funkeiro que ficam: Novinha, bumbum, desce, desce! — Eduardo Mendes que rebolava um pouco a bunda, mas ele estava de costas para nós e o Bruno Jalkh se segurava mais ainda para não rir.
Jane Marple e a Ketlin Mahoney também começaram a rir, somente o Lupa estava sério.
— Ou então vem aquele tal de Emicem, Emitem, Emilem, ah, sei lá qual o nome daquele cara. Já ouviu ele cantar, Mendes? Parece uma metralhadora na boca. — Ele imita o Eminem cantando, mas cuspia na cara do Eduardo Mendes, que se irritava.
— Seu filho da puta! Você cuspiu em mim, seu abobado!
Bruno Jalkh começou a rir, enquanto chorava ao mesmo tempo. Sua risada saía quase sem força. Ketlin Mahoney, Jane Marple e eu ainda estávamos nos segurando, enquanto Lupa ainda era o único sério.
— Desculpa aí, Mendes. Eu não sei imitar ele.
— Então por que tentou imitar, seu bêbado cabeça de vento?
— Olha que eu sei brigar!
— Bom para você!
Lupa fica entre os dois.
— Senhor Bill Esteves, se quiser eu posso ajudá-lo, mas não incomode mais meus colegas. Conte-me o que houve.
— Ah sim, bem… — O bêbado e o nosso detetive iam caminhando, enquanto Mendes se limpava com um lenço que ele tirou do terno.
— Porco filha da puta. Molhou todo meu terno com aqueles cuspe dele! Eu pego aquele bêbado desgraçado ainda. — Eduardo Mendes adentra a sala e vê todos rindo. Não dava para aguentar mais. Eduardo Mendes ficou irritado e indaga. — É de mim que estão rindo, né? Virei palhaço agora!
— Mas Mendes, que negócio foi aquele de rebolar a bunda? — Indaga Bruno Jalkh, ainda rindo, enquanto lhe faltava ar.
— Ah. Assim? — Ele rebola a bunda para nós e não parávamos mais de rir. De fato foi algo que não esperávamos e até que foi engraçado.
De repente, ele comenta:
— Enquanto vocês estão rindo, parece que o nosso detetive vai ter uma nova dor de cabeça.
— O que houve? — Indaga Jane Marple, que recupera o bom senso. Todos estavam se recuperando aos poucos.
— Já ouviram falar da Doutora Relógio, não é?
— Doutora Relógio. Bem, esse nome não é estranho. Já ouvi algumas vezes. — Disse Bruno Jalkh.
— Eu já ouvi. — Comentei. — Dizem que ela é a melhor advogada do país. É formada em várias áreas do conhecimento. Ela é como se fosse o Lupa, só que mais tecnológica.
— Exato. E ela está aqui em Colina Verde.
— O quê?! — Todos falam em um único som, inclusive eu.
— Bem, eu já trabalhei com ela uma vez. Ela protegia as vítimas e eu prendia os presos. Foi em Guaíba, onde trabalhamos lá uns anos atrás. Eu sou testemunha para dizer que ela é uma cópia do Lupa.
— Interessante. — Disse Jane Marple.
— Bem, quando eu estava me separando do meu ex, antes de virar policial, meus pais a pagaram para me defender de uma acusação da morte da mãe dela. Olha, ela é perigosa na defesa de seus clientes. Tanto que meu ex foi preso por ele ter matado a mãe dele e ter me acusado.
Todos ficaram chocados com a minha notícia, mas era verdade. Doutora Relógio era muito boa no que fazia. Mas nunca entendi o apelido dela.
— Mas por que o apelido dela é Relógio? — Indaga Ketlin Mahoney. — Será porque ela anda sempre com um relógio?
— Sim, mas também porque ela consegue contar o tempo de uma forma que nem nós consigamos. Ela fala tudo. Os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e até os segundos. Ela é um relógio humano, praticamente. Seu problema é com datas, mas com horas é com ela mesmo.
Todos pareciam surpresos com o comentário de Eduardo Mendes.
— Ela e Lupa já chegaram a se envolver e…
Algo bateu em mim como se não quisesse ouvir isso.
— Mendes, melhor não falar muito do Lupa, senão quando ele chegar, ele vai ficar bravo.
— Eu dou um peteleco nele.
— Estou falando sério. Lembra da última vez quando você falou da mãe dele?
Eduardo Mendes fica quieto e volta ao seu lugar. Sim, ele se lembrou. Lupa não gostava quando falavam da vida pessoal dele, tanto que quando Eduardo Mendes falou mal da mãe, mas em uma "brincadeirinha", tivemos que separar os dois da briga. Mais um pouco e o Eduardo Mendes teria parado no hospital, já que o Lupa sabe várias artes marciais.
Assim fomos levando o dia. Lupa pareceu ter ido investigar esse vizinho barulhento do Bill Esteves, pois só voltou ao meio-dia e em nós continuamos a fazer nossas tarefas, nada de muito novo.