CAPÍTULO 5
MARIA LUIZA
A vida é realmente uma cadela inusitada, cheia de artimanhas, em um momento você está planejando a realização de um sonho com sua melhor amiga e no outro, está em um avião assumindo a identidade de outra pessoa e se tornando cúmplice de uma possível fuga.
Bufo, enfurecida, sabendo que parte disso tudo é culpa de Pâmela e agora ela está lá, possivelmente cavalgando em alguém que não a merece.
Me remexo no assento e novo meus olhos na direção da mulher que ajudei, a criança que antes dormia em seu colo está acordada e me olha curiosa. Sorrio para ela, fazendo as típicas caretas que as crianças costumam achar engraçadas.
Funciona, pois a pequena solta uma baixa gargalhada.
A mulher me flagra e eu travo, envergonhada.
—Obrigada. —Sussurra, apertando a filha em seus braços.
Assinto com a cabeça, pensando em mil perguntas para lhe fazer, mas controlo minha língua para não assustá-la.
—Qual o nome dela? —Pergunto, apontando para a pequena em seus braços. A menininha me olha com olhos graúdos, espertos e de um verde-escuro como lodo.
—Bella. A minha pequena princesinha. —A voz da mulher soa extremamente carinhosa, as íris de cor marrom fitam a garotinha de forma afetuosa e sinto que ela é uma pessoa boa.
—E o seu? —Pergunto, levando minha atenção total para ela.
Ela parece ponderar por um momento, olhando-me com receio e provavelmente decidindo se sou ou não de confiança.
—Luma. Meu nome é Luma.
Sorrio, feliz por ela parecer confiar em mim. Retiro meu cinto e avanço em sua direção, apenas alguns passos de onde eu estava e estico minha mão para um aperto.
—Maria Luiza, prazer. —Digo sorrindo, tentando soar amigável.
Ela aperta minha mão e libera um curto sorriso, movendo apenas o canto esquerdo dos lábios em resposta.
Estou para tentar iniciar uma conversa e descobrir algo quando um rapaz, usando um traje parecido com o do piloto arrogante, adentra parecendo desesperado. Sua testa está suada e a pele levemente pálida.
—Fiquem calmas. —É a primeira coisa que diz e Luma e eu nos encaramos já assustadas.
—O que aconteceu? —Pergunto em sobressalto, sentindo um pressentimento ruim no peito.
—Nada. —Diz, demonstrando o oposto em suas expressões.
—Você não estaria aqui parecendo que vai desmaiar a qualquer momento e pedindo para ficarmos calmas se não fosse nada. Pode ir falando. —Bato o pé no chão, levando as mãos ao quadril.
—O Duque falou para não fazer alarde. —O rapaz que no crachá vejo se chamar Júlio fala.
Duque? Esse é o nome do piloto metido a galã.
Quero rir pela sua prepotência, mas a situação não permite e por isso controlo meu deboche. Agora, se intitular Duque é ser muito narcisista.
—E por qual motivo o tal Duque falaria isso? —Pergunto, no entanto, a resposta vem direto dele. A voz rouca sai arrastada pelos fones da aeronave e meu corpo corresponde de forma involuntário ao som dela.
Ele pede para continuarmos sentadas, falando em um tom firme e sério. Parecendo realmente preocupado com algo e isso liga um alerta em minha cabeça, obedecendo suas indicações, volta para minha cadeira.
—Apertem os cintos. —Júlio fala antes de sair apressado de volta para a cabine.
Olho para Luma para tentar tranquilizá-la, mas seus olhos já estão lacrimejando enquanto encara a filha.
—Tudo bem, será apenas uma turbulência simples.
Ela assente, tirando a menina dos seus braços e lindo ao seu lado em um assento, apertando o quanto pode o cinto da pequena.
Algum tempo se passa e quando acho que mais nava vai acontecer, somos acometidos por uma turbulência. Nós gritamos pelo susto, ouço o chorinho de Bella e meu coração dói quando olho para a pequena, o rosto vermelho e a carinha virada na direção da mãe.
O avião vai voltando aos poucos a se normalizar, acalmando meu coração. No entanto, minha respiração continua alterada e quero vomitar. Corro para o banheiro assim que paramos completamente de chacoalhar.
Coloco todo o café da manhã para fora, sentindo meu estômago queimar pela ação. Esfrego minha barriga em movimentos repetitivos, para cima e pra baixo até me sentir melhor. Sento sobre o vaso sanitário para uma recuperação, puxando grandes lufadas de ar até me sentir apta para levantar.
Seguro na pequena pia para me apoiar, abro a torneira e lavo o rosto. A água fria traz uma sensação reconfortante e me sinto melhor.
Deixo o banheiro, fechando a porta e caminho de volta para minha poltrona. Amarro meus cabelos em um coque e vejo Luma dando-me olhares preocupados de seu lugar, sorrio para mostrar que estou bem e não há motivos para alardes.
O avião volta a balançar antes que eu chegue na minha poltrona, dessa vez mais forte e me joga no primeiro assento próximo, apertando o cinto em minha volta. O barulho de objetos caindo ao chão e nossos gritos comprometem minha audição e não tenho certeza se o tal Duque está falando alguma coisa pelo microfone ou se é só fruto da minha imaginação. Fecho os olhos, tentando amenizar a sensação ruim que me está me invadindo.
—Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem... —Começo a repetir, rogando a Deus para ficar tudo bem.
No fundo, posso Ouvir com clareza o choro de Bella, muito mais audível e estridente do que da última vez. Ela está assustada e com razão.
Aperto meus dedos contra a minha calça tão forte que posso sentir minhas unhas querendo rasgar o tecido.
Estou com medo. Começo a pensar na última conversa que tive com meu pai e as coisas terríveis que disse para ele, no meu egoísmo de achar que sempre tenho razão e teria chance de pedir desculpas, saí de casa brigada com ele, sem nem ao menos ter a chance de dizer o quanto o amo e admiro.
Sinto que estamos perdendo altitude pelo frio na minha barriga, é a mesma sensação de se estar em um montanha-russa. Aperto com mais força meus olhos, me negando a abrir e encarar o rosto da mulher e sua filhinha, imaginando já o fim que dei a elas quando as embarquei nesse vôo.
Elas eram minhas responsabilidades. Minhas.
Ouço o barulho de explosão e tenho a certeza que o avião está caindo pela pressão que meu corpo passou a sofrer.
Meu corpo é jogado de forma brusca para frente, mas o cinto impede que eu saia do lugar.
O avião parece pegar mais velocidade e tudo que eu escuto pelos próximos segundos são os meus gritos, de Luma e Bella. Uma forte explosão e um estrondo alto de algo se partindo, mas de repente os sons passam a se dissipar e tudo que fica é o silêncio.
Um zumbido alto entorpece meus sentidos e faz minha cabeça latejar forte, com dificuldade movo minhas pálpebras para cima e tenho o primeiro vislumbre do que aconteceu conosco. Perdi a consciência provavelmente pouco antes da aeronave cair.
Meu corpo inteiro parece ter sido espancado fortemente, estou toda dolorida e cada movimento aumenta minha agonia.
O cinto de segurança continua amarrado a mim, o que me faz acreditar que sou uma baita sortuda. Agradeço ao senhor por isso, estou viva e aparentemente sem nenhum grande dano. Observo ao redor, procurando por Luma e Bellinha.
Um arrepio acompanhado de temor domina cada partícula minha quando não as vejo sentadas em seus respectivos assentos.
Me desespero, varrendo todos os arredores com os olhos.
Passo a travar uma batalha com o cinto para soltá-lo, mas seu encaixe está amassado e me atrapalho. Puxo com mais força até a peça se desprender.
Solto um suspiro de alívio quando me vejo livre.
Chamo pelo nome delas.
Arrasto meus olhos por toda a estrutura visível do jatinho, percebendo o estrago só agora. Grande parte foi danificada pela queda e existem destroços por todo lugar, uma grande rachadura parte a aeronave no meio e permite que eu enxergue o lado de fora.
Gemo, assim que me ponho de pé, sentindo uma fisgada em todo o comprimento da minha perna direita pelo esforço repentino. Apoio minhas mãos sobre a poltrona à frente e tento sair do lugar.
—Luma. —Chamo, mais baixo do que eu gostaria.
Minha visão fica turva e sou atingida por uma breve vertigem, forte o suficiente para me causar desconforto e obrigar-me a sentar.
Tento respirar, fecho os olhos e inclino a cabeça um pouco para trás, seguindo o procedimento que aprendi na faculdade de Ed. Física para esse tipo de situação. As chances de alguém exceder nas atividades físicas ou até mesmo praticar alguma sem ter feito alguma refeição é bastante comum, por isso um profissional precisa saber como lidar.
Minha sorte é que fui nessa aula.
Me ponho novamente de pé, preenchida por determinação e coragem, dou passos vagarosos em direção onde a mulher e criança deveriam estar, ao chegar perceber que o cinto de ambas parece ter sido partido ao meio e provavelmente o pior aconteceu. Sabendo que as chances dos seus corpos terem sido lançados para fora durante a queda são grandes, as lágrimas já começam a descer dos meus olhos. Um grunhido rouco deixa minha garganta e preciso voltar a me segurar para não desabar.
Apesar de tê-las conhecido recentemente, meu coração, extremamente receptivo, já tinha se efetuado a mãe e filha.
Culpa me acerta.
Eu era a única responsável por elas aqui, assumi a segurança das duas quando as botei dentro desse maldito jatinho e as perdi.
Um soluço me escapa e uma nova dor me invade, ela é diferente das outras, pois é caracterizada pela perda.
Choro copiosamente, tomando meu momento e não ouvindo nada além do que os soluços que solto pelo choro.
O barulho de algo sendo quebrado me chama atenção para o lado de fora, esperança brota em meu peito e saio pela grande fenda com rapidez, esquecendo até o incomodo em minha perna.
O som de surpresa deixa meus lábios quando avisto o tal Duque puxando seu copiloto por uma pequena janela, meu estado de choque e desespero fez com que esquecesse deles. Uma sensação de reconforto me apodera, saber que não estou sozinha me dá uma ponta de felicidade. Quero correr para lhe abraçar e perguntar sobre as mulher e a pequena.
Olho em volto para ver algum sinal delas, mas não vejo nada além de destroços, areia, mar e muitos coqueiros.
Sinto olhar dele sobre mim e me viro de volta para sua direção, estamos apenas dez passos de distância e posso ler seus lábios quando solta um:
"Graças a Deus"
Algo como alívio cintila em seus olhos ao me fazer uma checagem rápida e tenho que confessar que é recíproco.
Estou imensamente feliz que ele esteja vivo aqui comigo.
—Me ajude! —Exclama, segurando o outro homem pelas axilas.
Ando o mais rápido que consigo para seu encontro, sinto-me fraca e extremamente cansada.
—Você está bem? —Pergunta assim que o alcanço e assinto.
Ele estreita os olhos para minha perna e acompanho o seu gesto, meu jeans está banhado em sangue.
—Estou bem. —Afirmo, embora não tenha certeza disso.
Ele pondera sobre minha resposta, ainda encarando meu machucado.
—Vamos tirá-lo. —Falo e sua atenção volta para o jovem rapaz, o puxamos com cuidado.
Quando finalmente conseguimos trazer seu corpo para terra firme, respiramos em alívio.
—Ele está bem? —Pergunto, observando os inúmeros cortes do rapaz que agora lembro se chamar Júlio.
O ferimento em sua barriga parece o pior entre todos, tento comprimir o sangue que não para de jorrar e ouço Duque praguejar.
—O que foi? —Pergunto assustada.
—Os batimentos estão caindo junto da respiração. —Escuto suas observações ao mesmo tempo que migro meu olhar para o abdômen do rapaz e noto que sua respiração está quase imperceptível.
—Eu consegui? —Júlio pergunta com dificuldade. Ele parece mal.
—Sim, você é um ótimo piloto. —Duque responde, sua voz trêmula entrega que está abalado. —Você vai ficar bem. —Volta a falar, mas não recebe resposta.
—Temos que fazer o procedimento de RCP. —Ele assente, já se posicionando ao lado de Júlio e esticando suas mãos, deixando as palmas um pouco acima do estômago.
—Você sabe fazer isso? —Falo.
—30 massagens por 2 ventilações. —Ele diz, já concentrado no procedimento.
Nós dois agimos juntos, tentando fazer seu copiloto reagir. O homem fala palavras motivadoras o tempo todo, embora não obtenha resposta alguma.
Só percebo que não podemos fazer mais nada e que o perdemos quando não sinto mais resquício de vida vindo do rapaz.
Novas lágrimas passam a descer.
—Nós o perdemos...—Sussurro.
Ele me ignora.
—Nós o perdemos. —Volto a falar, mas desta vez segurando em suas mãos.
—Não. —Resmunga, tentando se soltar do meu aperto e voltar a fazer a massagem.
—Sim. —Digo o abraçando.
Então, ele explode em um choro alto, comovente, que dói no fundo de minha alma.
—Sinto muito. —É tudo o que consigo falar entre as lágrimas.
—Sinto muito...