2: A enteada
Nadja
Eu moro num condomínio fechado de gente rica. É um lugar bonito e tranquilo. Minha casa não é uma mansão gigante, mas aqui tenho todo o conforto que não tinha quando morava com a minha mãe numa casa pequena e caindo aos pedaços.
Nessa época, nossas vidas eram muito difíceis, principalmente porque ela não teve o meu pai para ajudá-la a me criar. Ela o chama de japonês filho da puta, mas nem sabe se o meu pai é um homem japonês. Também me chamava de japonesinha quando criança. Era mais aceitável me chamar de asiaticazinha, mas ela pensa que os povos do continente oriental são todos japoneses.
Sobre a nossa nova casa: temos uma piscina na frente, um jardim bonito onde o nosso cachorro adora brincar e toda a parede da parte da frente da casa é de vidro. Nunca imaginei que fosse morar num lugar assim.
Destranco o portão de casa e entro antes da minha mãe e do meu padrasto. Passo pela ponte de madeira que fica por cima da piscina, subo na varanda de casa e abro a porta. Retiro os meus sapatos, fecho os olhos e me jogo de bruços no sofá. Dou um longo suspiro e começo a me abanar.
Tudo que eu mais quero é entrar no meu quarto e tirar minha saia de evangélica. Ainda nem chegou o verão, não é nem meio-dia, mas está muito calor.
Ouço os passos do salto baixo da minha mãe e ela diz com ternura:
— Amor, sobe para o seu quarto e vai tomar um banho. A Rosangela já deixou nosso almoço pronto, eu só vou fazer a sobremesa e te chamo para almoçar.
Suspiro, sem força alguma para me levantar e exclamo com preguiça:
— Eu já vou!
Sinto um toque leve no meu pé, como se formigas estivessem caminhando por ele em direção à parte mais sensível. Meu corpo inteiro se arrepia e dou um pulo que me faz cair no chão.
Vejo o meu padrasto rir e se sentar no sofá.
— É assim que se consegue todo o sofá. — Ele começa a desatar o nó da sua gravata.
— É mesmo, é? — Os músculos da minha boca se movem em desgosto.
Ele joga a gravata na mesinha ao lado do sofá e passa a mão pelo cabelo grisalho. Dá o seu sorriso mais amigável e deita-se.
— Após o almoço, eu vou visitar a casa de uns amigos, dar picolé para a criançada que fica na frente daquela igrejinha na avenida São João, sabe que eles ficam lá vendendo bala, né? Depois darei uma entrevista para a emissora local.
— Você ainda vai com a mãe naquele restaurante que ela comentou que gosta?
— À noite. Hoje o meu dia será cheio, mas eu também estava pensando numa coisa aqui sobre você… Eu quero saber que faculdade você vai fazer ano que vem para eu já ter uma ideia de quanto vou gastar com a mensalidade e os seus livros.
— Ah, a faculdade? — Coço a cabeça e olho para o lado. — Eu ainda tô vendo isso. É meio difícil, sabe? Não faz nem um mês que você falou para eu me decidir.
Ele se deita de lado e diz:
— Nad, não me leva a mal, não, mas eu te pedi achando que você sempre quis ser uma médica. Sua mãe…
— Minha mãe acha que sou a cópia dela e que por isso eu quero tudo que ela quer. — Reviro os olhos.
— Então não quer fazer medicina?
Penso um pouco… Eu quero?
— Não sei te responder e não sei se vou conseguir ter uma resposta até o começo das inscrições do próximo ano.
— Assim você também não ajuda, não é? Você vem trabalhando comigo, tem me ajudado muito para as eleições, mas seria bom que começasse a fazer um curso. Nadja!? Você já tem 25 anos!
— Eu sei, eu sei. — Levanto-me do chão, jogo o meu cabelo para trás e suspiro. — Vou ver isso, prometo.
Subo as escadas de vidro a passos apressados e entro no corredor direito, onde está a porta para o meu quarto e outra para o banheiro. Abro a última porta do corredor e entro no meu quarto.
Meu celular vibra e o pego no bolso da minha saia jeans. É uma mensagem do meu padrasto.
“Vai acabar escolhendo uma faculdade que não quer, irá largá-la e isso não será bom para ninguém. Estou com um problema, não tenho tempo para o resolver. Como tenho uma dívida com a pessoa que precisa de mim, passo a responsabilidade para você. Quero que me encontre na igrejinha que eu falei às 15 horas.”
Nem preciso o responder, ele sabe que estarei lá.
Olho para o espelho redondo que cobre toda a porta do meu closet, passo a mão pelo meu pescoço e digo com desânimo:
— Au-au…
Após passar um quilo de protetor solar na minha pele (sem esquecer das orelhas), coloquei um vestido fresco de alça, mas longo, porque eu sou crente. Fui ao encontro do meu padrasto e, em baixo do sol quente, avistei o felizardo alegrando 6 crianças. Essas crianças deveriam estar estudando ou brincando, não no sol, trabalhando.
Enquanto Alberto entrega os picolés, seus dois empregados tiram fotos e gravam vídeos. Espero ele terminar de entregar os picolés e vou até ele.
— Eles estão bem felizes. — Dou um sorriso ao ver os pequenos se deliciando com os picolés.
— São crianças humildes. São gratos pelo pouco que ganham. — Ele coloca as mãos na cintura e suspira. — Mas isso não é suficiente. Estou pensando numa forma de os ajudar e ajudar os seus pais. São pessoas humildes, trabalhadoras. As crianças trabalham por amor à família. Chamar o conselho tutelar não vai ajudar, só irão os arrancar dos seus familiares. É triste essa situação, mas eu posso os ajudar.
— Espero que sim. — Não me aguento e dou um beijo no topo da cabeça de uma das crianças. Jogo meu cabelo para trás e digo: — Agora que você já terminou e eu tô com calor, fala o que você quer para eu voltar para o ar condicionado de casa…
Alberto me levou para a igreja. Ela está aberta e todos estão ajoelhados no chão, com os braços nos bancos, orando. Num banco isolado, meu padrasto e eu nos ajoelhamos, fechamos os olhos e começamos a orar.
— Amém! — digo assim que termino de orar. Diferente das pessoas que convivo, quando oro, oro por menos de um minuto. É por eu não saber conduzir uma boa oração? É por eu não querer bençãos na minha vida? Ou será que sou uma mulher egoísta que não faz uma oração descente agradecendo por tudo o que Deus faz na minha vida? Minha resposta para as três perguntas é negativa. Eu sou uma pessoa que julga muito as minhas ações erradas, por isso não consigo agir como um ser humano de luz que deseja bençãos. Faço muitas coisas erradas e sempre peço perdão para Deus por tudo de ruim que estou envolvida. Infelizmente, eu venho pedindo perdão há anos.
Sinto a respiração do meu padrasto no meu ouvido e mantenho os olhos fechados.
— Sabe muito bem quem está liderando as pesquisas para governador de Minas Gerais. O João Soares está na mira de um homem que está louco para o matar com as próprias mãos. Chamam esse homem de Jota, é um traficante perigoso que comanda Gênesis. Ele podia fazer esse trabalho sozinho, mas precisa de alguém inteligente e com contatos. Também não quer o nome dele ou o da favela envolvido com o assassinato. Entendeu?
— Eu vou ser a mente por trás do assassinato, enquanto o bandido só vai apertar o gatilho.
— E ele está disposto a pagar muito por isso. Muito mesmo. — Ele toca o meu ombro. — E eu não vou querer um tostão desse dinheiro. Ele será todo seu.
Se eu falhar, minha vida acaba, mas se tudo der certo, eu vou… Eu quero isso!
— Só preciso do número dele.
— Essa é a minha menina! — Ele dá um risinho.
— Tem mais uma coisa… — Abro os olhos. — É melhor irmos embora. Foi muito desrespeitoso da sua parte falar sobre isso na casa de Deus. Da minha parte também.
— Tem razão. — Ele abaixa a cabeça e pede perdão para o Senhor.
Não é porque eu não sou uma religiosa devota que eu não tenho que ter consciência do que faço de errado.