Trancafiada - Parte 5
No dia seguinte, me levantei e Aline já preparava um café da manhã para nós duas.
Aline - E aí conseguiu dormir bem?
Victória - Não muito, mas tenho que parar de pensar nesse cara e no passado. Temos que começar a pensar na nossa loja, primeiro de tudo vou encontrar um bom designer para fazer nosso site e as redes sociais. Já tenho muitos desenhos de modelos!
Aline - Adoro te ver animada assim, vai dar certo e tenho certeza que será um grande sucesso.
Victória - E você ficará com a missão de encontrar costureiras, pelo menos quatro para começarmos.
Aline - Posso falar com a dona Jacinta ela trabalhou com a minha mãe e além de costurar conhece algumas da comunidade...
Ela hesitou.
Victória - Do Morro da Babilônia? Tudo bem, fico feliz em ajudar as pessoas de lá...convide-as para trabalhar conosco.
Ouvimos a campainha, já eram 9:32 da manhã.
Victória - Vou atender...
Entregador - Bom dia, você é Victória?
Victória - Sim, eu mesma!
Entregador - Me pediram para lhe trazer essas flores.
Era um lindo buquê de rosas vermelhas.
Victória - Só um instante.
Entrei e fui pegar minha carteira para lhe dar uma gorjeta.
Entregador - Obrigado moça.
Peguei as flores e fechei a porta, cheguei na cozinha.
Aline - Nossa, que linda! Quem te mandou?
Victória - É o que vou descobrir agora.
Encontrei um pequeno cartão e li em voz alta:
Seus olhos são os mais lindos que já vi!
Aline - Ele é bem direto...e o nome?
Victória - Não tem nenhum nome.
Aline - Acha que pode ser o Frajola? Gabriel sei lá já me confundi inteira.
Victória - Claro que não, o que tivemos ficou no passado e foi apenas uma noite. Deve ser do Vinícius que já deve ter descoberto que voltei!
Aline - Ele é insuportável, sempre me mandava mensagens perguntando por você.
Depois de colocar as flores em um vaso, tomamos café e saí com Aline para encomendar alguns tecidos.
Aline - Por que não vamos logo até a casa de uma das costureiras, levamos os tecidos que temos e você deixa com ela o esboço das roupas.
Victória - Está bem.
Pegamos mis um Uber e fomos até lá, aquele caminho me trazia de volta tantas lembranças. Até que chegamos no Morro, as coisas pareciam ter mudado muito por lá. Onde haviam antigos barracos, hoje haviam casas simples porém muito mais confortáveis...uma pracinha no exato lugar onde alguns usuários costumavam ficar.
Victória - As coisas por aqui estão mudadas.
Uber - Sim moça, o pessoal da comunidade conseguiu eleger um vereador e ele trouxe muita mudança nos quatro anos em que esteve no poder.
Aline - Ele está de parabéns!
Paramos, paguei a corrida e fomos até a casa de dona Jacira. Aline bateu na porta, ela nos cumprimentou e logo pediu que entrássemos.
Jacira - Aline como está sua mãe?
Aline - Daquele jeito dona Jacira, foi morar no interior a uns meses.
Jacira - Diga que lhe mandei um forte braço, mas o que trás as duas belas moças a minha humilde casa?
Victória - É que queremos que a senhora trabalhe conosco, sei que é uma excelente costureira e precisamos da senhora e de mais umas três...que possa nos indicar.
Jacira - Seria um prazer costurar para vocês!
Neste instante ouvimos uma movimentação nas ruas, algumas crianças gritavam alegres.
Aline - O que está havendo lá fora.
Jacira sorriu.
Jacira - Eles sempre fazem festa quando ele vem trazer brinquedos.
Victória - Ele quem?
Ela nos chamou com a cabeça e fomos até a parte de fora, haviam um caminhão parado e as crianças faziam fila para receber brinquedos.
Aline - Com certeza deve ter sido mandado pelo tal vereador.
Jacira - Ele já não é mais político, ele decidiu se dedicar apenas aos negócios. Ahhh ali está ele!
Um carro de luxo parou e um homem vestido em uma camisa branca, relógio de luxo e um grande óculos de sol saiu de dentro. Era o mesmo da boate, aquele que havia saído da sala em que ficamos presos depois da confusão e que conhecia o Frajola.
Victória - É melhor a gente entrar e deixarmos as coisas combinadas.
Jacira - Sim, vamos.
Conversamos sobre os detalhes, deixei Aline em casa e voltei para o apartamento. Tomei um banho e fui me deitar.
No dia seguinte recebi logo cedo uma ligação, não era nenhum número conhecido.
Victória - Alô!
Gabriel (Frajola) - Bom dia, perdoe-me por ligar tão cedo...recebeu as flores?
Eu congelei, precisei me sentar.
Victória - Sim, são realmente lindas!
Gabriel - Parece assustada, estou enganado?
Victória - Deve reconhecer que no passado eu tive motivos fortes para isso.
Gabriel - Esqueça o passado.
Victória - Eu tentei...é que preciso desligar agora. De...depois nos falamos.
Gabriel - Eu gostaria de poder conversar com você em algum lugar mais reservado.
Victória - Sozinhos não!
Gabriel - Como e onde preferir.
Victória - Posso ir até a boate, amanhã a tarde.
Gabriel - Estarei te esperando! Boa noite.
Ás vezes eu duvidava de que seria a mesma pessoa, as palavras tão bem colocadas...mas eu também mudei e amadureci o modo de falar morando fora. Comuniquei Aline do que iriamos fazer no dia seguinte.
Aline - Eu te disse que as flores eram dele.
Victória - Não devia ter marcado nada.
Aline - Você fez certo, precisa falar com ele e saber de uma vez o que está rolando.
Ficamos combinadas e no horário certo estávamos lá na porta da boate.
Victória - Fique me esperando na portaria.
Aline - Está bem.
Entrei nervosa, um dos seus funcionários me esperava e me acompanhou até aquela mesma sala da noite da balada.
Gabriel - Por favor sente-se.
Victória - Me perdoe por ser tão direta, mas não é nem a sombra do homem que conheci anos atrás.
Gabriel - Felizmente eu tive a sorte de conhecer Daniel Dala, não sei se já ouviu falar dele?
Victória - Não, cheguei a pouco do exterior.
Gabriel - Ele é a melhor pessoa que já conheci na vida, mas para falar dele...eu preciso voltar a quatro anos atrás.
Victória - Pode começar.
Me sentei e ele respirou fundo.
Gabriel - Entrei para o mundo do tráfico aos 12 anos, quando meu pai foi preso eu tive que assumir os negócios dele. Felizmente ainda que vivesse naquele meio eu jamais me viciei em drogas...na noite em que te você e seus amigos foram levados para meu barraco, David foi assassinado.
Victória - Eu soube disso, ficamos apavorados.
Gabriel - Deve achar que eu fui o responsável.
Victória - Depois da maneira que nos tratou é justo que eu pense assim.
Gabriel - Quando te deixei em casa depois de...
Victória - De transarmos.
Gabriel - Não foi apenas sexo para mim, (engoliu seco) depois de te levar em casa e ver como a sua realidade era privilegiada em relação a minha voltei para o barraco. Fui na frente do seu condomínio algumas vezes para te ver nem que fosse de longe e um dia te vi dentro do carro com um homem que acredito ser seu pai.
Victória - Sim, ele era.
Gabriel - Dias depois os miseráveis do comando B me esperavam no barraco em dos dias em que Viola e Gorila estavam no baile funk, eram nossos rivais de boca de fumo...me espancaram e me deram um tiro e em meio aquela pancadaria um deles disse que havia matado David. Eu achei que fosse morrer, mas duas coisas me prendiam a vida uma era o desejo de falar a todos quem havia matado seu amigo e a outra...
Victória - Mudar de vida?
Gabriel - Sim, mudar o meu destino por sua causa mesmo que achasse tarde já aos 32 anos para isso. Por que queria um dia ser digno de você! Fui socorrido pelo Gorila e levado a um hospital público, lá eu gritava de dor enquanto as enfermeiras diziam: deixa o vagabundo vendedor de pó morrer! Ainda assim consegui sobreviver, com seis costelas quebradas, uma placa de titânio na cabeça e muitas transfusões de sangue recebidas.
Victória - Deus!
Gabriel - Saí do hospital dois meses depois e direto para a cadeia, ainda era procurado como traficante. Apanhei no primeiro banho de sol, de outro detento e fui obrigado a ficar no isolamento. Nunca recebia visitas...até que um dia colocaram mais um na nossa cela, Juliano um rapaz rico e jovem que havia caído nas mãos do tráfico. Nos tornamos amigos e o pai dele sempre ia visitá-lo, nos conhecemos e ele se tornou meu amigo também.
Victória - Ficou preso por quanto tempo?
Gabriel - Dois anos e meio, só saí graças a ajuda do pai dele que pagou pela minha defesa. Saí da cadeia sem ter rumo para seguir, mas Daniel Dala me esperava lá fora havia saído por bom comportamento. Ele me levou para sua casa, disse que faria de mim um homem e que não falharia como havia falhado com Juliano que ainda estava preso. Comecei a estudar supletivo para concluir os estudos, no dia em que me formei no ensino médio Juliano foi assassinado na cadeia. Achei que depois disso Daniel se revoltaria e desistiria de me ajudar, mas não...decidiu investir em casas noturnas, porém o engajamento com as causas sociais o levou a entrar para a política. E depois de vencer, ainda quis te procurar e saber como estava sua vida...mas não te encontrei e nem mesmo algum dos seus amigos daquela noite.
Victória - Aline foi para longe depois que Eduardo a deixou e eu...eu...fui morar em Portugal para estudar e
Gabriel - E?
Victória - Para tentar tirar da minha cabeça um certo gato do Morro da Babilônia.
Ele sorriu, sabia que eu havia ficado presa a ele tanto quanto ele a mim, veio mais perto e me levantei dando um beijo de quatro anos de atraso acabamos fazendo amor na mesa dele. Depois daquele dia nunca mais nos desgrudamos, Aline e eu abrimos nossa loja de roupas e tivemos muito mais vagas de trabalho para oferecer a mulheres do morro. Conhecemos o famoso vereador Daniel Dala, um homem admirável e muito engajado em causas sociais, bem diferente do dia da briga na boate.
Ele me fez refletir sobre muitas coisas nessa vida e uma delas era sobre a maneira que eu lidava com meu pai, ficamos mais próximos e até resolvi da ruma chance a Camila. As coisas estão mais leves e espero que permaneçam assim, descobrimos um tempo depois o paradeiro de Eduardo, ele se casou e hoje tem três filhos.
Aline e Daniel estão se dando bem até demais, tenho certeza que em breve poderemos ter um novo casal e o fim daquela tristeza no olhar dela. Quanto a Gabriel e eu? estamos nos redescobrindo a cada dia, ele mudou e eu também pois Frajola é coisa do passado...isso é perfeito pois a vida deu uma nova chance a nós dois. Tudo havia mudado, menos a vontade de estarmos juntos e quem sabe olhar além dos limites da nossa própria realidade.
Fim!