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Trancafiada - Parte 3

Quase caí da cama ao ouvir batidas fortes na porta do meu quarto, cocei os olhos avermelhados da noite de sono que não veio.

Nestor - Vai abrir a porta ou vou ter que derrubar?

Aquele coroa parecia adivinhar a dor de cabeça terrível que eu estava, batia na porta como se fosse mesmo arrombar. Me desembrulhei mesmo querendo um dia inteiro de sono, parecia um cadáver em plena reanimação...e até ele percebeu.

Nestor - Você está doente?

Victória - Só tive uma noite difícil, anda entra pai!

Ele puxou a cadeira da minha penteadeira e sentou na minha frente, enquanto eu tentava manter os dois olhos abertos.

Nestor - Filha, você sabe que apesar de todos os meus defeitos, tudo o que eu faço é para te transformar em uma pessoa responsável e para que tenha um futuro melhor.

Victória - Sim, eu sei.

Nestor - Olhe para nossa cidade, tão linda e imponente diante do mundo inteiro...seu maior pé no sapato? As favelas!

Victória - Ninguém escolhe essa realidade papai!

Nestor - É nesse ponto que quero chegar, te quero realizada e bem sucedida. E para que isso aconteça, quero que vá viver em Portugal com seu tio e estude!

Engoli seco, talvez fosse melhor que eu me afastasse das âncoras que sempre me prenderam a esse lugar. Eu sabia que se permanece aqui, meu coração iria me levar de volta aquele morro...aquele barraco e sabe Deus o que seria de mim apaixonada por aquele maluco.

Victória - Sim, quando eu vou?

O velho me olhou surpreso e coçando o bigode com alguns fios brancos.

Nestor - Disse que vai?

Victória - Exatamente, acho que está na hora de sair dessa casa e dar privacidade ao senhor e sua digníssima!

Forcei no deboche, apesar de dizer o que ele queria ouvir não quis lhe dar a sensação de vitória plena.

Nestor - Não sabe como fico feliz em ver que se importa com seu futuro, cuidarei das questões legais e você irá regularizar seu passaporte, acredito que em algumas semanas você já possa ir.

Ele se levantou, com um sorriso discreto e me olhou nos olhos.

Nestor - Não faço isso por mim, faço por você.

Victória - Eu sei que sim!

Fechei a porta e me encostei nela alguns minutos, Deus eu iria para muito longe daqui e de tantas pessoas que amo. Troquei de roupa e escovei os dentes, fui até a cozinha batendo os pés no chão tamanha a preguiça de levantá-los.

Camila - Bom dia, pelo visto a farra foi mesmo boa.

Victória - Não venha com seu veneno logo cedo, vá brincar com o consolo enorme que esconde do meu pai na gaveta debaixo do guarda-roupa.

Ela forçou um sorriso e se apoiou na pia.

Camila - Vou fazer tudo o que eu puder para convencer ele a te despachar daqui e bem rápido, ninguém te suporta nem mesmo ele!

Victória - Economize seu tempo, eu vou para Portugal e por que eu quero.

Ela respirou fundo, sempre que brigávamos ela dava a última cartada, mas não dessa vez.

Preparei um misto quente bem caprichado e um leite com café, voltei para o quarto minha vontade era de dormir e liguei o notebook acessando minhas redes sociais.

"Um jovem chamado David da Silva Carvalho, foi encontrado com sinais de disparos na saída do Morro do Babilônia. Relatos acusam sua participação com o crime organizado daquela região..."

Victória - Put* que pariu!

Iriam investigar, saberiam que estávamos juntos e eu teria que dar muitas explicações. Pulei da cama e fiquei falando sozinha e tentando não pirar...

Victória - Ele mandou apagar o cara, eu fiquei com um assassino! Vou ser presa por associação ao tráfico e meu pai vai terminar de arrancar os meus olhos na cadeia.

Andei de um lado para o outro criando mil cenas de como eu seria presa e onde eu estaria quando isso acontecesse, todas as possibilidades era constrangedoras.

Perdi a fome, passei a tarde toda deitada pensando nessa viagem e no quanto ela teria que ser rápida para me tirar desse grande apuro que em apenas uma noite eu consegui me meter. De costas ouvi abrirem a porta.

Aline - Me perdoa por entrar assim no seu quarto, mas eu tenho pressa em conversar contigo.

Victória - Entra e fecha a porta!

Ela entrou com a cara mais lavada do mundo e se sentou na minha cama.

Aline - Por favor me desculpa...eu não sabia que o David era dessas paradas loucas de boca de fumo! Sim a gente usa umas coisinhas aqui e outras ali, mas não nos metemos nesse tipo de roubada.

Eu tentei manter a calma, nada do que fizéssemos mudaria o fato.

Victória - Já leu o noticiário de hoje?

Aline - Não!

Victória - Pois se senta direito.

Virei a tela do computador para ela, exatamente na página que relatava sobre a morte de David.

Aline - Meu Deus!

Victória - Sabe o que significa? Que fomos pré testemunhas de um assassinato.

Aline - Foi aquele maluco do Frajola e os capangas...tenho certeza. Não tiveram um pingo de pena em nos largar no meio do mato feito dois animais.

Victória - Eu já não sei o que pensar...

Aline - Mas não fica desse jeito, ninguém vai saber que estivemos lá...vou mandar Eduardo trancar aquela boca de caçapa dele!

Fiquei em silêncio enquanto ela dizia mil coisas ao mesmo tempo.

Victória - Eu e aquele traficante...

Aline - Ele abusou de você?

Ela pegou minhas duas mãos.

Victória - Eu dei por livre e espontânea vontade e foi a melhor e a pior noite de toda a minha vida. Eu fecho os olhos e ainda posso sentir o cheiro dele os sabores de cada pedaço da pele que provei!

Aline - Eu nunca imaginei que fosse fazer algo assim ainda mais com um tipo como ele, percebi que ficou interessado em você. Temi, mas também temi por mim e Eduardo no carro com aquele maluco.

Victória - Estou com muito medo, já parou para pensar que ele ou os caras dele podem vir querer apagar a gente? Queima de arquivo!

Aline - Ai minha santa Margarida!

Victória - Vou embora...daqui a poucas semanas, irei morar em Portugal com um tio.

Aline - E eu, eu não tenho para onde ir.

Victória - Preciso mesmo partir e não só por ele ou o que aconteceu entre nós, esse lugar já não me cabe. Sinto que essas paredes me sufocam e a convivência nunca foi fácil e tem ficado cada vez pior.

Aline - Sinto tanto!

Nos abraçamos, e ela logo ligou para o Eduardo contando sobre David. Ele já sabia do acontecido por que estava em todos os jornais da cidade!

Nos dias seguintes eu tentei levar a vida o mais normal que eu conseguia, me notavam cabisbaixa e sempre triste pelos cantos.

Sempre pensando nele e no que havíamos tido entre aquelas quatro paredes...Eduardo foi o primeiro a se acovardar, dois dias depois da morte de David ele simplesmente foi embora sem dizer nada a ninguém.

Aline sofreu e sofre muito sentindo falta dele e sabendo que iria de certa forma me perder também, meu pai já havia falado com meu tio e por lá já me esperavam ansiosos.

Resolveu fazer uma reunião de despedida para mim aqui mesmo em casa, seria mais para os amigos dele do que os meus.

Nestor - Sei que minha filha voltará formada e é isso que consola meu coração que já sente saudades!

Meu pai se prendia demais as formalidades, para ele uma pessoa só vale o que tem e eu sabia da grande responsabilidade que tinha ao ir para lá. Investia muito dinheiro em mim, eu faria uma prova de vestibular em uma das maiores instituições a Universidade Autónoma de Lisboa Luís de Camões. Popular pela maneira caxias e reta de lidar com os alunos, era esse tipo de educação que meu pai sempre quis que eu tivesse em um lugar em que eu não pudesse olhar para o lado.

Aline me chamou um instante, fomos para perto da janela ela era uma das poucas pessoas as quais me doía deixar.

Aline - Não sei como vou me virar por aqui sem você, sempre me aconselha e me tira de tantas encrencas.

Victória - Dê um jeito nessa sua vida também, Eduardo não levou nenhuma parte de você quando partiu...

Aline - Vou tentar me ajuizar!

Demos um forte abraço, choramos juntas lembrando de tantas aventuras, mas era a hora de amadurecer e dar lugar a outros sentimentos e histórias. Meu pai me levaria ainda naquela noite ao aeroporto, assim que saímos do estacionamento do condomínio eu vi um homem parado e sentado sobre uma moto.

Tremi, me encolhi no banco, o coração parecia querer saltar e eu não sabia dizer se era saudade ou pavor. Ele estava do lado de fora, olhando para dentro como se me buscasse...era ele sim, Frajola com aquela tatuagem do gatinho preto e branco dos desenhos animados e que jamais esquecerei mesmo que passem mil anos.

Fiquei olhando pela janela fumê até nos afastarmos, o que ele fazia ali? Será que havia ido para terminar com as testemunhas daquela noite?

Chegamos no aeroporto e meu pai retirou as minhas malas, eu não quis que aquela bruxa fosse junto, se era para ir embora a última cara que eu queria ver era a dela fingindo um sentimento de perda ao se despedir de mim.

Nestor - Já estou sentindo saudades, não deixe de ligar diariamente!

Victória - Claro papai, fique bem!

Embarquei, me sentei olhando para as estrelas da janela do avião. Naquele voo noturno haviam tantas crianças que mal pude contar...1, 2, 3...9 horas de voo sem escalas e eu já estava exausta daquela poltrona mesmo que fosse bem cômoda.

Saí pelo desembarque levando minha necessaire nas mãos, não sabia o endereço do meu tio e fiquei esperando minha mala, saí puxando-a pelo saguão até ver aquele careca branco e enorme procurando pela menininha que conhecia como sua sobrinha.

Victória - Tio Henrique?

Ele me olhou assustado, realmente não havia me reconhecido.

Henrique - Deus, como está diferente!

Victória - Espero que para melhor.

Ele sorriu e fomos para a sua casa, não posso dizer que foi uma adaptação fácil viver naquele lugar até então estranho, fui aprovada no vestibular e cursei Moda.

Aos poucos fui me tornando uma estilista renomada e quatro anos depois, decidi voltar para o meu pais trazendo não só meu diploma e todas as coisas que o meu dinheiro alcançou. Obviamente dentro de mim havia uma vontade de expurgar todas as vezes que Camila havia me jogado na cara que nunca teria independência financeira nessa vida e viveria como ela na sombra do meu pai.

Aline e eu havíamos perdido contato a um tempo, a mãe dela me falou sobre a depressão que ela estava enfrentando. Minha amiga nunca superou o abandono de Eduardo...assim como eu nunca esqueci aquela noite no morro.

Não avisei a ninguém que voltaria, queria fazer uma surpresa para o meu pai. Eu ainda tinha as chaves de casa, assim que saí do avião já peguei um táxi e segui o porteiro ainda era o meu velho amigo de sempre. Mal me reconheceu com as pontas dos cabelos mais claras e com as roupas mais modernas ele sorriu e devolvi a gentileza.

Ia abrir a porta, mas estava apenas encostada estranhei. A essa hora meu pai estava no trabalho e bruxa deveria estar no salão que meu pai havia comprado para que ela fingisse trabalhar. Ouvi alguns gemidos, me encostei na parede e retirei as sandálias de salto...fui indo em direção ao quarto do casal e a porta estava entreaberta. Infelizmente não era o que eu imaginei, apenas a megera brincando sozinha me escorei na parede e sorrindo e fui para a cozinha. Fiz alguns barulhos para que ela desconfiasse de que não estava mais sozinha em casa.

Camila - Você?

Victória - Sim minha madrasta favorita, estou de volta! Não está esperando que eu te aperte a mão não é?

A cara que ela fez me divertiria pelos próximos 20 anos e talvez até mais.

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