Três
Celine sovava a massa entre seus dedos, gostava quando Sabatini lhe colocava nas tarefas da cozinha, mesmo que não descanse nem mais e nem menos com isso. Cozer roupas, lavar e limpar, eram tarefas que faziam parte da vida de Celine, mas Sabatini insistia em enviá-la para longe com peças pesadas, para a bateção solitária. Janice, uma das empregadas da casa, era muito mais rechonchuda que a moçoila. Supunha Celine que a jovem dispunha até de mais força, sendo o caso, era um tanto injusto designar as peças pesadas para a pequena lavar. No entanto, ela não obtinha o privilégio da reclamação.
A extensa mesa de pedra estava virando um misto de bolinhas enfarinhadas, pois os assados precisavam sair ainda no mesmo dia para desocupar os fornos e manejar somente os cozidos no dia seguinte, então tinha trabalho de sobra. Ainda pensava no trabalho que teria depois, pois sempre quando acabava de atender as visitas de sua senhora, tinha trabalhos dobrados por pelo menos uma semana, mas tentou aproveitar o momento que vivia.
Janice manuseava o forno com as luvas, Sabatini reabastecia o fogaréu com a lenha e Eleanor fazia o caramelo de açúcar no final do processo. Diferente de muitos dias, nestas épocas Celine aproveitava para beliscar um pouco mais de comida e alimentar melhor seu estômago; vez ou outra fugindo do olhar cuidadoso de Sabatini. Ouvindo um barulho advindo das grades de entrada, aproveitou-se do momento que Madame saiu para atender os portões, enfiou uma pelota caramelizada na boca e viu as meninas fazerem o mesmo. Em cumplicidade, elas sorriam para a muda, mas a mesma quase engasgou no segundo seguinte.
— Adentre, meu rapaz. — A moçoila levantou os olhos quando encontrou a velha se movimentando na entrada da cozinha e para a sua surpresa, o homem de olhos cinzas surgiu às costas da governanta. — Deposite ali, ao pés da fornalha. — e apontou o lugar onde o homem devia abandonar o amontoado de lenha dos ombros.
Celine viu de mais perto o corpo grosso do homem, enquanto ele abaixava amontoando o conjunto de toras no rodapé da fornalha. O mesmo bateu nas calças e saiu, provavelmente para buscar o restante. A menina não desejava se mostrar tão curiosa, mas simplesmente não conseguia deixar de estudar os movimentos do homem, observando os passos firmes e a curvatura que os gomos faziam quando este pressionava os nervos com força. Os braços estavam de fora e o suor grudava parte do camisete encardido na lombar grossa.
— Celine, aprume um copo de água para o lenhador. — ordenou Sabatini, obrigando a menina a desviar os olhos e limpar as mãos no avental da cintura. — O que houve com o menino Kaléu? — questionou a governanta, entregando ao homem algumas moedas, parecendo um tanto íntima do corpulento. — Soube que tens feito as entregas da semana, o menino adoeceu?
A moçoila se dirigiu até a bacia de barro sobre o mármore frio, pegou a caneca de ferro, uma concha e sorveu três doses de água fresca para dentro do pote largo, indo assim, até o homem.
— Problemas. — respondeu seco, enfiou as moedas no bolso pendurado na cintura e Celine, de um jeito tímido, aproximou-se com a caneca metálica. O homem esticou as mãos, os dedos grossos tocaram a ponta dos seus e aquilo fez a moçoila abrir as pelotas azuis de seus olhos, e mirar o rosto do homem. Ele elevou a caneca até seus lábios, sorveu o líquido fresco em dois únicos goles e Celine admirou o pomo de adão grosso subir e descer. — Agradeço, moça. — retrucou grave, apontando a caneca de volta.
Celine não sabia dizer o motivo pelo qual corou tanto, mas tinha as maçãs do rosto queimando de calor. Pegou de um jeito tímido a caneca de volta, engoliu com dificuldade e se afastou devagar, enquanto o homem se colocava à coçar a barba e olhar duro para o corpo miúdo se afastando.
— Celine é muda. — contou Sabatini, vendo a curiosidade do homem. — Ela não vai responder.
Isto fez com que a menina apertasse as mãos contra a caneca, depositá-la sobre o balcão e demorar-se para voltar a coletar a massa. Ela estava envergonhada, não olhou para o homem e sentiu-se fraquejar. Esta era a pior parte de ter defeitos, sabia que ele a olharia com a mesma cara torta dos outros, por isso evitou levantar seu olhar, sentindo-se extremamente observada enquanto voltava a amassar a massa.
— Já faz tempo que não o vejo. Como tem estado Margot e Ira? — Sabatini até notou o olhar curioso de Bravo, mas também notou o desconforto de Celine, sendo assim, o puxou para outra conversa. — Há rumores de que as coisas não andam bem.
O homem ainda enviou mais uma dura olhada para a moça, desviou sua atenção para a velha miúda e pôs-se a andar para fora. Sabatini o seguiu com cuidado, era uma velha conhecida, muito mais íntimo de Marduk do que de Bravo, mas ele tinha instruções para lidar com a senhora. Provida de um parentesco próximo de Margot, ela obtinha alguns conhecimentos sobre os lenhadores do monte alto, nos arredores do vilarejo frio.
— Pior a cada dia. — resmungou a contragosto, desceu os acessos e se encontrou com o cavalo e mais duas cargas na traseira acoplada. — Ira pediu que vigiasse mais alguém. Comporte uma mulher que não vá arriar as pernas no trabalho. Ontem escorracei a neta de Delfine, e a velha está numa maldita choradeira insuportável.
— Oh, Kaléu… Esse moleque não aprende! Não lhe deu uma surra? — questionou a velha, o olhando da escada.
— Se eu bater mais, mato o bastardo. — respondeu Bravo, demonstrando sua raiva e desgosto.
Sabatini fez uma negativa, viu o olhar cinza do homem sobrepôr seus ombros e vigiar Celine. Por curiosidade ela olhou para trás, teve certeza que o curpulento se interessou e procurou arriscar, na dúvida, estaria apenas fazendo perguntas comuns.
— As águas de fervura dos panos de cozer tem causado problemas à muda. Que achas de oferecer a ela algumas moedas a mais? O serviço dela é bom. Sabes cozinhar e o faz muito bem, por sinal. — imediatamente, Bravo se viu ponderando, no entanto, tentou ser racional
— Preciso de alguém que aguente o trabalho, não de um mirrado de mulher para me dar mais dor na bunda. — E Sabatini sorriu, já que ele ao menos ponderou a hipótese.
— Ora, Bravo, seja perspicaz. Não há serviço mais pesado que os encardidos que Celine limpa, ela tiraria sua casa numa bandeja de prata. Não pensaria duas vezes se pagasse apenas uma moeda a mais. Sabes que minha senhoria é pão duro, uma moeda a mais ainda seria abaixo do que paga para Delfine. Ela aceitaria sem pensar! — Sabatini o viu atiçar o cavalo, mas viu ele ainda mais pensativo do que o próprio homem poderia jurar.
— Se sua senhoria descobrir que está espalhando seus empregados para os outros, lhe dará o prazer do escorraço, velha. — ele cuspiu de lado — Garanta que a muda além de ter a boca fechada, tenha as pernas também.
Sabatini deu um passo adiante, segurou as rédeas do cavalo e impediu que Bravo seguisse em frente, roubando a atenção do parrudo impaciente. Madame Sabatini não teve filhos, não foi uma mulher aproveitável para um casamento, uma vez que seu marido a abandonou quando estas não encheu a casa de fartas crianças. De ventre seco, ela vivia para o trabalho e, de certa forma, tinha seu apego para com a muda. Via na menina o risco da solidão e o abandono, mas fora a primeira vez que via um olhar sobrepor a miúda, mesmo que perigoso, se conter para com a moçoila. E a velha viu ali, uma oportunidade.
Celine podia não saber, mas Sabatini a escondia dos maltrapilhos que a usariam apenas para o descarrego do prazer masculino. De fato, a menina nunca precisou dormir no trabalho, mas o chão compartilhado com os roedores era mais seguro que o risco do trajeto de casa. Uma vez muda, ela estaria em casa apanhando com o bucho cheio de bastardo sem ao menos poder obrigar o pai a reconhecer o progenitor das crias. Nessas condições, Sabatini usou de uma artimanha usual e infalível. Homens, mesmo homens como Bravo, desejavam o intocável. Bastardos de sacos grandes adoravam macular o que havia de mais belo no mundo. Quanto mais puro fosse, mais o homem desejava destruir. Com sorte, mesmo que não seja o melhor plano, instigaria a ideia no lenhador solitário.
— Uma virgem, meu caro. — soltou de voz baixa, vendo a mandíbula do homem enrijecer sob os fios da barba grossa e apertar os punhos com as rédeas. — Um corpo imaculado, limpo e intocável. Só há dois modos de tocar na jovem, contra sua vontade ou depois da igreja. Não teria opção melhor que esta. — Bravo desceu os olhos, engoliu devagar e se viu mais tentado do que gostaria.
Os olhos de Hanoar foi para além do rosto de Sabatini, enquanto esta dava um calmo passo para trás. O homem apertou as rédeas mais uma vez em suas mãos, bufou como um animal contido e bateu os açoites rangendo os dentes. Clemence limpou as mãos no avental, olhou a imagem dos fundos, onde Celine enfarinhava as mãos, e depois olhou para o homem que já sumia ao final da alameda.
Porque Sabatini não pensou em algo assim antes? Bom, Bravo não era o tipo de marido que Celine deveria ter. Não, com certeza não. Mas, se tratando de Celine, Sabatini supôs que não devias escolher. Se o destino lhe apontava um, bastava-te.
(...)
— Celine, há de querer dar uma volta com seu irmão?
A menina comia um puxado de carne seca com um limão ao lado, estava sentada, cansada e pensando na morte da bezerra enquanto Bartolomeu contava as moedas brilhantes. Hoje fora lucroso, sua senhoria abriu os bolsos e todas as moedas tinham pesos prateados. A menina levantou os olhos, sorriu com a intenção de seu irmão, mas sentiu-se desanimar. Estava suja, havia farinha até no rosto. O que iria fazer rodeando a praça deste modo?
— Ah, vamos! — Ele enfiou a mão em outro bolso e mostrou as outras moedas. — Fiz bons bicos hoje. Darei uma volta contigo, lhe comprarei uma maçã e ainda voltarei com os mesmos bolsos fartos para casa. Estás linda, irmã!
Celine sorriu tímida, engoliu o último pedaço de carne, limpou a boca com as costas de suas mãos e apalpou a touca encardida, como quem se garantia em estar arrumada. Bartolomeu lhe ofereceu o braço, Celine deixou o seu copo à beirada da entrada e pôs-se a caminhar com o robusto irmão. O centro convivial ao final da tarde era um misto de peregrinos, casais apaixonados e trabalhadores cansados; uns tinham tempo para gastar, outros ansiavam voltar para casa de imediato. O cheiro da ponte central não lhe era das melhores, a água tinha uma leve cor escura e alguns resíduos em sua superfície, mas gostava da intenção de Bart quando este se aproximou do velho cesteiro, e lhe entregou uma moeda barata a troco de uma maçã caramelizada.
— Tome, Celine. — A mesma sorriu, puxou o laço que embrulhava o pacote e andou devagar sobre o ladrilho de pedra, tentando aproveitar o rápido passeio. — Talvez devesse soltar o meu braço e dar umas boas olhadas. Poucos sabem que sou teu irmão, mas quem a ver verá que sou sua única companhia. — Ela concordou, sorriu tímida e ofereceu a maçã desembrulhada. — Não, coma. Precisas de comer mais do que eu. Vamos, sorria para um jovem sozinho e tente não escolher um muito feio.
Bartolomeu era péssimo casamenteiro. A pobre tímida sabia que o rapazote estava apenas usufruindo do bom coração para tentar ajudar, mas desde quando a moçoila se tratava de uma atirada? Por Deus, Celine não flertava nem com as roupas que lavava! Sendo assim, limitou-se a alguns passos adiante, rodopiou no centro da ponte e sorveu uma mordida grossa na maçã. Bartolomeu riu da felicidade espontânea no gesto simples, notou algumas poucas olhadas na menina, mas nada que ele pudesse julgar a "salvação" da irmã. Quando ela se virou de costas, pôs-se a caminhar para trás, ficou de frente para Bart e gesticulou algo como "bom" usando o polegar para cima. O rapaz não sabia dizer se ela estava se referindo ao simples passeio ou a maçã, mas se distraiu tanto quanto a menina.
Ao final da caminhada, havia um declínio que separava a formação da ponte para a formação da estrada e Celine acidentalmente casou o calcanhar no vão. O desequilíbrio a tomou de imediato, Bartolomeu que estava sorrindo esticou a mão e apressou o passo; e a muda caiu no chão esborrachando-se como um amontoado de esterco fresco, causando um alvoroço. No momento em que seu rosto foi de encontro ao chão duro, Celine viu um par de patas bater próximo, o barulho ensurdeceu seus ouvidos e quando levantou os olhos, viu um equídeo furioso tentando tirar-lhe a vida. O relincho do cavalo a assustou, seu susto tornou-se um grito esganiçado no peito e Celine berrou grosso com as cordas vocais danificadas que tinha.
— Celine! Celine! Está tudo bem! Está tudo bem! — Bartolomeu correu para junto da irmã, segurou seu rosto e ouviu o ruído grotesco que saiu de sua garganta. A menina tremia, mas calou-se quando enxergou o rosto do seu irmão e conseguiu ouvi-lo. — Acalme-se, Celine. Está tudo bem! Foi só um susto.
O cavalo foi mantido à distância, a menina olhou ao redor e encheu os olhos de água. A última vez que comeu uma maçã caramelizada era criança e fora Bart quem a presenteou, agora a maçã estava massacrada no chão e, pior, havia um aglomerado de curiosos para entender quem fora o verdadeiro animal da situação. Ela, ou o cavalo.
— Ignore-os, Celine. — Bart sabia como a irmã se envergonhava com seus barulhos e se compadeceu com a situação. — Não olhe para eles, mantenha a calma primeiro.
— Maldição! — bradou a voz rude e de olhar cinza, corpo suado e barba grossa. — Perdeu algum pedaço neste inferno?! — Bravo se abaixou ao lado de Bartolomeu, pouco se importou com a presença do rapazote e olhou para a menina com feições duras — Quase pisotiei sua cabeça! Quem diabos anda com o traseiro olhando as pedras?! — rosnou grosso.
E Celine se encolheu, escondeu o rosto no peito do irmão e pôs-se a chorar. Estava sendo repreendida, pelos pares de olhos mais lindos que já vira em sua vida. A menina estava de novo, com muita vergonha.