Dois
Celine nunca pode debutar. Sua mãe tinha vergonha de ter colocado no mundo uma criança defeituosa, o que lhe custou alguns olhares da sociedade. Restava para ela somente o trabalho, a serviço de pessoas que lhe tratavam com misérias; e tinha madame Sabatini, quem lhe tratava com punhos rígidos, mas ainda assim lhe prestava mais cuidados do que qualquer um.
— Devo deixar claro que se alguma coisa sair fora do planejado, cobrarei o prejuízo com varas. — ordenou sua senhoria para uma fila de empregados.
Madame Sabatini era a governanta de uma mulher do tipo carrasco. Uma vez que seu marido foi um combatente reconhecido pela coroa, seus bens aumentaram consideravelmente, encaixando-os assim na alta sociedade. Celine não entendia muito bem o prazer de tratar as pessoas de nível inferior tão mal, mas nunca viu o caso ser diferente. Miseráveis seriam sempre miseráveis, a menos que o milagre da riqueza os pegasse. E ali, sua senhoria ditava regras para uma suposta visita de suma importância, visita esta que Celine jamais a vira tão ansiosa para receber.
— Clemence. — chamou a senhoria, olhando para Celine em meio a fila de serviçais.
A mulher vestia-se a finos linhos, sempre moldando o leque de vento nas mãos enrugadas, o que roubava a curiosidade da menina. Ela dava ordens a Clemence Sabatini, a governanta, entortando ainda mais as feições sérias do rosto de uma mulher que já não podia mais ter filhos. Vivida e ruim, era sua patroa, mas graças à velha que governava a casa, Celine tinha um lugar para chamar de emprego.
— Sim, minha senhora. — respondeu a governanta..
— Vista-a decentemente. — pediu parando em frente a muda e demonstrando sua negação — Familiares da coroa se compadecem com quem ajuda os menos afortunados, então quero que vejam que, apesar de seus defeitos, ainda lhe dou um trabalho.
— Sim, senhora. — concordou Sabatini.
Celine não frequentava a igreja, pois não tinha coragem, já que não podia rezar. Ela acreditava fielmente que por não ter voz, nem mesmo Deus lhe ouviria. Agora, estar naquela situação, exibida como um objeto de pena, lhe dava apertos que faziam o coração chorar. Ao menos agora teria um uniforme, um privilégio para poucos.
Retirando-se do salão principal sob as ordens de sua senhoria, Celine se encaminhou para os fundos da casa, desceu as escadarias de madeira seca e adentrou os porões de caldeira, ao lado da movimentada cozinha. Tinham três dias para preparar um farto e atraente banquete, manter a prataria brilhante e engajar a boa aparência do casarão. Com isso, a moçoila atiçou o fogo das caldeiras, pegou a grossa colher de pau e subiu na banqueta de apoio, para mexer os lençóis que estavam a cozer o encardido da peça. Era uma tarefa árdua, mas precisava desocupar a caldeira para ajudar na cozinha, uma vez que o fervido não podia pousar mais uma noite na soda.
— Ponha força nestes braços! — ordenou Sabatini, ao passar ao lado da acalorada fornalha — E ande logo, a de ter muito trabalho pela frente. — E como sempre, Celine concordava, procurando dar sempre o melhor de si.
(...)
A carcaça rígida do corpo truculento levantou o machado sem muito esforço, pressionou a musculatura na ponta do cabo e o elevou com força, desferindo o choque contra a tora grossa do toco de madeira. O objeto rachou de uma única vez, fazendo as lascas respingar e enviar um filete para a beirada da boca fina do homem, o obrigando a cuspir com o resultado.
Bravo suspirou, elevou os olhos para o vento frio que bateu contra o couro do camisete encardido, apoiou o corte do machado e puxou o suor da fronte com as mãos. O trabalho dobrou, isso o obrigou a se aplicar mais, ordenar mais e até incomodar a paz de Marduk, seu irmão. Provinha de uma família dos picos altos dos frios selvagens do Norte, era o mais velho e, por consequência, o responsável. Era o responsável pelos bastardos que sua mãe enfiou na barriga e os colocou no mundo, o responsável por quase matar o pai, o responsável por ser o carrasco, o responsável por manter a maldita linhagem que tinha dentro de si em controle, para não estourar o couro surrado de cada um que habitava sua casa. Ele era o responsável por manter a responsabilidade, que nenhum membro tinha.
Por sorte, tinha um homem com a cabeça, por enquanto, no lugar. Marduk, ou Ira se preferir. A boa fama não rondava a família, mas Bravo era o último a se importar com estas tolices, pois estava mais interessado em dar jeito à paz que nunca teve à se importar com a índole que as más línguas lhe empregavam. Para não piorar os rumores evitava até mesmo as entregas, coisa que não teve muita escolha em fazer nos últimos dias. E quando parou para descansar, puxou do canteiro o cantil redondo que continha uma boa dose de um alcoólico quente, molhou a garganta, lambeu a ponta da barba e limpou o suor do bigode com as costas da mão. Foi quando ouviu a distância barulhos interessantes.
Os gêmeos pequenos carregavam na frente da casa as toras para secar, empilhavam os cortados no tablado coberto, estas boas peças o irmão enviar-lhe-ia aos marceneiros interessados na matéria pré-pronta. Então, Bravo olhou para trás e constatou que não era os gêmeos quem causava os barulhos, o que fez ele afinar os olhos e entender que se tratava de gemidos. Bravo fincou a ponta do machado no toco da árvore que usava de apoio, bufou impaciente e puxou uma galha do chão, limpando a vara das folhas penduradas e olhando seco para o rumo de onde vinha os barulhos.
Kaléu, seu irmão, era um imbecil que vivia a cozinhar a maldita paciência que Bravo não tinha. Estava na flor da juventude adolescente, com os pêlos do saco ainda baixos e, como ele supôs, estava a praticar um ato sexual em meio a relva, com a neta de Delfine. Bravo já havia batido no garoto, lhe dado uma surra pelos rumores e os problemas que teve de segurar por causa da falta do moleque e o prazer em se enfiar em vagabundas; agora, o miserável tinha o traseiro nu para fora, enquanto a sirigaita rameira gemia de olhos fechados. Kaléu nem mesmo percebeu quando o primeiro filete de vara bateu em seu traseiro, o fez gritar e encolher os músculos do quadril para dentro, ainda no ato com a moça.
Bravo, na força de sua raiva segurou o jovem pelas mangas e o puxou para cima, de um jeito torto. A pobre moça gritou e encolheu-se envergonhada enquanto via o amante levar outra varada, esta que o lenhador não sorvia de nenhum compadecimento para desferir contra o garoto.
— Bravo! — gritou Kaléu, tentando se tampar ou se proteger, caindo no chão, com as calças arriadas.
— Suma daqui, sua vagabunda fedelha, ou vou enfiar varas nesse seu traseiro redondo para manter suas malditas pernas fechadas! — rosnou Bravo, enquanto a menina tremia e se arrastava para dentro, ajeitando suas saias — E você!? — gritou o corpulento homem arrastando o mirrado magrelo pelo colarinho, enquanto o menino tremelicava puxando suas calças — Seu bastardo! — Ele desferiu outro golpe enquanto o garoto tentou fugir, totalmente em vão. — Vou capar-lhe como um maldito porco, seu filho da puta! Bastardo inútil!
— Ira! — gritou Kaléu, sentindo as dores dos filetes contra o lombo ossudo, tentando se livrar da nova surra. — Porcaria, Bravo! Pare de me surrar! — berrou o magricela, chorou envergonhado e gritou de encontro a outro golpe.
— Bravo?! — chamou Ira, segurando o braço do irmão, impedindo-o de descer as mãos e golpeá-lo com a vara. — Que diabos está havendo?
— Vai se foder, Bravo! — rosnou o magricela, cuspindo uma pelota de sangue, mostrando que um filete da vara pegou a beirada da boca do garoto.
Kaléu limpou o rosto, segurou as amarras da calça e passou a ajustar o cinto, sob o olhar cuidadoso dos dois irmãos mais velhos. Tinha vergonha em seu olhar, um pouco de choro, mas raiva também. Afinal, ele era um descendente selvagem. Mais magro e menor que os irmãos, mas tinha calor no sangue para dar e vender.
— Ei, cale a sua boca, frangote! — Ira interveio — Tens boca para xingar o irmão, mas para apanhar grita como uma mulherzinha? — rosnou Ira, fazendo o irmão se envergonhar ainda mais. — Que merda aprontou agora, Kaléu?
— Esse bastardo inútil estava com o pau dele socado na neta de Delfine. — rosnou o lenhador, jogou o filete de vara no chão e apontou o dedo. — Se esse imbecil trazer uma vagabunda prenha pra dentro de casa, vou capar o maldito saco juvenil que ele não consegue segurar. Ele ainda terá muita sorte se viver para ver o bastardo dele nascer.
— De novo, Kaléu? — bradou Ira — Eu devia ter deixado Bravo arrancar suas bolas, vagabundo. Vá para dentro, agora! Vá trabalhar para ter juízo!
Ira era um truculento tão grande quanto o irmão, ambos partilhavam da mesma doutrina — vez ou outra discordavam, mas como bons descendentes dos picos selvagens, se resolviam em boas brigas dando o assunto como resolvido. Era por esse e outro motivos que Bravo mantinha pesados punhos para redigir a casa, porque se dependesse dos impulsos dos outros, estavam todos mais afundados na lama. Alguém teve de tomar o posto carrancudo, e este alguém era Bravo.
— Vou me casar com ela, seus idiotas! — retrucou o magricela — Não podem me impedir!
— E vai enfiar o rabo dela aonde? — Bravo deu um passo à frente, Kaléu um passo para trás. O rapazote estava intimidado, mas tinha o mesmo sangue quente que os irmãos. No entanto, Ira impediu Bravo de dar mais um passo, pois sabia que um deles iria passar dos limites se não se contentasse com o assunto por ali. — Penteie os pentelhos do teu saco primeiro, você não tem onde cair morto! — bradou o loiro corpulento.
Sem aviso, Kaléu levou um supetão grosso de Ira, sentiu o pé da orelha doer e olhou torto para o irmão.
— Vai trabalhar, vagabundo! — ordenou Ira, adiantando a bronca. — Você não vai casar com ninguém!
Bravo deu as costas vendo o mirrado caminhar bicudo, voltou para o tronco onde estava ancorado seu machado, bebeu mais uma dose do álcool de seu cantil redondo e suspirou pensativo. O homem de olhos cinzas viu a casa distante, percebeu o olhar de sua mãe advindo do vidro da janela e sentiu o compadecer triste da senhora. Ignorando o olhar penalizado, ele puxou o machado pelo cabo, alinhou uma tora grossa sob o toco da árvore cortada e desferiu um golpe. Os músculos advindos do trabalho pesado o fez se acostumar com o serviço rígido, dando à ele precisão e competência. Ira se colocou ao seu lado, roubou-lhe um pouco de seu cantil e também olhou para a janela.
— Não dei sorte quando casei. — resmungou o cabeludo de guinchos nos fios e a barba um dedo menor que a de Bravo. Ele limpou a boca, fechou o cantil e continuou olhando para a janela. — Você precisa encontrar uma mulher para colocar nesta casa, uma que seja sua. Somos um bando de maltrapilhos fervorosos e Kaléu só está fazendo o que costumamos fazer nessa idade. Uma hora não conseguirei mais ninguém para cuidar da casa. Ninguém vai foder o que é seu e esses moleques precisam de uma mulher que os diga, ao menos, a importância de uma dentro de casa.
— De qual está falando? — rosnou Bravo, desceu o machado e sentiu outra lasca grudar na barba — Se elas já não foram fodidas pelo bastardo do nosso irmão, o que espere que eu faça? Vá passear como uma marica com tempo de sobra para caçar uma desgraçada pela praça? Só um idiota disponibilizaria sua filha para com um de nós. Margot só foi entregue à você porque estava doente. Em plena saúde, o pai a teria usado para algo mais vantajoso. Eu não tenho paciência, e não acho que devo castigar ninguém ao peso dessa desgraça.
— Foda-se. — retrucou Ira, ele olhou duro e devolveu o seu cantil, observando o irmão separar as toras. — Arrume a droga de uma mulher ou entupo uma outra vagabunda nesta casa. E, quando Kaléu encher o bucho de alguém, você vai se arrepender de não ter enfiado alguém "intocável" lá dentro. Rezemos para que não seja uma rameira de quinta, nem alguém igual a mamãe. Se eu já estivesse viúvo o faria, mas ainda não estou. Nem nisso tenho paz…
Bravo bateu o machado contra a tora grossa e o partiu com tanta facilidade que Ira notou a raiva nos olhos do irmão, mas não se importou. O lenhador tomou a frente da família quando impediu o pai de matar a mãe, quando quebrou as pernas do velho Will, o tornando um doente inválido. Como castigo, condenou a própria mãe a cuidar do pai. Era isso, ou ele matava os dois… Bravo tomou as rédeas da família e agora precisava fazer alguma coisa. Outra vez.
— Não vou me casar, esta necessidade não existe. — retrucou seco.
Ira ignorou a reclamação, saiu a passos pesados e pôs se a fazer sua parte. Trabalho tinha de sobra, tanto para ele quanto para Bravo, ao menos nisso não podiam reclamar.