Cinco
Celine rangia os dentes, urrava grosso e sentia os filetes da baba de sua boca tentar colar os lábios quando esta esticava a mandíbula em dor.
Abastada do serviço, a menina voltou para a casa dos pais, na qual foi entregue na companhia do irmão e os rumores de que estivera na presença do lenhador. Uma vez que Celine não era ciente dos fatos, a família do montanhês tinha fama de secar donzelas ao descaso e abandoná-las na vida com bastardos; e seu pai se envergonhara quando foi informado sobre o peculiar incidente em praça. Principalmente na presença dos vizinhos. Bartolomeu tentou lhe caber de explicações, mas não fora o suficiente.
Celine estava de joelhos dobrados, apertava as mãos ao beiral da poltrona dura e apanhava sobre as proximidades da lareira simples da velha casa. Sua mãe se mantinha de pé no canto, segurando os irmãos mais velhos pelos ombros, enquanto Bartolomeu já havia levado sua surra e Celine urrava, levanto os açoites contra o osso da espinha a fazendo estremecer.
— Já não me basta ser mulher, ainda há de vir para esta com as lorotas de um maldito montanhes! — berrou o velho e apesar de ter a mesma estatura de Bartolomeu, o homem usufruia de uma força brutal nos punhos. O pai cuspiu no chão em sinal de vergonha, bufou encerrando os golpes e quando Bartolomeu se colocou um passo adiante, o velho apontou o chicote para ele, mostrando os dentes. — Tua única obrigação com ela, é cuidar para que esta imprestável não me apareça buchuda e tu me vens com aquele exemplo de bastardo?! — Bartolomeu engoliu em seco, com suas dores contidas e suas costas também manchadas. Pois ele fora o primeiro a apanhar.
— Já disse, meu pai. O lenhador não nos fez mal. — Bartolomeu abaixou os olhos, moveu o peso dos pés e sentiu a raiva de seu pai.
— Vindo de um mequetrefe que não se segurou no serviço, se tua irmã embuchar, faço teu sangue pagar o prejuízo. Lhe enterro no quintal, para que a criança substitua tua boca. — o velho lhe olhou feio, apontou a saída de casa e o impediu de caminhar até Celine — Vás, se tua irmã veio a casa, dormes no teu lugar. Rua!
Celine tinha o rosto molhado de choro, o corpo mirrado de dor, os ombros carregado de remorso e a mãe, pobre existência no mundo, apenas mantinha os olhos baixo, evitava interceder e os irmão, apesar do olhar compadecido, evitavam tomar suas dores, ou acabariam surrados como Bartolomeu.
— Deixe-me pegar um couro surrado, meu pai. — Pediu o rapazote. — Não há de querer que eu morra no frio, há?
— Pois o faça, somente. — ditou o velho, arregaçando as mangas e saindo da pequena saleta simplória, mediante a luz amarela, abandonando Celine em sua vergonha.
— Para a cama. O dia já foi longo o suficiente por hoje. — A mãe de Celine empurrou os irmãos que evitaram olhar as costas surradas da menina dobrada.
Ela nem mesmo ajudou sua filha levantar, não interveio no castigo, não pediu ao marido por alívio, não fez nada. Bartolomeu assistia a frieza da mãe para com Celine de um modo assustador, questionando-se o porquê desta maldição. Porque Deus castigaria a pobre com esta família? O rapazote, com este pensamento, adiantou um passo, estendeu a mão para a miúda franzida e a ajudou a levantar. Notou os olhos embargados em água, as maçãs coradas de sofrimento e as íris azuis irritadas. E mais uma vez, teve pena da irmã.
— Estou a dormir no frio do paiol, Celine. Tendo procurado serviço fora de hora, levei meu acolchoado para fora. — contou triste — Há de ser frio mais para ti, por tanto não vou levar cobertor. Darei um jeito.
Celine queria ter voz e dizer para Bart não ir. Celine queria ter sons audíveis na garganta e agradecer por Bart ser o único a lhe cuidar. Mas, tudo o que conseguiu fazer foi se encher de seu nervosismo, balbuciar murmúrios soluçados e confundir a interpretação de Bart.
— Não tente falar, irmã. Não adianta. Não entendo. — ela se calou — Volto pela manhã. Queres ajuda para chegar ao quarto?
Ela baixou os olhos, sentiu as costas arder e evitou que o irmão visse sua derrota. Mancando, cambaleou fraca, passou diante o rapaz preocupado e engoliu suas dores. Celine não olhou para trás e passo por passo rangeu as tábuas do chão, atravessou a saleta vagarosamente e procurou a saída, sabendo que Bartolomeu a olhava como uma pobre coitada. Sabe, enquanto a menina quase caía nos degraus de saída, tomando o choque da noite fria, ela pôs-se a pensar no tamanho do peso que vinha a ser. E Celine caminhou no escuro do quintal frio, soterrando de um modo manco a poeira do chão batido, até encontrar a portinhola do paiol. Na escadaria acima, havia um amontoado de sacas de palha em conjunto, forrado com couro grosso, no qual Bartolomeu fazia de colchão. Para subir, assustou as galinhas da escada e sentiu a dor consumir sua canela quando a forçou, os filetes riscados da costas sangrando enrijeceu o músculo e Celine quase cedeu. No entanto, subiu. Espantou as galinhas que ocupava seu lugar, não conseguiu tapar as costas por conta dos ferimentos e abraçou os cobertores a frente de seu rosto. Estava frio, estava doido e estava chorando.
(...)
Bartolomeu tinha uma teoria. Em terra de leigo, a ignorância é uma dádiva. Em sua casa, a ignorância era uma assassina. Bartolomeu supunha que Celine não era filha de seu pai, mas a menina se parecia demais com a mãe para supor traços. No entanto, ele não conseguia pensar em outro motivo para o ódio contra a menina e ainda, tinha o olhar de remorso da mãe. O pouco caso, a pouca proteção que muitas vezes fora negada pelas ordens do pai, mas muitas vezes fora simplesmente ignorada pela mãe. No fim, não importa o motivo. Celine era só uma rata amuada dentro de casa, com pouco da vida e encolhida ao sofrimento. E foi com este pensamento que Bartolomeu resolveu intervir, como sempre, no destino da irmã.
O casaco que usava não era lá tão grosso, a noite estava judiando e suas costas estavam grossas, por mais uma vez ser surrado pelo pai. Bart sabia se virar, podia apenas dar o fora de casa e se acometer no mundo, mas tinha pena da vida que a pobre muda podia ter. No entanto, não havia previsões de como se livraria de tal destino, uma vez que a moça não valia para casamento, até ter uma ideia. Bom, podia não ser a sua melhor ideia. No entanto, nesta ideia, havia uma fagulha esperançosa.
Ao cair com o pé socado no ladrilho do asfalto torto, Bartolomeu notara no olhar da irmã muito mais que um brilho nos olhos. Não, ele não era sensível a ponto de achar que Celine estava apaixonada, mas ele era esperto o suficiente para saber que o olhar curioso da irmã para com o homem, foi demasiadamente exagerado. Ele sabia dos rumores, sabia que as bocas diziam que o lenhador era um espécime ruim, mas… ele também sabia que até mesmo ele estava na boca do vilarejo, mal falado pelas más línguas e apontado pelos olhos tortos. Sendo os rumores contra si mentirosos, podia supor que os rumores contra a família do lenhador também vinham a ser.
O Rapazote passava frio, carregava em sua mão um fraco lampadário à óleo, que estava para perder a luz a qualquer instante, mas estava motivado. Pegou a trilha que subia as montanhas, sentiu o vento gear as costas e caminhou na direção da casa do lenhador. Ele tinha… esperança. Por Celine! Coisa que jamais sentira há tempos. Caminhava solitário, tossia, sabendo que podia adoecer com o frio nas costas, mas precisava ir adiante. Foi quando olhou para trás, mirou os lampadários para o alto da estrada e ouviu um trote alcançar seus ouvidos. Alguém se aproximava, caminhando à cavalo na surdina da noite. Não demorou muito para que Bartolomeu precisasse se jogar mais à beira da trilha, invadindo as moitas verdes do mato alto, uma vez que o lenhador pareceu não enxergá-lo.
Bartolomeu aninhou-se na moita úmida, notou que o lampadário partia o vidro e o restante do óleo se derramou, apagando a última fagulha de chamas. Agradeceu por não ter sido pego pelas patas do animal, mas soltou alguns impropérios, uma vez que o lenhador podia tê-lo matado! A carroça parou mais a frente, Bartolomeu tentou levantar e o fez, devagar. Quando surgiu a estrada, Bravo olhava para trás, afinou os olhos e lambeu os lábios tentando entender o que houve.
— Mas que diabos pensa que está fazendo? — rosnou o homem.
— Boa noite, lenhador. — retrucou Bartolomeu, um pouco desgostoso com a estupidez do homem — Eu estou bem! — comunicou limpando-se, tentando se livrar da sujeira do mato e da terra.
— Pois não perguntei. — respondeu impaciente, até que o rapaz deu mais alguns passos à frente e Bravo se viu obrigado a puxar seu lampadários, para se voltar na direção do rapaz e notar que, tratava-se do irmão da muda — O menino dos porcos? Há de ser um maldito mártir esta merda!
— Não sou um menino, sou um homem. — retrucou ajustando o casaco, agora gelado pelo orvalho do mato.
Bravo cheirava a álcool, tinha os olhos levemente cansados e, mesmo bêbado, mantinha-se em riste. Bartolomeu olhou a luz no alto da estrada e concluiu que o lenhador estava na taverna de Gerald, bebendo e se enfiando nas vagabundas. Pois bem, Bartolomeu já visitou a taverna com um auxílio de duas ou três moedas e, por sinal, fora uma de suas melhores noite, mas não estava ali para compartilhar suas experiências de homem.
— É uma toupeira cega. — retrucou o truculento guardando seu lampadários ao beiral de apoio e voltando a segurar os arreios — Volte sua caminhada, saia do caminho e deixe-me em paz!
— Espere! — Bartolomeu se adiantou, segurou nos arreio do homem e o viu olhar confuso. — Estava a caminhar para sua casa.
— Não foi convidado. O que querias fazer? — retrucou seco — Não há nada daquela redondeza para o rapaz, agora solte esta merda, tenho responsabilidades a cumprir.
— Suas responsabilidade inclui a boceta de uma das rameiras de Gerald? — retrucou Bartolomeu, obtendo o olhar de desafio de Bravo. — Não tenho medo do lenhador, podes cuspir o tanto que quiseres. Estou a subir as trilhas porque tenho um assunto a tratar, e acho que pode vir a calhar de seu interesse.
— Deixemos claro, garoto, que os buracos onde me enfio não é da sua conta, não compartilho com intrometidos e, se o assunto não me agradar, chuto seu traseiro de lá até de sua casa. — respondeu altivo — Agora suba, não pretendo me meter no frio por um moribundo noturno. E espero, para sua sorte, que não me faça perder tempo.
Bartolomeu se movimentou até a traseira da charrete, notou o barril de cerveja quente amarrado com cordas e se enfiou na traseira segurando aos beirais da madeira. Bravo instigou a caminhada do animal, uma vez que notou o rapaz acoplado na charrete, deu continuidade à trilha e tentou imaginar que assunto o garoto dos porcos teria à tratar com ele? No meio da noite, numa trilha solitária, ele só esperava não ter que dar sumiço no corpo do rapaz. Pois sim, este não seria o primeiro a sumir pelas mãos do homem, se precisasse o fazer.