Seis
A caneca fumegante bateu quente contra a madeira pesada da mesa de jantar e Bartolomeu estava mais do que grato em não se demorar na estrada, pois estava debaixo de um teto e melhor ainda, com um líquido quente para sorver. Ira, irmão de Bravo, lhe entregou o objeto sob um olhar cuidadoso, enquanto Hanoar retirava o casaco e se aproximava do fogão ainda acesso.
Não havia riquezas dentro da casa. Era um acomodado grande, mas simples, e sujo. Não que Bartolomeu reparasse em descuidos sobre higiene, mas sabia que a família de Bravo provinha de muitos homens na árvore genealógica. E, por experiência própria, sabia que quem guiava o homem para o caminho do impecável, era a mulher. Algo ausente na família do montanhês.
— Desculpe me intrometer, mas não deverias estar dormindo? Eu achava que teria de acordá-los quando chegasse. — questionou, procurando ser o mais educado possível.
Ira estava sério, mas cuidadoso e, diferente de Bravo, não estava bêbado. Por tanto, pretendia conduzir aquela conversa do melhor modo, uma vez que estavam cuidadosamente a estudar o rapaz.
— Minha esposa está em recaídas. — respondeu de forma limitada enquanto mantinha o olhar desconfiado no rapaz — Bom, vejamos o que o traz aqui a esta hora. Sabes que não se faz visitas assim, e se tratando de nós, o mataríamos às cegas. Diríamos apenas confundí-lo com um cervo, não sabe?
Bravo puxou a cadeira grossa, depositou um jarro de ferro sobre a mesa, encheu seu copo e apontou o jarro para o irmão, sentando-se com suas feições duras. Não se importava com os barulhos, sabia que haveria um parente ou outro espiando o corrido pela casa e, mesmo bêbado, estava atento à situação.
— Passou-me o risco. — confessou a verdade, já que Bartolomeu não tinha intenção de enganá-los.
— A coragem é um sentimento que só os idiotas tem. — comentou Bravo se fartando de sua cerveja, sem se preocupar em ofender o garoto quantas vezes pudesse. — Desembucha, moleque! — ordenou o bebum, puxando a caneca grossa, sorvendo um grande gole.
— Bom eu… Sabes que sou irmão da muda, Celine. — começou.
— Ouvi falar. Kaléu a conhece melhor, mas tem pouco a dizer. Algum problema? Não vá me dizer que Kaléu roubou a graça de sua irmã, também? — questionou Ira, muito mais paciente que Bravo. — Vejamos, garoto. Temos uma filha de donzelas apaixonadas, teríamos que avaliar o terreno. Entende?
— Não, não. Não há nada com Kaléu, por Deus… Celina não é destas moças! — Bartolomeu sentiu-se ligeiramente ofendido.
— Vais enrolar mais? — questionou Bravo, batendo a caneca na mesa, visivelmente irritado e buscando um jarro para encher o pote novamente.
— Eu não acredito que estou a fazer isso… — resmungou o rapaz nervoso, desaprovando a bebedeira do lenhador estupido. Mas, ousou. — Queres casar com minha irmã?
Bravo estava virando a cerveja gargalo abaixo, mas cuspiu ao longe, espirrou a cerveja contra o rosto do menino e pouco se importou com o garoto lambrecado pelo jato alcoólico. Bêbado e fora de si, Bravo pôs-se a rir abertamente, sem se importar se acordaria os membros da casa. E Ira, que até então mantinha-se paciente, compartilhou das risadas, mas de forma mais contida e educada. O infortúnio do momento fazia uma anedota ao semblante dos dois, mas não para Bartolomeu.
— Meu jovem, subir a montanha a esta hora para oferecer casamento? — comentou Ira, não se importando tanto com o constrangimento de Bartolomeu. — O que o rapaz esperava? Um padre, uma igreja e um sim?
— De que buraco acha que viemos?! — riu Bravo — Qual o problema com a muda silenciosa, não consegues contar de quem é o bastardo? Porque achas que me casaria a cegas com tua irmã? Qual a merda que te acomete para expor a muda? A vagabunda não manteve as pernas fechadas e por algum acaso achou que ia nos encontrar desesperados para cair numa maldita lorota dessas?!
Bartolomeu podia sair dali escorraçado, surrado e morto, até, mas não ia engolir o palavreado torto do lenhador bêbado. Pegou sua própria caneca e atirou o líquido amarelado contra o rosto do barbudo, molhou suas rígidas feições e banhou o cabelo de presilhas altas e a barba longa. O montanhês de vestimentas selvagens podia acabar com Bartolomeu, mas este deixou bem claro que não tinha medo do homem. Bom, tinha. Prezava por sua vida, mas era por sua irmã.
— Esqueça minha oferta, Celine estará melhor morta que nas suas mãos.
Bravo fechou o semblante, levantou-se disposto a surrar Bartolomeu, mas foi contido pelo olhar cuidadoso de Ira que, por não estar bêbado, se vinha o mais racional possível. Quando o rapazote se pôs vacilante para trás, Ira veio a se levantar rapidamente, antes das mãos do irmão alcançar o colarinho de Bartolomeu.
— Não interfira! — rosnou Bravo.
— Está tão bêbado que nem acertou o rumo do pescoço do garoto. — Ira sorriu — Encoste o maldito traseiro na cadeira, eu estou interessado no assunto. Cuide do seu orgulho pela manhã com sua ressaca.
— Eu prefiro ir embora. — interrompeu Bartolomeu, com certa indignação.
— Então eu acredito que não era necessário caminhar as trilhas a esta hora. Tem certeza de que isso não tem importância para você? — Bartolomeu se viu pensativo aos argumentos de Ira — Ora, vamos. Se é um homem, então sabes como ficamos quando bebemos, isto não devia lhe ofender. E nem espere um pedido de desculpas. Você é o moribundo noturno que está a oferecer a sua irmã.
— Mas que diabos, me solte! — rosnou Bravo ao notar a mão do irmão o forçando a manter-se sentado.
Bartolomeu se sentou, olhou para Bravo e viu seu olhar pesado, como quem ainda lhe jurava uma surra, mas Ira tinha razão. Subiu as trilhas porque viu importância no que estava fazendo, não ia adiantar ir embora agora. Não sem antes realmente tentar.
— Cale sua boca pra falar de minha irmã, lenhador. Não tem nada mais inocente nesta vida do que ela. — Bravo sabia, mas ao notar o desespero do garoto, julgou ser um blefe. Acabara de se afundar numa vagabunda miúda aos comandos dos desejos que sentiu pela muda, mas guardaria para si os anseios que acometeu o corpo. O fato do rapaz estar ali ofertando a mulherzinha, só lhe atiçava suas vontades, como se nada fizera naquela maldita taverna. — Sabatini comentou que estavas a negociar umas moedas a mais para que ela viesse trabalhar.
— Aquela velha desgraçada distribui os empregados de sua senhoria na maior cara fria. Uma hora há de levar uma surra na bunda de seu próprio patrão. — resmungou irritado, voltando a beber. — E a menos que tua irmã esteja de pé, não pagarei um vintém para nenhum encostado. Já me basta os fedelhos habitantes desta casa.
— Porque ao invés de alguém para pagar, não comungue em casa uma esposa? Confesso que pensar em ti como um homem para minha irmã, já está me dando ânsia, mas preciso achar um lugar para Celine, antes que se torne inútil até para casar. — Confessou, baixando os olhos, olhando o líquido quente e sentindo remorso de ter algo para aquecer a garganta, enquanto a irmã estava passando frio no paiol de seu quintal. — Ao nos deixar aos cuidados da velha Clemence, no pôr do sol, Celine tomou uma surra de meu pai. Está com os filetes das costas envergado de sangue porque a viram com o montanhês. Jurei a meu pai que o lenhador nada fez, no entanto tive de apanhar também. Eu não me importo com as surras, mas Celine não há de aguentar essa vida. Precisa de uma casa, qualquer lugar para chamar de seu.
— Diga-me, fedelho. Quanto de merda tens na cabeça? — atiçou o bêbado, sem papas na língua — Caminhou pelo estrado noturno em busca de alguém que tivesse pena da muda? — Bartolomeu sentiu o peso daquelas palavras, pois sim. Não era bom casamenteiro e não estava disposto a ofertar a virgindade da irmã como um troféu, restando para si apelar para o sentimento de compaixão. — Confundiu minha casa com a igreja. Não é novidade que pais castigam seus filhos. O que achas que vou fazer? Descer a surra em teu velho por uma bunda silenciosa? Estou bêbado, apenas. A bebida não tornou-me um mentecapto.
— Não entendo. Porque não debuta a menina? — questionou Ira, dando certa razão ao irmão.
— Ora, pois. Ela é muda! — contou o óbvio — Meu pai não investiu em gastos para comprar laços e vestidos, nem lhe arranjou padrinhos. Celine vive presa ao trabalho ou trancafiada em casa, porque é defeituosa demais para uma exibição. Tenho a leve impressão de que o defeito possa ser por se tratar de uma bastarda. O escárnio de meu pai a matará a qualquer dia.
— Mas que porra de história triste! Vejamos homem, esta é sua tática para me arranjar uma esposa? Atormentar meu pobre coração sensível? — Bravo riu e Ira também — Você tem demência, garoto? Se me casar com sua irmã vou me enfiar tanto nela que ela não vai passar um ano sem barriga! Pare de achar que vais casar a coitada pescando piedade!
— E achas que não sei? — respondeu desgostoso — Mas não estou aqui para ouvir suas perversões ou ofensas. Sou homem e mesmo sendo irmão de Celine sei o quanto ela é bonita, no entanto, no meio desse monte de homens fodidos nesta maldita vila, Celine e só se atracou à você.
Bravo estava bêbado e se lembrou das garras da moça em sua camisa, e sob o olhar curioso de Ira, calou-se. Aquilo o pegou de surpresa. Não imaginava que a muda havia demonstrado interesse no homem, e pior, a notícia o acometeu imediatamente. Sem nenhum pudor, lambeu os braços e sorriu malicioso para o rapazote, deixando claro que gostou do que ouviu.
— Andou de sem vergonhice com a muda, irmão? — riu Ira, batendo nos ombros de Bravo — Ora, agora temos uma explicação!
— Ele não foi um sem vergonha. Bravo evitou matá-la num duro deslize de distração. — justificou Bartolomeu — Aos olhos dela é um cavalheiro. Um bem estupido, mas é. — Bravo riu, Ira também.
Bartolomeu também notou o que acabou de falar e, no fim, acabou por rir também. Quando se deu conta, já tinha feito a loucura. Estava a ofender Bravo, para terminar dizendo que o estúpido lenhador é um cavalheiro. Acabou até se sentindo mais leve, uma vez que carregava o fardo de sua irmã sozinho.
— Vejamos, moleque. — Respondeu Bravo, muito longe de parecer que estava bêbado, ou fora apenas um rompante enganoso do olhar de Bartolomeu. — Arrume as tralhas de sua irmã. Lhe busco, caso e resolvo seu problema. Ira tem me importunado um bocado sobre arranjar uma esposa, mas que fique bem claro que está tocando sua irmã de um inferno para o outro. Eu não dou flores para as choronas. Na primeira, lhe ajeito a vida do mesmo modo que ajeitei a todos nessa casa.
Era ameaçador. O tom era perigoso, mas ele aceitou.
— Em tua vida não meto a mão. Celine terá de viver além das grades dos próprios olhos, uma hora ou outra. — concluiu o rapazote — Obrigado, lenhador.
— Pois bem. — bateu Ira no ombro de Bravo, levantou ao ver o barbudo ainda dispostos a beber um pouco mais, e foi gentil com Bartolomeu —, lhe arranjarei um canto para dormir.
— Espere, tem mais uma coisa. — acrescentou Bartolomeu, tomando a atenção dos dois. — Celina não provém de um dote, mas eu faço bons bicos. Posso lhes arranjar boas galinhas e um porco gordo, para o casamento, se aceitar. — Bartolomeu esperou outra salva de risadas, mas recebeu um olhar compadecido de Ira, enquanto Bravo se levantava, dava um passo torto e sentou a mão de um jeito pesado no ombro do menino, aproximou o rosto perto do rapaz e com o hálito forte, soprou em sua face.
— É um bom homem, rapaz. Só não foda a minha vida enquanto for o meu cunhado, ou lhe enterro numa vala só para parar de me encher o saco. — E o rapaz, não soube como reagir.
— Aceitamos as galinhas. — concluiu Ira ao ver Bravo torto, gritando um idioma que Bartolomeu não entendia, cantando alguma coisa estranha que ele não tinha conhecimento. — Nós somos descendentes dos picos gelados, o que ele canta são canções gaélicas. Vamos, meu jovem. Vamos dormir, pois se bem percebi, será o único padrinho de sua irmã. E a propósito, Bravo está bêbado, não retardado. Eu tenho certeza que ele o acompanhará até sua casa pela manhã. Descanse, acabou de desgraçar a vida de sua irmã. Descanse, vais precisar.
Bartolomeu engoliu com dificuldade e caminhou para dentro da casa acompanhando os passos de Ira, só então notou um par de rostos curiosos agregado à grade da escada, o olhando com uma certa expectativa. Eram crianças e eram muito parecidos com Bravo. Seriam estes os bastardos que as más línguas ditavam? Teria ele empurrado Celine para um inferno tão parecido com o de sua casa?
Por educação, ele se limitou a não perguntar. Apenas rezou que, para melhor, conseguisse mudar a vida de sua irmã.