CAPÍTULO 05
Estava frio.
Estava úmido.
Ver algo a poucos metros era praticamente impossível em meio aquela neblina densa.
Mas seguiu caminho, silenciosamente como a floresta. Nem mesmo pássaros piavam e o único som era os estrondos do mar ou o chuvisco causado pelo excesso de umidade na copa das árvores.
O chão era composto por raízes, terra, pedra, folhas secas, grama e musgo. Era recheado de arbustos e pequenas plantas, denso e verde.
Mas ninguém o notava. O som de suas passadas era encoberto por evitar os gravetos e as folhas, lentamente colocando seu peso sobre tudo que é macio e emplumado. Naquela manhã, ele era invisível. Seu cheiro era camuflado e sua pelagem se mesclava perfeitamente com o ambiente.
Então seguiu agachando-se entre alguns arbustos, roçando o tronco e saltando até a raiz da árvore. O musgo diminuiu consideravelmente o som do impacto e a neblina rapidamente escondeu o movimento.
As garras fixaram além da vegetação para encontrar a solidez da madeira e então seguiu escalando o pé da árvore até encontrar o tronco gordo, longo e morto que rangeu com a pressão de seu peso.
O barulho mal foi ouvido pelo ambiente, mas era alto o suficiente para incomodá-lo. Ele ergueu a mão e desceu o focinho para cheirar o local. Podre e fraco! Era possível ouvir os cupins se alimentando.
Ele moveu sua cabeça e checou o outro lado. Lá pousou vagarosamente sua mão e conforme as garras se ajustavam, a criatura se atentava ao barulho. O ranger era tão leve que mal era ouvido por ele.
Ele seguiu o caminho, lentamente por cima das trilhas pequenas do rio. O som da água se chocando contra as pedras e seguindo o curso ocultava o dele e, logo, encontrou o chão, se mesclando em meio à grama, arbustos e altas raízes.
O grande tamanho facilmente se tornou camuflado.
Era neblina e vegetação para escondê-lo. Ninguém via suas garras, ninguém reparava no brilho de suas presas e o máximo que poderiam é reparar no tamanho de seu corpo.
Mas as árvores eram quentes e as flores de primavera evaporaram seu perfume em meio a neblina fria. Alucinações eram comuns, bastava apenas estar inibido por sono o suficiente ou consumido por imaginação — seja medo ou alegria — para ver… e não ter certeza de que era real.
Que criatura humanoide era aquela em meio a névoa? Tão escuro que se destacava no branco… observando-os!
Não era nada.
Árvores, arbustos, alucinação… a floresta continuava em completo silêncio.
E a criatura na floresta seguiu seu caminho, abaixada e sorrateira, contudo autoritária conforme o tempo passava e o sol dava indícios de espantar a neblina. Mas as árvores ainda continuavam respirando, molhando o chão com sua chuva, fartando-se e dando chances para camadas e camadas de grama, musgo e até grama brigassem em seu vasto tronco.
E tudo continuava silencioso.
O som do mar permaneceu mais forte, pequenas ondas se formando e se desmanchando. O cheiro salgado… o cheiro podre mais perto, mais perto.
Por debaixo das plantas, arrastando-se na lama, saltando de raiz em raiz, evitando ao máximo as folhas, galhos e tudo que perturbava o silêncio absoluto exigido, ele se aproximava. De pouquinho em pouquinho, reconhecendo a área, sua localização e decidindo seu curso.
E então… parou.
Sua mão recuou centímetros antes de pisar na próxima raiz e ele encolheu seu corpo em meio a vegetação. Os olhos fixos, o corpo confortável e em alerta.
As orelhas se abaixando… e então a imobilidade.
Mesclado a vegetação, como parte da raiz e da grama com quase nada além do da própria temperatura térmica lhe entrando. Movimentos tão mínimos que ele quase não a notou o longo corpo escamoso da serpente buscando calor.
Grande, muito grande! Uma formação quase anormal em meio a raiz, negra, marrom e verde em sua camuflagem perfeita.
Esperando o tempo aquecer.
Esperando a vítima.
Esperando que aquela besta não a note.
Mas lá estava ele… a cabeça para fora do arbustos, paralisado com olhos dourados brilhando em direção a ela. Quente… com garras firmes na raiz, com dentes à mostra.
E o poderoso corpo escondido pela própria floresta.
Ela o encarou.
Ele a encarou.
Ela disparou pela vegetação.
Impulsionou seu corpo para um bote certeiro no tronco da árvore, vários e vários metros para o alto e circulou a parte mais fina de seu tronco como se fosse uma presa. E na mesma agilidade fugiu para o alto, até onde a madeira de divide e tomou seu curso para a copa verde escura e sumiu.
Chuva caiu sobre o pelo da criatura.
Então ela deixou o chão… erguendo-se e se apoiando em suas patas traseiras. Firmando-se em suas pernas, aquecendo a musculatura de seus ombros. O pelo castanho escuro laminado pela neblina, a cauda felpuda de lobo se movendo, as mãos praticamente humanas com garras afiadas e um bíceps contendo anos de força acumulada.
A cabeça se ergueu para o topo da árvore… as orelhas pontudas levantadas e os olhos brilhando para ver além da neblina, além da chuva, além do frio.
E então ele saltou, alto e poderoso, usando suas garras para manter quilos e quilos de massa muscular presa na madeira, no musgo e evitar barulho. Longos braços humanoides o ergueu e um corpo flexível o fez escalar sem a mínima dificuldade.
Alguém já acostumado com tal exercício.
Tão a vontade no que fazia que parecia estar com preguiça, se demorando e se esticando, se despertando e aquecendo o corpo em direção aos galhos. E quando chegou onde queria, saltou para uma árvore mais alta, para onde a serpente subiu.
Ela apenas viu a besta surgindo na neblina, agarrando o tronco a meros centímetros dela antes de impulsionar suas escamas para escalar mais alto, mais veloz. Ele a seguiu, tão ágil e veloz quanto, passando pelas formações, pelas folhas, pelos galhos com tanta facilidade que a única salvação da cobra foi saltar para outra árvore.
E assim fez… jogando seu corpo comprido rebolante para longe, para baixo, para se chocar de mal jeito na dureza da madeira e sair dolorida.
A besta ficou, no topo da floresta, alto como sua posição na cadeia alimentar. Imponente e perigoso, veloz, forte e resistente ao saltar sobre outra árvore mais alta e agarrar-se aos galhos, passar por suas depressões e se erguer mais e mais para cima.
Somente então permitiu-se relaxar em meio aos troncos uma camada abaixo do limite máximo daquela estrutura e encarar o horizonte em meio ao fim da névoa. O sol vai ficando mais e mais forte e pouco a pouco, a paz naquela península vai se esvaindo.
Gritos.
Para que falar gritando? É bem mais fácil falar falando…
Mas lá estava o grave som de voz masculina, berrando, gritando "adem", "acordem", "imprestáveis", "ordinários" e "preto" seja lá o que significa. E então… o chicote. O estalar, o som de metal, gemidos de dor e murmúrios.
A névoa se dissipando e revelando seus visitantes escandalosos. A primeira coisa que foi notado, além do fedor, era a hierarquia colocando aquele macho pálido com a carne rosinha pelo sol acima daqueles magricelos negros e submissos.
E as ordens vinham, levando os negros para dentro da mata e, não muito tempo depois, os estrondos de machado, cerra, árvores e chicotadas. Estavam tentando extrair madeira, mas ela era bruta, rígida e resistente. Não cedia fácil.
A qualidade era notável e essencial para a armação de uma base na ponta do precipício erguido com lona, velas e móveis de suas próprias embarcações. Lá eram empilhadas as madeiras que conseguiam, formando pirâmides bem organizadas trazidas pelos escravos.
Não muito distante, estava as fibras naturais untadas e amarradas em perfeitas tranças na confecção de cordas por alguns idosos. Ao lado, as mulheres, todas negras, se utilizando do resto de fibra e palha para fazer cestos que usavam para adentrar a mata e de lá extrair qualquer fruta ou verdura que consideram comestível.
Parte dos cestos também eram entregues a homens que desciam a grande árvore até o litoral e batiam a marreta nos minérios da rocha em busca de suas riquezas.
Por fim, a cada três dias a base parecia maior e um carregamento de suprimentos era levado até a embarcação igualmente barulhenta, não dando um único dia de paz às criaturas daquela península. E nenhum humano jamais notou a presença deles… na copa das árvores ou camuflado na vegetação.
Como dormir com intrusos tão barulhentos?
Então a noite caiu e sob o manto da escuridão, a calma, a paz e o silêncio parecia dominar pouco a pouco o território.
Os homens branco na fogueira não pareciam resistir ao sono e, quando ele começava a surgir e deixá-los molenga, a besta se esgueirou para longe da mata… ou para onde deveria haver vegetação.
As pegadas dos humanos eram muitas, as marcas de calçados e pés vinham e iam rodeando as árvores e as raízes. E então… os musgos arrancados do troncos e marcas de cortes profundos na madeira. Galhos e plantas mais frágeis caídas ao chão.
Quanto mais perto do acampamento — da base improvisada —, menos lugares para se esconder havia.
Mas isso não o impediu de arrastar como quadrúpede, seu corpo pelas pilhas de madeira evitando as luzes da fogueira. Ele era sombra e vento, era um lobo em meio às ovelhas analisando o que faziam com seu território, com as árvores que um dia já escalou, com o chão onde já dormiu…
A noite naquele lugar não era escura. As auroras boreais surgiram à meia noite para complementar o céu estrelado e as árvores biominumicentes. Suas ceivas brilhavam dentro de lamparinas, as veias folhas exaltavam sua luz, tais como os musgos verdes.
Era belo, o brilho, as flores noturnas se abrindo em vermelho, dourado e roxo despejando pólen pelo ambiente. Os insetos fazendo seu trabalho com asinhas que brilhavam a cada batida.
Mas ali… naquela ponta da península, quanto mais próximo do penhascos, dos humanos e sua coleta, mais escuro a terra e as árvores ficavam depois de serem cortadas e feridas por seus machados e serras. Então elas choravam substância dourada, uma seiva fétida que era colhida e armazenada.
Algumas folhas sequer reproduziram seu brilho e as flores se recusavam a desabrochar, temerosas.
Então a criatura avançou por elas, encoberto pela escuridão que algumas plantas lhe forneciam e se esgueirou até onde a terra deixava de cobrir e restasse apenas a rocha negra do precipício a diante. Com nada para cobrir seu corpo peludo, meio homem-meio lobo, ele se esgueirou contra o vento, contra a luz, contra o campo livre e encheu seu focinho com os múltiplos odores de fezes, urina, suor, esperma, sebo, carniça e uma variedade enjoativa de fedor em meio ao salgado do mar, madeira, cera, palha e frutas.
Ele sentiu cheiro de macho e de fêmeas contaminando a madeira. Ele ouvia suas vozes abafando o horror da natureza.
A besta esboçou uma careta, arreganhou os dentes e mudou a direção silenciosamente guiado pelos instintos… contando o quanto foi roubado de seu território, observando as estruturas e, acima de tudo, observando os humanos.
Ele não tinha nada a temer, pois possuía presas e garras em meio ao arsenal que o faz ser uma das criaturas mais mortais daquele lugar. É rápido, com sentidos aguçados e forte além, claro, de não estar sozinho.
Foi apenas questão de alguns minutos para um semelhante a ele se aproximasse, curioso e precavido tirando a própria conclusão da situação. Então outro, maior e mais escuro em uma tonalidade de se tornar negro.
Juntos vasculharam e mediram os danos, tão a vontade na escuridão que humano algum os notou nem sequer quando mexeram nas cordas confeccionadas e testaram a qualidade. Um ou outro grunhido de interação quando analisaram a forma com que as fêmeas criaram os cestos e foram invasivos o suficiente para chegar até elas.
Estavam todas espalhadas com nada além de algumas remessas de cobertor e folhas para aconchegá-las em meio às correntes. Estavam tão cansadas que mal viram aquelas criaturas passaram pelo lado, mal sentiram as bestas passarem por cima de seus corpos, sorrateiros o suficiente para mal relar ou acordar sequer as crianças agarradas às mães.
Todas negras.
Todas fedendo a suor.
Todas exaustas e acorrentadas.
E nenhuma acordou conforme narizes gelados de lobo se afundava entre suas pernas, entre seus pescoços… línguas sensíveis buscando o odor adequado, procurando e vasculhando.
Até que houve um movimento brusco.
Cabeças de lobos se levantaram naquela direção, quase na ponta do precipício, naquela mulher se encolhendo com nada além das próprias roupas para se aquecer. E para lá eles foram, silenciosos e cuidadosos com um sono que parecia leve.
E então… o odor dela os atingiu como uma lufada deliciosa bem saboreada por todos os sentidos. Os pelos se eriçaram e as criaturas se levantaram, bípedes, imponentes e excitadas.
Um já lábia o focinho quando chegou perto e saboreou o cheiro dos cabelos oleosos, cacheados e firmemente contidos no alto da cabeça. Outro chegou pela perna, subindo pela coxa e usando garras para subir levemente a blusa a fim de desvendar mais daquela barriga, da costela e dos seios.
Dandara mal sentiu o focinho se enterrando entre suas nádegas, buscando mais daquele odor, do cheiro natural ofuscado pelo fedor.
Ela acordou.
Mas não abriu os olhos.
Pensava ela ser algum dos homens passando a mão nela, puxando sua blusa para baixo insistentemente curioso para ver seus seios.
Talvez vários… alguns medindo o volume de sua bunda, de sua coxa e… então, um grunhido.
Ela tencionou o corpo. Seu coração saltou e a mulher abriu os olhos e encarou ao redor. Mas não havia nada além de mulheres e crianças dormindo, correntes e uma floresta iluminada ao fundo.
Ela se remexeu, se encolheu e deu as costas para elas decidida a ter o mais pesado dos sonhos.