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O Garoto Sem Nome

O final de semana chegou mais rápido do que eu esperava e com ela os dias longos de Sol, Rosa ficava em casa a maior parte do tempo, me ensinando o máximo de coisas que haviam mudado e alguns truques que não existiam em 1944. Mas as vezes ela saía e demorava horas.

E foi enquanto ela estava fora que ele apareceu.

Eu tinha passado a manhã toda no lago, minha pele estava quente e vermelha e eu parecia fraca até que resolvi entrar para tomar alguma coisa gelada.

Limpei os pés no tapete da cozinha e assim que levantei meus olhos lá estava ele, com a cabeça enfiada na geladeira.

No início pensei ser um ladrão mas quando se virou eu tive dúvidas, que tipo de bandido entra na casa de alguém para comer torta direto da forma e sem nem ter a decência de pegar um garfo?

O garoto olhou para mim com a mesma surpresa, os dedos na boca e os olhos arregalados.

- Quem é você? - ele disse de boca cheia.

- Eu... eu que deveria perguntar - eu andei lentamente até a mesa onde apanhei uma faca.

- Não precisa disso, olha só - ele abriu os braços - pareço perigoso?

Com esse sorriso ele oferecia muito mais risco que uma bomba caseira.

Ele abriu a segunda gaveta à esquerda da pia e pegou um abridor de latas, relaxei um pouco ao perceber que ele conhecia bem a casa. Mas outra dúvida surgiu, se ele estava habituado com o lugar porque não estava incomodado de encontrar alguém que não conhecia?

- Quem é você?

- Perguntei primeiro.

- Não vou lhe dizer meu nome a menos que diga o seu.

- Onde está minha madrinha? - ele se sentou na pia com uma garrafa de refrigerante para engolir a torta que continuava devorando, manchando os dedos e os lábios de vermelho.

- Quem é sua madrinha?

- Rosa - ele piscou para mim e assentiu - você é bem esperta.

- Ela é minha tia.

- Hum, isso explica porque estou achando seu rosto conhecido.

Estava blefando, eu não parecia em nada com a diretora Rosa e por mais que isso soasse ofensivo eu não queria parecer.

Ele continuou ali, comendo e bebendo como se minha presença não fizesse diferença alguma. Eu queria falar com ele porque me intrigava e atraia, notei um maço de cigarros saindo do bolso da calça e tive minha chance.

- Rosa disse que cigarros causam câncer desde de 1946 - imediatamente percebi meu erro e para meu azar ele também, vi o riso se forma no seu rosto e rapidamente consertei - quer dizer, descobriram que causa câncer em 1946.

Achei que ele ia rir ou não levar a conversa adiante mas parecia tão entediado quanto eu.

- Gosta de datas?

- São importantes.

- São um saco que nem esse lugar - ele escorregou para fora da pia deixando o lixo no lugar - o que você tem feito aqui?

- Eu leio e tomo sol.

Seus olhos passaram pelo meu corpo de um jeito que me deixou desconfortável e por ímpeto cruzei os braços na frente do corpo. Esses biquínis deixavam muito a mostra e por mais que eu tenha colocado um shorts na parte de baixo ainda ficava com partes demais expostas.

- Tem uma coisa que eu fazia quando era criança, quer tentar?

- Claro.

- O primeiro passo é escolher a pedra perfeita - ele caminhava para fora enquanto falava, os olhos buscando algo no chão - elas precisam ser lisas em um dos lados.

- Eu sei jogar pedras no lago.

- Vai esnobar? Olha, aprenda uma coisa. Você nunca se divertiu de verdade com algo até fazer comigo.

- Então me mostre como você faz.

Ele ficou na minha frente, concentrado enquanto escolhia o melhor lugar, ele tinha olhos de um castanho claro que ficou esverdeado no sol e o cabelo ondulado em torno do rosto bonito, mechas escuras demais para parecer natural, por fim parou no gramado entre a varanda e o píer, rodou os ombros como se preparasse para uma luta e jogou a pedra com velocidade, ela quicou duas vezes e afundou.

- Certo, deixe-me tentar.

- Uma aposta?

- Não vou apostar com você - disse pegando uma pedra qualquer.

- Com medo?

- Nem um pouco, só não estou interessada.

- Vai mesmo perder a chance de me beijar.

- Era isso que você queria? Não ia acontecer, eu tenho namorado.

- Como se fizesse diferença.

- Para mim faz, eu não traio - dei as costas e fixei os olhos no lago.

- Então, onde você estuda?

Ele queria me desconcentrar, era um truque sujo e não ia funcionar, mas me divertia. Segurei a pedra entre os dedos e joguei, quicou uma vez e afundou. Não me deixei abalar, virei o rosto para o garoto e antes que ele contasse vantagem, respondi.

- Vou para o internato cristão esse ano.

Ele fechou o rosto repentinamente, a raiva queimando em seus olhos enquanto me encarava, mais uma vez cruzei os braços na frente do corpo.

- A brincadeira acabou - disse de forma bruta antes de se afastar.

- O que foi? Tem medo que seus amigos saibam que joga pedrinhas no lago? - perguntei, seguindo-o até a varanda.

- Fica longe de mim - ele se virou, a fúria era tanta que podia sentir o calor que ela criava saindo de seus poros, não recuei.

Como Cristian dizia, se você recua eles sabem que está com medo e isso é mais perigoso que qualquer coisa que possam fazer com você.

- Devia ir embora, agora.

Ele se aproximou devagar, dois passos até estar a centímetros do meu rosto, meus pelos se arrepiaram através dos meus braços, por mais que eu buscasse em seus olhos não via nem sinal de blefe.

- Eu poderia te quebrar, moer seus ossos com minhas próprias mãos como um roedor.

- Não duvido disso, os ratos são frágeis, mas rápidos e duvido que consiga me pegar.

Suas veias estavam saltadas nas têmporas, essa discussão evoluiu rapidamente, procurei no seu rosto qualquer sinal de ação mas ele era muito bom em esconder.

- Benjamin? - era a voz de Rosa.

- Agora você tem um nome.

Rosa largou as sacolas no chão e correu pelo caminho de cascalho até a varanda com muita urgência.

- O que está fazendo aqui? Tem que ir embora.

- Boa tarde pra você também, madrinha - ele riu mas não parecia desafiar.

- Diretora, ele apenas entrou.

- Vai embora, não devia estar aqui - ela o segurou pelo braço o levando para fora da varanda.

- Diretora? - ele tentou se virar, mas ela o empurrava pelas costas aos gritos - chama sua tia de diretora?

- Eu posso apagar ele, será um prazer - disse pegando a faca mais uma vez.

- Isabela, entra agora.

- Isabela? - Benjamin se virou de uma vez e fixou os olhos em mim - agora sei de onde te conheço.

- Benji, por favor - Rosa implorou, as mãos apoiadas no peito dele forçando o corpo do garoto para longe.

- Eu sou um Bianchi.

Suas palavras entraram na minha cabeça anestesiando meu cérebro. Benjamin sorriu e deu as costas, satisfeito com o estrago que tinha feito, me obriguei a entrar na casa, mal sentindo o chão sob meus pés.

Rosa entrou em seguida, esbaforida, chamando meu nome diversas vezes e engasgando com as palavras.

- Quando ia me dizer?

- Não era hora, sei que fazem mais de meio século, mas não estávamos preparados para o Benji, ele nem devia mais estar na escola, se não tivesse reprovado em várias matérias.

- Então o plano era que eu nunca soubesse que Cristian seguiu a vida sem mim? - senti meus olhos lacrimejarem, odiava ficar emotiva.

- Entenda, Isabela. Foram…

- Cinquenta e seis anos, eu sei.

Fui incapaz de continuar aquela conversa, subi batendo os pés e fechei a porta com força fazendo o vidro da janela tilintar. Me lembrei do que Benjamin disse sobre me quebrar em pedacinhos, ele devia se orgulhar porque nem precisou usar as mãos pra isso.

Encostei na porta me esforçando para respirar, as paredes se fechavam me sufocando a cada segundo menos ar entrava no meu pulmão.

Quando me sentia assim, Cristian pedia para eu me concentrar em coisas reais, coisas que estavam ali. A madeira fria nas minhas costas, a cama desarrumada, a luz do pôr do sol iluminando o quarto em tom laranja, a escrivaninha onde ainda estava o bilhete dele. Mas o bilhete não era real nem tão pouco verdade.

Corri até ele e peguei a caneta na gaveta, escrevendo logo embaixo de 'amo você'.

"Você me abandonou."

Escrever tornou-se palpável, Cristian não estava ali, não viria ou mandaria cartas para se desculpar pelo atraso. Encarei a folha de papel com ódio me preparando para rasgá-la até que não sobrasse nada quando algo aconteceu, embaixo da minha grafia um nome surgiu.

"Isabela?"

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