A Caixa Antiga
Pov Benjamin
Voltar para casa foi muito mais torturante do que aparentava para as pessoas que me viam caminhar pelo caminho, certamente me julgando como um andarilho sem teto, não era para menos, eu estava suado, sujo e desgrenhado Por mais que meus pés doessem e deslizassem no sapato ensanguentado eu continuava piscando para as garotas e dando encaradas em senhoras que se chocavam comigo, deviam achar que eu estava drogada também. E, Deus, eu queria estar.
De certo também achavam que não servia para suas filhas, e não servia mesmo. Estava suado depois de andar por horas, o cabelo oleoso grudado na testa, a roupa suja e um cigarro na boca, impregnando tudo com o cheiro venenoso de fumaça que eu mandava para meus próprios pulmões.
Parei em frente a casa erguendo os olhos pela fachada exagerada, altas paredes no sobrado antigo de dois andares, tudo pintado de preto, com um gramado na frente que circulava um caminho circular de cascalho com uma fonte no meio, feita para parecer uma prisão, perigosa e inabalável como o dono. Meu pai.
Passei pela porta em silêncio absoluto, mesmo sabendo que era inútil, ele já estava me esperando, o longo corredor da casa escura passava pela única iluminação presente. A lareira na sala de estar. Não tive escolha se não me aproximar, a apreensão crescendo em meu peito a cada passo que dava naquele quase lar.
-Benjamin?
Recuei alguns passos parando com o ombro na entrada da sala, apoiando meu peso no batente. Estava escuro demais para ver sua fisionomia, o que foi um trunfo para mim.
- Oi, pai.
- Aonde estava? - sua voz cavernosa reverberou em meus ossos.
- Com um amigo - engoli em seco, torcendo para que ele não notasse meu nervosismo
- O Thomas?
- Não, alguns caras do meu ano.
- Formados, então - ele virou a página do livro o que me fez perceber que não olhava para mim, nada diferente de como sempre foi.
- Sim, senhor - me limitei a dizer.
- Benji? Boa noite - essa era Divina, a governanta doméstica, a única que meu pai manteve depois que minha mãe foi embora, a unica companhia que eu tinha naquela fortaleza sufocante - vou preparar um lanche.
- Não - meu pai respondeu no meu lugar - ele sabe a que horas o jantar é servido. Se atrasou por opção.
Como se eu não tivesse comido uma torta inteira, pensei. Claro que já havia passado cinco ou seis horas e meu estômago estava pedindo por mais, mas eu não ousaria adimitir.
- Precisa de mais alguma coisa? - perguntei, torcendo para a resposta ser não
- Não, apenas se prepare, as aulas começam em alguns dias - claro que tava só preocupado com isso.
Dei as costas sem dizer boa noite, obrigando meus pés cansados e doloridos a subirem a longa escada até o andar de cima, tranquei a porta à chave já que trincos eram proibidos em casa e meu pai tinha todas as cópias de todas as chaves.
Esse era o único cômodo em que meu pai não entrava, espaço e com móveis de luxo, mas tudo revirado. Os lençóis finos embolados sobre a cama me atraiam mas escolhi ir pro banho primeiro.
Tirei a camisa de frente pro espelho, um botão por vez revelando a pele embaixo, havia marcas no meu corpo, arranhões de garotas e outras, mais violentas das brigas que eu provocava. Apertei algumas só para ter certeza que ainda doíam. E doiam.
A banheira já estava cheia e morna, cuidado da Divina, senti meus pés arderem mais uma vez, nas bolhas que haviam estourado, pegar o ônibus nunca era uma opção, meu pai controlava cada centavo no meu bolso. Meu pai não admitia que eu saísse da linha, ainda mais depois do que houve no último ano seguido da minha reprovação, mesmo aos dezoito anos, ainda mantinha o rastreador para uso pessoal em uma pulseira que me obrigava a usar, tirei cuidadosamente o objeto e o coloquei na borda.
Deixei meu corpo escorregar para dentro da banheira lentamente, o cabelo se agitou na frente dos olhos quase bloqueando a visão do teto, não que houvesse algo para ver além das manchas de umidade na pintura, eu tentava achar rostos nelas quando mais novo, uma tentativa idiota de não me sentir sozinho, mas parei com essa besteira há muito tempo.
Agora a brincadeira era outra. Quanto tempo eu aguento até meus pulmões estourarem? Às vezes acho que cheguei bem perto, como nesse dia, eles queimavam tanto que era possível desmaiar e mesmo assim eu não levantei, estava em queda livre em um abismo fascinante do qual não queria jamais sair.
Eu queria encher os pulmões, abrir a represa e deixar vazar, só para saber qual era a sensação de tê-los cheios de água. Mas meu corpo ainda tinha algum instinto de preservação ao menos.
Fui despertado pelo barulho agudo do prato deixado na porta e me sentei, ofegante e com os olhos ardendo, assim como os pulmões, peito e garganta.
Mal me sequei e vesti uma roupa qualquer, arrastando os pés descalços pelo quarto, abri a porta e sorri ao ver o prato.
Peito de peru, meu preferido. Dei uma mordida no sanduíche e saí do quarto passando por cima do prato. Se Divina arriscou me deixar comida depois da ordem que recebeu, então meu pai já devia estar dormindo.
Desci as escadas em silêncio cruzando o piso frio até o escritório mais afastado, ouvi batidas acompanhadas de gemidos vindo dos aposentos dos empregados e tive pena da minha cuidadora.
- Idiota - balbuciei.
Eu não entendia isso de Divina, se tinha que se punir por desobedecer meu pai de acordo com a religião de ambos, porque fazia? Eu não ia morrer de fome por dormir sem jantar. Bati na porta e uma fresta pequena se abriu logo depois dos sons pararem, mostrando um olho choroso.
-Eu estou fazendo muito barulho, senhor?
- O senhor é o meu pai. Não, só queria dizer obrigado - sorri com sinceridade e ela assentiu
- Não agradeça, Benji. Espero que esteja no seu gosto.
- Sempre está - enfiei o restante na boca e gemi com o sabor - boa noite.
- Boa noite - ela pareceu mais feliz qo fechar a porta.
Fingi ir de volta para a escada até que ela fechasse a porta totalmente e então tomei o caminho do escritório novamente, a porta estava aberta. Não era necessário trancar já que todos sabiam que esse cômodo era proibido, isso foi o suficiente por muitos anos para mim, mas recentemente não tenho tido muito o que perder. O que ele pode fazer? Me bater? Me matar? Nenhuma opção eu me oponho.
Me sentei na cadeira grande e escura como todo o resto,girando de um lado para o outro, examinando cada umas das paredes repletas de quadros prateleiras e estantes. Tantas quinquilharias que ele acumulou ao longo dos anos e que não servem para nada.
Abri a última gaveta e tirei a caixa antiga, nenhuma cobra entalhada apesar do preto habitual. Eram traços delicados em dourado sobre o couro escuro.
- Essa caixa era sua, Isabela? Aposto que era.
Mordi o polegar até partir a pele e deixei uma gota de sangue sobre a tampa, um clique e ela se abriu. Certamente o todo poderoso Belliarte não esperava que tivesse herdeiros quando encantou essa caixa com seu sangue, muito menos que eu, eu um momento de bebedeira buscasse qualquer coisa para vender e acabasse caindo ao tentar roubar a caixa, quebrando o nariz sobre ela. Meu sangue caiu sobre a tampa e essa se abriu, na ocasião não enxerguei nada de valor, mas as coisas mudaram.
A primeira coisa que peguei foi uma foto, uma garota bonita suficiente para fazer minha calça apertar só em pensar no que havia por baixo daquele casaco, ela sorria e acenava para a lente. Linda demais para ser real, mas era.
Me lembro da primeira vez em que a vi, me perguntei quais cores ela teria, cheiros ou o som da risada dela e agora eu sabia. No verso escrito com a grafia de meu pai "Querida Isa, inverno de 1942."
Deixei a foto e peguei as cartas, promessas de amor eterno, frases como "seus olhos são um oceano onde quero me afogar."
Ninguém quer se afogar, Isa, nem mesmo você. Não de verdade.
De repente essas cartas que me fascinaram no passado, imaginando como seria ter um amor assim, me enjoaram absurdamente e deixei parte do sanduíche na lata de lixo, limpei a boca na manga e apanhei o diário antigo.
Folhas e mais folhas sobre os tediosos anos escolares de um garoto nos anos trinta e depois mais folhas com arte das trevas e magia negra, essa me fascinava e enojada ao mesmo tempo mas antes que vomitasse de novo cheguei a primeira página em branco que por coincidência também era a última do diário, mas dessa vez não estava em branco.
"Você me abandonou."
"Isabela?"
- Que porra é essa?
Aquelas palavras não estavam lá antes, de todas as vezes que li, essa era a primeira em que aparecia. Não demorei a entender.
Ouvi uma tábua ranger no andar de cima e enfiei o diário embaixo da camiseta apressadamente antes de deixar o escritório antes de correr para o andar de cima, deitei na cama com a respiração ofegante e o coração disparado, medo, ansiedade, dúvida, desespero.
Ela estava falando com ele. No passado.