Passado e Presente
Pov Isabela
Era real, ali na folha solta de diário que a segundos me trazia ódio, agora havia ele, meu nome escrito a tinta fresca de tinteiro, até o cheiro era possível sentir. Passei os dedos pelo papel, as marcas da pena que arranharam formando as letras na conhecida e inconfundível grafia de Christian. Mesmo que borrasse o papel, não importava, eu só queria ter certeza.
De alguma forma as propriedades mágicas do diário conseguiam superar o tempo, assim como nosso amor, eu esperava. Nem ao menos me perguntei que tipo de magia era aquela.
Me apressei em responder aquele chamado dele.
"Está falando comigo de que ano?"
"1944, faz algumas semanas desde que voltei sem você, não estou em Santa Cecília. É verão.
Você não foi me buscar, mandou - a Diretora Rosa - outra pessoa e agora me deixaram aqui nessa - casa do lago incrível e confortável que ia amar passar férias com você - cabana no meio do nada."
Decidi que um pouco de exagero e ocultar alguns fatos para deixá-lo um mais preocupado com meu bem estar não o faria mal. A minha esperança era que Cristian aparecesse em minutos na porta da casa e me levasse embora para viver nosso amor como deveria ser, como ele havia prometido. Não aconteceu, ao invés disso outra resposta tola
"Mas você falou comigo?"
"Ninguém me diz onde você está."
"Estou vivo?"
Mesmo que não o visse, senti a apreensão em sua pergunta, seu maior medo era morrer.
"Está, isso tenho certeza. Mas você não veio, eu só tenho você, Cris, Por favor. Precisa vir me encontrar."
"E vou, eu prometi a você. Não posso fazer muito agora, mas assim que eu voltar a Santa Isabel vou resolver isso. Consegue esperar?"
"Consigo, mas se apresse por favor."
"Está falando comigo pelo bilhete que te dei na aula?"
"Estou."
"Então poupe as palavras, você só tem uma folha."
"Está bem, amo você."
"Também te amo."
Eu teria que esperar até a volta às aulas o que era péssimo, mais duas semanas sem notícias ou novidades dele me matariam, com certeza. Dobrei a folha e a coloquei em uma lata de biscoitos acabados sobre a escrivaninha. Não que Rosa não tivesse me dado nada, mas me sentia mal em usar as coisas dela.
Na verdade o quarto era perfeitamente arrumado e munido de coisas femininas, escova de cabelo, pó de arroz e algumas jóias muito parecidas com as que eu tinha na época em que vivia. Talvez até as mesmas, se teve tempo de guardar.
Eu tinha pouca coisa nos anos 40, com a ascensão de Hittler não era inteligente ter muito, afinal, mesmo sendo uma garota simples do interior de São Paulo, você podia acordar um dia e precisar fugir. Por essa razão também não usávamos coisas coloridas, muita maquiagem ou cortes de cabelo excêntricos, caso tivesse que se misturar na multidão.
A guerra no mundo todo também dificultava muito, andar pelas ruas era perigoso, assaltos e simpatizantes do discurso nazista podiam atacar sem aviso prévio, ainda mais pessoas desavisadas.
Coloquei a lata dentro do guarda-roupa bem abaixo das roupas de cama perfumadas e decidi olhar de hora em hora para ver havia uma nova mensagem. Ao longo dos dias nada aconteceu. Não teve nenhuma notícia dele o que me deixou muito contrariada.
Levei a lata com a folha intacta para Santa Isabel quando as aulas voltaram, na parte mais funda da mala, como um segredo proibido. Mas eu não podia esperar em silêncio, eu precisava descobrir mais, precisava do Benji.
Pov Cristian (1944)
Eu precisava entender como isso aconteceu, deixar Isabela? Eu nunca faria isso, ela era a única pessoa que eu confiava, a única que fazia eu me sentir algo mais que uma concha vazia. Deixar ela precisava ser por um motivo irrefutável e para ser sincero não conseguia pensar em nenhum.
A escola ainda mantinha os cartazes de desaparecida com seu rosto estampado próximo ao refeitório e pátio de convívio comum e nos dormitórios mesmo que já tivessem passado quatro meses. As pessoas passavam por mim com cumprimentos rápidos mas mal olhavam no meu rosto, certamente sentiam pena de mim. Como se isso importasse.
-Cristian? - Antônio me parou antes que eu entrasse para o refeitório a fim de tomar café da manhã..
- Sim, professor?
- Pode me acompanhar, por favor? - disse apreensivo.
Eu assenti e o segui até sua sala, na parte mais funda da escola, onde vi Isabela pela última vez.
- Alguma notícia, professor? - mentir não era problema para mim, eu era bem convincente, na verdade ainda mais com pessoas que costumavam confiar em um pobre órfão - no orfanato fico totalmente isolado do mundo e das questões da escola.
- Nada ainda, Cristian. Sinto muito - ele fez uma longa pausa mas percebi que queria dizer algo mais, então abaixei os olhos e esperei pacientemente que continuasse - mas eu preciso perguntar, se lembrou de qualquer coisa que possa ajudar, durante as férias? Algo que ela tenha feito ou dito, talvez se brigou com alguém.
- Desculpe, professor. Eu queria, juro que tentei mas nada me ocorreu, como eu disse, era aniversário dela e eu preparei uma surpresa. Sei que é proibido, sinto muito por isso.
- Na sala dos troféus - ele sabia a história que contei, já tinha ouvido inúmeras vezes.
- Sim, eu havia colocado o nome dela na taça de futebol com um rabisco simples, só queria que ela se sentisse especial. Ela amava futebol mas a escola não deixa meninas jogarem.
Na verdade eu havia vandalizado a taça depois que voltei de 2000, para corroborar minha história de desaparecimento dela.
- Eu entendo, algumas pessoas a viram até tarde na sala comum naquele dia. Algum motivo para ela ter ficado tanto tempo assim no pátio?
- Acho que ela não deve ter recebido meu bilhete.
- Dizendo sobre o local de encontro?
- Sim - eu coloquei o bilhete embaixo da porta do dormitório errado de propósito assim que voltei, tudo planejado em poucos minutos e feito as pressas mas cada coisa em seu lugar..
- Se lembrar de algo, pode por favor me informar? Como coordenadora do ultimo ano, Isabela era responsabilidade mnha e devo respostas aos pais dela.
Mentira, ele estava mais preocupado com o emprego do que com Isabela, afinal, ela era só a segunda melhor na sua aula. E Antônio tinha ambições machistas e sexistas.
- Claro, professor. Isabela é a pessoa que mais me importa no mundo, vou encontrá-la - não menti, eu iria, só não sabia ainda como.
Saí da sala do professor com mais uma preocupação na mente, além de um jeito de preservar minha aparência para não envelhecer, precisava descobrir o que acontece para eu deixar Isa sozinha no futuro e lidar com a desconfiança de Antônio não seria fácil, principalmente se a escola começasse a pressionar..
Eu sabia que devia me concentrar em uma coisa de cada vez, mas de certa forma eu causei isso a Isabela, eu a deixei ficar no futuro ao invés de trazê-la de volta e protegê-la de tudo. Então precisava cuidar de tudo.
Agora ela estava sozinha e vulnerável com pessoas que não a conheciam como eu a conhecia, pensar nela nessa situação me causava náuseas mas de tudo que podia me preocupar, a saudade era o que mais me machucava. Como poderia viver anos sozinho sem ela.
A certeza de que voltaria a Santa Isabel sem encontrar o sorriso dela nos corredores monótonos, sua mão no alto acenando para mim me corroeu durante as férias inteira.
E eu nem tive tempo de tocá-la de todas as formas que eu queria. Naquela noite antes de dormir eu peguei o diário mais uma vez, mesmo sabendo que seria prudente poupar o espaço, eu precisava dela, limitei as palavras em três.
'Confia em mim.'
'De olhos fechados.'
Sua resposta me deu a motivação que eu precisava, se ela estava cega por mim eu a guiaria de volta para meu abraço. Isso eu não tinha dúvidas.