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Capítulo VI

Eu estava de volta aquele quarto que me trazia tantas lembranças ruins. Sentia como se o frio sombrio e cheiro da morte estivessem presos naquele lugar.

Mas assim como meus sentimentos, aquilo era mais uma das coisas que eu não podia dizer em voz alta, ou me renderia um sermão ainda maior do que o que estava recebendo.

— Você tem noção do que fez? De como colocou não só sua vida em risco, mas o nome de toda a família? Porque deixou a cobertura, Cristina?

Meu pai bradava andando de um lado para o outro, desde que eu cheguei foi assim, a histeria em pessoa. Não havia real preocupação com meu estado, ou com o que tinha acontecido, sua única preocupação era se alguém tinha visto a filha perfeita tentando tirar a própria vida e em como uma notícia assim poderia prejudicar os negócios.

— Tudo certo aqui, Senhor. — a enfermeira, que ele havia contratado para cuidar de mim, falou já saindo do quarto.

— Você vai ficar aqui até o fim do verão, vai ser melhor assim. — eu continuava calada, de cabeça baixa, esperando o momento que ele se cansaria e me deixaria respirar em paz novamente. — Filha, está me ouvindo? Cristina, você tem ideia do que fez? — o tom de voz ainda era duro, mas as palavras dele me incentivaram a erguer a cabeça e olhá-lo nos olhos. Quanto tempo ele não me chamava de filha? — Te pedi para esperar aqui, disse que viriam buscá-la, não tinha nada que sair agindo no impulso por ai.

Sua mão direita voou para o meu pescoço, enquanto a outra se alojou em minha nuca, me mantendo presa em um aperto ferrenho.

— Pa...pai — engasguei com as palavras e levei minhas mãos as suas, na tentativa inútil de fazê-lo me soltar.

Punição física nunca tinha sido uma forma de me castigar antes, mas agora que mamãe se foi eu não poderia confiar que as coisas continuariam as mesmas.

— Quer que seu avô venha lidar com suas criancices? Se mantenha nesse apartamento até o fim do verão e limite-se a piscina do hotel, para todos os efeitos você e sua mãe estão de férias. — eu senti a lágrima grossa escorrer por meu rosto e ser parada por sua mão que ainda me privava de respirar. — Quando a expansão acabar poderá voltar para casa e então anunciaremos a morte dela. Até lá não me faça questionar o porquê de Deus ter te deixado viva!

Ele saiu do quarto batendo a porta e eu ainda conseguia ouvir sua voz gritando ordens no corredor.

Minha garganta agora estava livre de seu aperto, mas eu não sentia que conseguia respirar. Engasguei-me com meus soluços, tentando reprimir o choro para que ele não ouvisse.

Minha alma estava sufocada por todas as suas palavras, a frieza com que falou da mulher que era sua esposa se alastrou por minha pele, congelando meu corpo no lugar. Eu sentia como sei a cada segundo que se passava em sua presença, sendo uma Drumont, eu me afogava nas águas geladas da madrugada, de novo e de novo.

Um som estrangulado escapa dos meus lábios e eu me forço a conter meu choro com os punhos, enterrando meu rosto contra os travesseiros, como já tinha feito várias vezes. A última coisa que queria era ele entrando ali.

— Querida? — a voz feminina na porta denunciou que a enfermeira estava ali.

Mas não ousei me mexer, sentia meu corpo sacudir com o choro, mas não podia ceder e aceitar sua ajuda ou as coisas poderiam piorar para nós duas.

— Moça, o senhor Drumont avisou, ninguém entra no quarto até amanhã.

Respirei aliviada com suas palavras, fome, solidão, eram coisas que já estava acostumada desde que me entendo por gente. Fiquei aliviada de saber que ele já tinha ido, do contrário seria ele ali gritando com a pobre moça e não o segurança sendo educado.

Soltei um suspiro longo quando ouvi a porta se fechar de novo e deixei que meu corpo colocasse para fora tudo o que tinha guardado.

Joe podia pensar que tinha me feito um favor, me tirando da água, salvando minha vida. O que ele não sabia era que eu estava buscando por paz, uma paz que só se consegue achar na morte. Era onde iria encontrar minha mãe.

***

Não sei ao certo por quanto tempo dormi, mas acordei me sentindo um caco. Meu corpo doía, minha garganta arranhava e meus olhos estavam inchados.

— Até que enfim acordou.

Foi ai que me dei conta de quem havia me acordado, a enfermeira estava do lado da minha cama segurando uma bandeja de comida.

Me ergui na cama, me sentando e gemi quando meu corpo, em especial as pernas machucadas, reclamaram do esforço.

— Não estou com fome. — murmurei encarando a bandeja com frutas, suco, pão e iogurte.

Nada ali me chamou a atenção, mas pelo olhar da mulher ela não aceitaria uma negativa.

A encarei melhor, era tão alta, que devia ter quase um e noventa de altura, dava para notar alguns fios brancos em sua cabeça e ainda sim ela parecia incrivelmente nova, sua pele negra não carregava nenhuma ruga.

Ela abriu um sorriso largo e perfeitamente branco, que me fez perguntar porque todos nessa ilha adoravam sorrir.

— Bem você precisa comer, dormiu por mais de doze horas. — tagarelou colocando a bandeja na minha frente. — Quero acreditar que foi por algum remédio que te deram no hospital.

Eu gostaria de acreditar também, mas a tristeza era um ótimo sonífero as vezes, mesmo assim eu tinha uma gaveta com remédios caso o sono não viesse.

— Quem liberou sua entrada no quarto? — questionei, não queria que ela arrumasse problemas por ser legal comigo.

Eu ainda olhava com cara feia para a comida, quando optei pelo iogurte, alguma coisa tinha que descer ou ela não me deixaria em paz.

— Meu nome é Alice, o segurança disse que não podia entrar até hoje, já vim ao seu quarto desde que o dia amanheceu esperando te pegar acordada. — como reflexo procurei a janela, mas vi que as cortinas blackout estavam fechadas, impedindo que qualquer luz entrasse. — Já passou das duas horas da tarde. Que tal se formos tomar um ar no terraço?

Apenas comi calada, queria sair dali, ver o sol, sentir o calor aconchegante na pele. Mas o que isso me adiantaria? Eu voltaria para o meu casulo, meu buraco.

Ter um gosto de como é lá fora só era pior, me faria detestar ainda mais aquele lugar, aquela família, e isso era algo que eu não podia me dar ao luxo de fazer ou enlouqueceria quando o verão acabasse e tivesse que voltar para a cidade.

— Amanhã quem sabe. — menti descarada, colocando o potinho de volta na bandeja e empurrando-a para suas mãos.

— Você vai ter que sair desse quarto uma hora.

Era pouco provável que eu realmente saísse, mas eu não ia dizer isso a ela. Apenas lhe dei as costas e me envolvi melhor na coberta, desejando realmente dormir para sempre.

Mas minha vontade não seria atendida, dormi o resto da tarde, mas a noite não consegui dormir. Meu corpo reclamava com dor e eu fui forçada a levantar para procurar um bendito remédio.

Qualquer um que me fizesse apagar ou que ao menos diminuísse aquela dor incomoda. Mas antes que eu conseguisse achar o que procurava, Alice entrou me pegando de surpresa.

— Posso saber o que você está procurando aí?

— Analgésicos, calmantes, sonífero, qualquer coisa que me faça parar de sentir. Quem sabe veneno seja uma boa? — minhas palavras transbordaram deboche e raiva.

— Posso te dar analgésicos se vier comigo, precisa sair desse quarto, abrir as janelas, respirar um ar! — insistiu.

— E pra que, hã? — gritei atirando as coisas de cima da penteadeira no chão. — Para daqui a um mês quando ele quiser posar de bom pai e viúvo coitadinho eu esteja ao seu lado, posando em revistas? Ou quando ele quiser me casar em troca de algum contrato eu seja uma boa moeda de troca? — varri a escrivaninha com o braço derrubando tudo. — Eu só queria ter ido com ela! Só queria um pouco de paz! E aquele cara idiota... ele tinha mesmo, precisava bancar o herói e me tirar da água.

Eu gritava com raiva e quando percebi as lágrimas banhavam minhas bochechas. Olhei para o chão querendo parar de chorar, eu queria ser forte como ela pelo menos uma vez na vida.

Como se minha mãe pudesse me ouvir, de onde estivesse, uma lágrima rolou caindo em cima do nosso porta retrato, fazendo meus olhos se desviarem até ele.

Abaixei-me desajeitadamente, não queria destruir aquilo, era uma das poucas fotos que eu tinha sozinha com ela. Não me importei quando minhas pernas perderam as forças e eu cai sentada no meio do meu próprio caos.

Acariciei o vidro, agora rachado, e abri o porta retrato tirando de lá a foto. Nos estávamos no jardim de casa, os cabelos dela voavam e eu lembro o quanto amava como os cachos castanhos dela brilhavam contra o sol, o sorriso dela como sempre era largo e contagiante.

Ela me abraçava por trás e ao invés de olhar para a câmera que ela segurava, meu rosto estava voltado para o seu e eu a encarava com um sorriso bobo. Eu a admirava em todas as formas, ela era minha rocha, minha esperança, alegria, ela era meu mundo inteiro.

— Criança. — a voz suave soou ao meu lado.

Mas eu continuei alisando a fotografia, passando meus dedos como se pudesse sentir sua pele contra minha mão, na esperança de que aquela lembrança boa a mantivesse viva dentro de mim de alguma maneira.

Minhas lágrimas caíram ainda mais quando Alice me envolveu com seus braços fortes, me derramei ainda mais em seu abraço caloroso e me permiti soluçar enquanto ela me consolava.

Não sei por quanto tempo permanecemos assim, ela não disse nada, apenas me segurou até que meu choro parasse e continuou ali.

— Me desculpe pelo surto. — foi a primeira coisa que disse. — Você não merecia meus gritos e muito menos ver esse show.

Me afastei dela encarando a bagunça que tinha feito, não sei o que estava maior nesse momento, se minha vergonha ou o arrependimento.

Ela não merecia esses sentimentos de raiva que joguei em cima dela, Alice nem ao menos me conhecia, não tinha ideia do que acontecia ali, era só alguém tentando fazer seu trabalho da melhor maneira possível.

— Não tem que se desculpar por nada. — ela me estendeu a mão, me ajudando a levantar e então se sentou ao meu lado na cama. — A pior dor do mundo é aquela que nossa própria família nos causa, quando o lugar onde deveríamos procurar refugio vira lugar de sofrimento. — ela acariciou meus cabelos, como minha mãe fazia e eu suspirei alto, fechando meus olhos com seu carinho. — Você precisa sair daqui e rápido.

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