· · • • • Cena III ◗●◖ Cale • • • · ·
O dedo médio e indicador deslizava pela parte interna da própria mão, era um carinho quase comuneiro desde aquele incidente. Mesmo após o corte se fechar, mesmo após tantos meses se passar - Cale ainda podia sentir aquela cicatriz doer, arder. Era como um lembrete constante do que havia feito.
Bufou.
Nem mesmo mortos eles o deixavam em paz.
— Senhor? Ao menos ouviu o que lhe falei? — Veiner parecia contrariado, mas isso havia parado de ser surpreendente, afinal Veiner sempre parecia contrariado.
— Estava falando sobre o baile — Cale murmurou, os olhos se fechando devagar — não tenho tempo para ir a um baile, e ainda estou de lut-...
— O luto dura apenas 6 meses, meu caro senhor — o mordomo soltou de forma ríspida — não pense que sua majestade irá tolerar certos... comportamentos com base no pesar daqueles que perdeu.
Cale bufou.
Havia usado aqueles malditos como desculpa e havia funcionado, mas nem mesmo agora isso era suficiente. Nem mesmo para isso serviam.
Suspirou.
— Certo... — seus olhos se abriram fitando aquele teto escuro — irei comparecer ao próximo baile dentro de-...
— Irei adiantar os papéis e anunciar que irá a esse baile — Veiner disse a contraponto — sua majestade irá comparecer, logo, devo deixar claro que o novo arquiduque não iria faltar e deixar a rainha sozinha.
A língua de Cale estalou no céu da boca.
— O príncipe herdeiro, onde está?
O mordomo sorriu.
— O baile está sendo organizado por sua alteza, o príncipe herdeiro.
"Claro que está", foi a primeira coisa que pensou. Tudo que aquele príncipe bobo costumava fazer era dar bailes e se envolver em romances furados que causavam vergonha a qualquer ser com bom senso que o conhecesse.
Um suspiro longo escapou pelos lábios de Lestrard.
Claro.
Era por essa e muitas outras que Cale havia praticamente tomado o lugar do príncipe herdeiro no coração da rainha.
— Mande prepararem a carruagem — disse então com aquele tom apático e calmo — se vou ter que comparecer, então me permita fazer o meu melhor. Irei escoltar a sua alteza, a rainha.
O homem de idade, sorriu.
— Creio que a rainha ficará feliz com tal resposta.
"Certamente".
Seus olhos vagaram para a janela ao lado de sua escrivaninha, aquela que dava para um jardim escuro e quase sem vida.
— E contrate jardineiros — murmurou — se pretendem me manter vivo nesse lugar, então ao menos me deem bons motivos para querer viver.
O mordomo bufou, era quase como se o garoto pudesse ouvir ele falar: quanta bobagem vinda de alguém tão jovem.
— Que tipo de flores pretende cultivar?
— Rosas — Cale disse com o olhar distante — quero rosas-amarelas.
Uma sobrancelha se ergueu no rosto do de cabelos grisalhos, mas ali não havia sequer um motivo para que negasse ou sequer questionasse, então se manteve em silêncio enquanto encarava o jovem garoto.
Mesmo assim, a mente de Veiner continuava a questionar. "Amarelas? Qual o coração que essa pequena coisa pretende despedaçar?"
Cale sorriu, um sorriso breve como o de que se recordava de algo agradável.
Amarelas.
Ele sempre havia gostado de rosas-amarelas.
⋅• ◗●◖ •⋅
O ser a sua frente era como uma versão adequada aquela época e momento, adequado ao seu novo título.
Arquiduque de Lestrard.
O grande Arquiduque de Londres.
O cão de caça da rainha, o jovem que cresceu próximo ao príncipe herdeiro. O amaldiçoado Cale Lestrard, queridinho de sua majestade.
Cabelos longos e negros - presos em um rabo de cavalo por uma fita vermelha. Vestes pretas com detalhes carmim, sapatos pretos, mãos enluvadas.
Um grande anel em seu dedo mindinho com um rubi que era cuidadosamente esculpido em formato de serpente. O animal do brasão de sua família.
— Arquiduque Lestrard? — A voz de um dos empregados o fez enfim sair de seu transe — a carruagem está pronta, esperando o senhor. Devo mandar o cocheiro de preparar após o jantar?
— Não — saiu de forma clara e sucinta, os olhos de âmbar cintilando — não irei jantar. Mandei que Veiner informasse ao cozinheiro.
— Mas senhor...
— Avise o cocheiro que estou descendo — se conteve em responder, uma larga arfada de ar foi solta de seus pulmões.
Algumas horas, algumas poucas horas e estaria livre daquele empecilho. Algumas horas e a rainha estaria ocupada demais para lembrar-se dele.
Algumas horas e o príncipe teria se apaixonado por alguma garota mediana.
Algumas horas - talvez 2 e ele estaria em uma carruagem alugada, voltando para sua cama quente e confortável.
Sim.
Apenas algumas horas - ele pensou, mas quando o braço da rainha tomou o seu e ambos passaram por aquelas portas douradas do palácio real. Cale se deu conta de que estava terrivelmente errado.
Havia olhos demais.
Olhos que procuravam marcas de tortura ou maldição.
Olhos que caçavam defeitos em sua postura, estrutura física e modos.
Olhos que o devoravam de forma tão descabida que chegava a queimar sua pele absurdamente pálida.
E entre todos aqueles olhos, existiam aqueles dois pares de olhos.
Olhos verdes, como esmeraldas e jade.
Olhos que não desgrudaram de sua face por um momento sequer.
Lisianto - se recordou.
Gêmeos.
Ruivos.
Insistentes.
Fiéis à igreja.
Suspirou. Quer fosse o que eles quisessem fazer. Cale não estava interessado. Não queria ser o experimento de ninguém, não queria ser um projeto de redenção de crianças cheias de fé.
Estava cansado disso.
— Sorria, Cale — a rainha lhe disse com certa alegria — existem muitas moças de olho em você. Sorria e as deixe ver o quão encantador o nosso duque realmente é.
Ele suspirou.
— Não desejo ser encantador.
Os olhos da mulher o encararam com certa melancolia.
— Querido, existe algo lindo lá fora esperando por você. Não se isole assim — suspirou — às vezes queria que fosse mais como Henry — os olhos azulados como o mar encararam o moreno — que não tivesse medo de amar.
O rosto de Cale se tornou vazio, apático.
— O amor é uma fantasia humana, vossa majestade. Ele existe nesse mundo tanto quanto a magia de que a igreja tem tanto pavor.
Suas palavras estavam carregadas de dor e cicatrizes; e talvez tenha sido por isso que a rainha, de cabelos loiros e olhos tão claros - não pode ir contra ao que aquele garotinho que carregava o mundo em seus ombros, havia acabado de dizer.
"Pobre Cale" foi tudo que ela se dignou a pensar.
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