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Capítulo 5 Noite de São João

O dia estava frio, gotas descompassadas arrancavam do céu. Nas ruas, uma grande balburdia, as pessoas esbarravam-se entre si atrás de lojas de roupas. Era noite de São João, o maior festejo da região. E nem mesmo uma tempestade desanimaria os habitantes da pacata cidade.

Elis apreciava noites de São João, mesmo sendo muito antiga a única lembrança que tinha dessa festa. A animação entre os passos de forró a divertia, e o quentão era responsável pelo maior dos seus deleites.

A rádio sintonizada na estação FM, tocava uma de suas canções preferidas, Desafinado do João Gilberto, fazendo o seu humor um pouco menos pesado. Ela dirigia tamborilando os dedos no volante com um cigarro pendido na boca.

— É ótimo ver vocês novamente — Baltazar dizia para Heitor e Elis que estavam sentados no seu sofá — Eu preciso saber como anda o caso. Ligo para a delegacia e recebo respostas mal formuladas, que não dizem nada. Já estou farto disso. Eu sou o pai da criança desparecida, deveria ser o primeiro a saber das notícias. Fico de cá tentando adivinhar onde ele possa estar, mas sozinho não consigo chegar a nenhum resultado. É desestimulante...

— Nos desculpe Baltazar. Mas ainda não temos novidades — disse Heitor interrompendo o monólogo do homem. — Garanto que assim que tivermos o senhor será o primeiro a saber.

— Nós viemos aqui para fazer algumas perguntas sobre sua mulher. — Elis entrelaçou os dedos entre as pernas.

— O que Matilda tem a ver com isso?

— Por ora, nada. Mas preciso dessas informações.

— Sou todo ouvidos.

— Quero saber como ocorreu o assassinato.

— Queria ter o que contar, oh! Como queria. Na época a polícia deu o caso como encerrado sem encontrar o culpado.

— Ela não corria nenhum tipo de risco?

Baltazar rolou os olhos em tom pensativo e prosseguiu:

— Nada que eu soubesse.

— Então, quer dizer que em todo esse tempo você não foi atrás de nada? — Elis abriu os braços de forma expansiva. — Não supôs nada? Como ela era sua mulher, acredito que você tenha ido atrás de respostas! Não tenha medo de nos cansar com mil teorias. Apenas diga o que pensa.

— Não vou te contar teorias, apenas o que acontecia na época do ocorrido.

— Está bom para mim.

— Nós morávamos em Itororó e Felipe estava prestes a nascer. Não entrarei em detalhes, mas descobri que Matilda me traía. Foi um drama na época! Eu não a amava mais, mas por piedade ao nosso filho, deixei que ela continuasse sendo minha esposa — Baltazar contava em tom nostálgico. — Após o nascimento do nosso filho, o amor que tínhamos perdido, voltou a nascer. Matilda jurou que nunca mais se encontraria com o tal amante e eu aceitei suas desculpas. Nós vivíamos bem, até a grande tragédia acontecer.

— Você poderia me dizer qual é o nome desse homem? Talvez seja importante.

— Reviver essas histórias é péssimo para mim, mas ser for para o bem do meu menino...

— Garanto que sim — Elis o encorajou.

— Ele se chama Carlos Lemos.

— Acho que por hoje estamos satisfeitos. — Elis estendeu a mão para o homem.

Antes mesmo que Baltazar fechasse a porta, Heitor começou o seu questionário.

— Qual foi a da vez, Elis? Por que tu perguntou sobre essas coisas? Por que você tá tão invocada com essa mulher?

— Nós precisamos partir as investigações de algum lugar.

— Ah, agora entendi, você vai criar alguma teoria aleatória e louca para perder tempo?

— Eu posso não estar certa, mas os tiros cegos às vezes acertam os seus alvos — disse ainda paciente.

— Lá vem tu com essas loucuras que eu não entendo nada.

— Então não entenda!

— Como eu posso trabalhar ao seu lado dessa maneira?

— Bem, eu nunca pedi para trabalhar ao seu lado — Elis apressou o passo afundando os pés na lama. — Até mesmo o velho Antônio seria de mais valia do que você! — Entrou para o carro batendo a porta com força.

— Era só o que me faltava... Antônio... — Heitor falou para si mesmo.

Impossibilitadas de sentar fora de casa por conta da grossa chuva, Maria das Graças e Silvia conversavam sobre as amenidades da vizinhança na sala de visitas.

— Tá lá ó — Silvia disse se servindo de café —, todo amuado aquele Baltazar. Perdeu a única cria que tinha e agora está sozinho. O pior de tudo é que eles são novos na cidade, a criatura não tem nenhum colo pra chorar.

— E que historiazinha essa, não é? Uma cidade tão boa como essa com um escândalo desses...

— É, sim. Nem lembro qual foi a última vez que ouvi algum caso de desaparecimento por aqui. Mas com fé no senhor, esses policias hão de encontrar o menino.

— Eu não me apegaria muito a essa ideia, viu?! Tu já deu uma olhada naquela policial nova? Ela não me engana, é gente ruim.

— Ouvi dizer que é das boas... Ela é estranha, de certo. Mas não sei se é ruim.

— Aquela ali é frequentadora assídua dos botecos da cidade. Pouca vergonha... onde já se viu uma moça tão bonita trabalhar na polícia e estar sozinha?

— É, não sei... — Silvia trocou de pose ao lembrar de um outro assunto. — Tu sabe o Erico filho do Eugênio? Pois então, vai virar doutor...

○ ◌

Após provar todas as bebidas alcoólicas típicas da festa junina, Elis sentou-se em uma mesa onde estavam seus colegas de trabalho. A rua estava enfeitada por bandeirolas coloridas e os casais acompanhavam a agitação da sanfona.

Frank estava com suas roupas sutis ao lado da sua esposa Joana, que olhava para as ruas encantada com o que via. Antônio e Francisco conversavam fervorosamente sobre as últimas notícias do dia, enquanto Heitor procurava um par para dançar.

— Elis, anime-se! Vamos dançar um pouco — falou Heitor sem deixar de fazer os passos de forró.

— Pirou de vez, foi?

— Que sem graça! — Revirou os olhos — Qual é o problema em se divertir um pouco?! Se eu estivesse te chamando para beber um drink, tu aceitaria, não é?

— Claramente! Agora saia da minha frente, você está atrapalhando a visão.

— Ei, olha só — Heitor se aproximou do ouvido de Elis. — Tem um rapaz muito bem-apresentado interessado em você. Não para de olhar um minuto para nossa mesa.

A mulher olhou para trás dando de cara com um homem alto de chapéu de palha, aparentemente bonito, se suas vistas embaçadas pelo álcool não falhassem. Ao perceber que estava sendo observado, ele levantou um copo em cumprimento.

— Elis! Seja mais discreta! Agora ele provavelmente sabe do que estamos falando.

Elis voltou seu olhar para Heitor após perceber a gafe.

— Não seja tolo, Heitor. Ele provavelmente está com os olhos aqui pelo Francisco — ironizou.

— Sempre modesta...Tudo bem, fique aí sozinha enquanto eu procuro meu par para dançar.

Assim, Heitor adentrou a festa na sua procura incessante.

Os adultos se divertiam, hora conversando sobre trivialidades, hora arriscando alguns passos de forró, assim, o tempo se passou num estalo de dedos e Elis percebeu que já extrapolava na quantidade de bebida.

— Você está mesmo se divertindo, hein?! — disse Frank enquanto observava Elis gargalhando para os contos sem graça de Francisco.

— Sim, acho que está na hora de ir pra casa! — Respondeu ainda com um sorriso de ponta a ponta.

— Não se preocupe, eu irei te levar.

— Não é preciso, Frank. Esqueceu-se de que eu moro uma rua atrás?

— É. Também não esqueci de que você está bêbada.

— Convenhamos que isso seja algo natural...

Já passavam das quatro da manhã. Aos poucos todos foram saindo da mesa em rumo suas casas.

— Elis, tome cuidado por essas ruas, ouviu? — Gritou Frank enquanto observava a amiga se afastar.

— Ei, eu sou uma policial bem treinada! — Respondeu dando uma rápida olhada para trás.

As ruas estavam solitárias, dava-se para ouvir o barulho das pedras rolando pelo chão de paralelepípedo. A neblina, que no inverno aparecia mais forte, tapava consideravelmente a visão de Elis. O vento gelado batia no seu corpo fazendo seus ossos estalarem num grunhido. Ela apressou os passos ao constatar que ali seria o lugar perfeito para um assassinato, ou algo pior.

Enquanto atravessava a rua, Elis ouviu um barulho se aproximando, e antes que pudesse se virar, sentiu um impacto sobre seu corpo e foi jogada abruptamente no chão por uma bicicleta que pedalava em uma velocidade acima do normal.

— Ei! Seu filho da... — ela interrompeu seu grito lembrando-se da história que atormentava o seu caso. Pensou em seguir a bicicleta, mas já era tarde demais.

Levantou-se do chão arrumando suas roupas, mas, de repente, a rua ecoou o barulho de uma voz que chamou sua atenção. Olhou para trás a procura de alguém, porém novamente a neblina tapava sua visão. O som foi, finalmente, ficando mais alto e mais claro.

Era uma voz masculina e cansada pelo tempo que cantava:

"Mas ninguém conseguia sair de lá

Fugir de lá

Os gritos de sangue ecoavam pelas jovens gargantas

Inocentes crianças

Mas ela era cruel

Muito cruel

Dona Nancy pedalava e consigo as almas levava."

Elis tentou correr em direção à voz que cantava a canção, mas não conseguiu enxergar o que se passava no outro lado da esquina. Sua tontura impossibilitava que seus passos fossem retos e decididos.

Quando conseguiu acalmar a respiração e convencer a si mesma de que tudo era fruto da sua imaginação, um homem velho, barbudo e branco como a neblina de roupas sujas e rasgadas, olhou em sua direção com seu olho esquerdo, também branco, pela cegueira.

Elis soltou um grito forte de desespero, fazendo com que o homem saísse correndo.

Após se recompor, a mulher cambaleou visivelmente traumatizada para sua casa e abriu as portas orando para que aquela cena horripilante não atrapalhasse os seus sonhos.

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